A chegada do coronavirus a Cabo Verde apanhou-vos de surpresa?
Não. Sempre pensamos que era uma questão de tempo para que chegasse a Cabo Verde, embora não fosse nosso desejo. Eu penso que foi por isso que o país foi tomando algumas decisões que pensamos que foram tomadas atempadamente como a suspensão de voos de determinados países. Foi-se organizando os serviços e elaborando documentos como o Plano de Contingência, foi-se fazendo uma análise tendo em conta a situação epidemiológica a nível internacional. Na altura era a China que era o ponto quente, depois passou para a Europa e nós estivemos sempre atentos e o país foi tomando as decisões conforme a informação epidemiológica disponível nos permitia.
Este reduzido número de casos, cerca de 300 casos para um país com 500 mil habitantes não é um número elevado, deve-se a essas políticas de prevenção?
Penso que sim. Considerando o número que conseguimos identificar até agora, embora já se tenha feito um bom número de testes PCR, pensamos que as medidas surtiram efeito, sim. E que talvez poderia ter sido pior se se tivesse terminado o Estado de Emergência antes. Sem todas as medidas que foram adoptadas antes do Estado de Emergência levam-nos a pensar que, se calhar, o cenário teria sido pior. Mas vamos agora ver como a situação se vai desenvolver quando todas as ilhas já estiverem fora do Estado de Emergência, principalmente aqui em Santiago e na Praia onde a situação está a ser mais crítica.
Qual é número real de casos? Falamos de cerca de 300 casos a nível nacional mas tendo em conta o rácio de infecção...
Bom, os dados que temos são esses. Vamos tendo conhecimento dos casos conforme os testes PCR vão sendo realizados.
Mas têm estimativas de quantos serão os casos reais de infecção.
O valor que temos conhecimento são os tais cerca de 300. Agora para fazer uma estimativa com base nisso, é o que disse, com uma pessoa a infectar duas pessoas, neste momento está quase 1 para 1, penso que seja esse o número. Têm-se feito testes rápidos para pesquisa de anticorpos. Fizeram-se bastantes na Boa Vista (cerca de 800) e até agora não se conseguiu encontrar casos na comunidade. Aqui na Praia também tem-se estado a fazer com muito poucos resultados de anti-corpos positivos, e quando se faz o PCR não se confirma a infecção. Num rastreio feito, há dias, aqui na Praia encontraram três pessoas com IgM positivo, fizeram o PCR e foi também positivo. Agora temos de ver que como o material genético pode ser identificado durante algum tempo no teste PCR, pode ser que esse material genético identificado já não esteja em condições de infectar outras pessoas. Que é o que pensamos também que esteja a acontecer com um dos primeiros casos da Praia em que os testes PCR de controlo têm dado sucessivamente positivos. Pensamos que esse material já não constitui perigo para propagação, porque já se passou muito tempo e esta pessoa já fez um teste rápido de anti-corpos onde se identificou apenas o IgG, que é o anti-corpo que confere imunidade e significa que a pessoa teve a doença ou a infecção há já algum tempo. Não temos tido muitos casos suspeitos, cerca de 80% dos casos são assintomáticos, que na sua maioria são contactos de casos confirmados.
Têm-se notado muito esses casos assintomáticos. O que não é normal pelo que se via noutros países.
O problema é que no início, quando se encontraram os primeiros casos, no inquérito epidemiológico que deve ser feito, os contactos próximos devem ser testados e foi através disso que se foi encontrando mais casos. E a maior parte destes contactos são pessoas que não tinham sintomas e, entretanto, foi-se encontrando casos positivos. Como se pode verificar nos dados que são divulgados diariamente nos diversos meios, quase 80% são assintomáticos.
Mas estaremos aqui a falar de uma modificação genética do vírus? De uma versão mais fraca?
Não temos informações que nos permitam dizer que seja isso, mas não é uma hipótese a se descartar. Sabemos que conforme o vírus entra na circulação, vai sofrendo mutações que podem ser pequenas ou grandes. As grandes acabam por desencadear as grandes epidemias e as pequenas nem sempre são significativas. Pode ser que até o vírus ter chegado cá a Cabo Verde tenha sofrido pequenas mutações e esteja mais atenuado. Ou, se calhar, as condições, os factores genéticos da população possam ter conferido alguma protecção. Ainda é tudo uma incógnita. Não temos informações que nos permitam ir mais além, por enquanto.
Preocupa-o uma segunda vaga?
Sim. É assim, considerando que há nove ilhas habitadas e, em princípio, em seis o vírus não circulou, isso significa que a população dessas ilhas está susceptível e, se houver introdução de um caso, poderá haver uma segunda vaga nessas populações onde não houve circulação do vírus que para elas seria um primeiro impacto. Aqui a segunda vaga vai depender do nível de imunidade que ficar na população. Há estudos que dizem que é preciso um nível de imunidade de 60 a 70% para que nós possamos considerar que a população está realmente protegida. A tal imunidade de grupo. Mas há outros que dizem que como a população não é homogénea e não tem as mesmas condições de vida, há factores que condicionam a probabilidade da pessoa ter ou não a infecção. Então, aí, pode ser que com um valor mais baixo de imunidade da população se consiga a imunidade de grupo, vai depender. Temos de considerar que a informação que temos neste momento é insuficiente para se tirar ilações mais assertivas sobre o futuro, para além dos recursos disponíveis no momento. E aqui falo a nível de testes, da capacidade dos testes em diagnosticar os casos, enfim há uma série de factores que condicionam esse raciocínio para permitir dizer se há imunidade de grupo ou se não há. Se vamos ter uma segunda vaga... Em princípio e teoricamente pensamos que há essa possibilidade. Mas poderá não acontecer. Depende.
O período pós-Estado de Emergência? Como é que estão a planear a gestão?
Há uma série de actividades que não implica apenas o sector da saúde. O sector da saúde emitiu uma série de normas, de orientações, de pareceres em relação à utilização de máscaras, como é que elas devem ser feitas, a questão das medidas de distanciamento social, que devem ser mantidas, a adopção de medidas de higiene e de limpeza de superfícies e ambientes com os desinfectantes recomendados. A não abertura de determinados espaços pelo menos, por enquanto. Todas essas medidas são no sentido de se evitar que, a ter que acontecer, não haja um grande número de casos de forma a que vá sobrecarregar os serviços de saúde ou implicar um esforço enorme dos profissionais de saúde, e não só, para dar uma resposta minimamente satisfatória. Essas medidas são nesse sentido. Conforme vamos analisando a situação epidemiológica, vamos vendo que medidas mais é que são necessárias e vamos acompanhando, também, o cenário internacional vendo o que se passa lá fora, tomando as boas lições e também aprendendo com as menos boas e tentando adaptar o que pode ser possível de ser feito aqui em Cabo Verde.
Já se passaram dois meses desde que foi declarado o primeiro caso na Boa Vista. Como se justifica o desaparecimento de casos na Boa Vista?
Uma das teorias é que, se calhar, o vírus ficou confinado nos hotéis, principalmente no Karamboa. E a medida de ter deixado as pessoas em confinamento foi extremamente acertada e que poderá ter permitido que o vírus não se espalhasse na comunidade. Mesmo depois de terem saído do confinamento. O período de tempo que ficaram nas suas casas não parece ter sido o suficiente para contaminar a comunidade.
E aqui na Praia?
A situação é completamente diferente.
Mas como é que se explica?
Aqui na Praia a transmissão está a nível da comunidade. É uma situação completamente diferente do que se passou na Boa Vista em que o vírus foi identificado num espaço e ai é muito mais fácil fazer o confinamento. Aqui na Praia os casos foram sendo identificados na comunidade e, apesar de todas as medidas do Estado de Emergência, as pessoas ainda continuaram a circular, inclusivamente fora do concelho da Praia. Isto poderá ser um dos factores que justifica essa propagação não só na Praia, mas em Santiago.
As medidas restritivas vão continuar depois do Estado de Emergência?
Isso vai ser equacionado conforme a evolução epidemiológica. De momento, estas medidas restritivas são necessárias, penso eu. Não só no país como a nível internacional. Porque em algum momento haverá a necessidade de se abrirem os voos internacionais, é preciso o país retomar as suas actividades, senão ninguém consegue aguentar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.