A mãe de Joana Lopes tem 84 anos. Doente crónica, sofre de diabetes e tem sequelas de vários acidentes vasculares cerebrais. Antes do estado de emergência tinha iniciado um tratamento dentário para colocação de uma prótese – foi interrompido. Em Março, realizou análises de controlo – ainda não teve acesso aos resultados. A cada 50 dias tem consulta de seguimento no centro de saúde – a última não foi realizada.
Joana está “muito ansiosa”. Preocupada com a falta de acompanhamento médico adequado, espera pela remarcação das consultas e tratamentos.
“No centro de saúde disseram-se que até ao levantamento do estado de emergência não podem fazer nada e eu também não me arrisco a ir lá numa situação dessas”, desabafava ao Expresso das Ilhas, no final da semana passada, horas antes do final do período de excepção.
A situação da mãe de Joana Lopes não é caso único. A prioridade dada ao combate à covid-19 condicionou a actividade normal do sistema de saúde, com os actos médicos não urgentes a serem cancelados ou adiados. Algumas especialidades, como medicina dentária, encerraram toda a prática desde Março.
Em estudo divulgado esta segunda-feira, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reforçou a ideia de que, em todo o mundo, a luta contra a pandemia interrompeu ou, pelo menos, condicionou os serviços de prevenção, diagnóstico e tratamento de patologias como cancro, diabetes, hipertensão ou outras doenças não transmissíveis, que matam 40 milhões de pessoas todos os anos.
“Os resultados desta pesquisa confirmam o que ouvimos dos países há várias semanas”, disse em conferência de imprensa Tedros Ghebreyesus, director-geral da OMS.
Em São Vicente, o Hospital Baptista de Sousa já retomou a marcação de consultas de especialidade, exames complementares de diagnóstico e tratamentos. Segundo Fernando Lopes, director da central de consultas, o serviço foi reorganizado.
“Há um grupo de médicos que começa as consultas às 8h30 e outro às 09h00, para que não haja aglomeração. Só entram na central as pessoas que têm consulta naquele dia. As pessoas que têm exames para marcar mudámos o horário, das 14h00 às 15h00”, exemplifica.
Não existem dados sobre o impacto, estatístico e na saúde dos pacientes, da não realização de determinados actos médicos, desmarcados ou por falta de comparência, na altura em que estavam programados.
Genericamente, Fernando Lopes constatou uma diminuição da afluência ao hospital central de São Vicente.
“O que nós detectamos é que durante o estado de emergência houve uma diminuição considerável de pessoas que foram internadas ou que foram à urgência. Agora é que vamos ver se foi porque se cuidaram mais ou se por medo”, refere.
Na Praia, com o regresso à normalidade possível, também os serviços de saúde retomam paulatinamente a actividade assistencial que tinha sido suspensa, informou ao Expresso das Ilhas fonte do Ministério da Saúde e Segurança Social.
Apesar dos constrangimentos enfrentados na decorrência das medidas restritivas impostas pelo estado de emergência, o director do Serviço de Prevenção e Controlo de Doenças, Jorge Barreto, recorda que nem todos os actos médicos foram cancelados.
“Na parte da oncologia não houve suspensão das actividades, os doentes continuaram a fazer o seguimento. Houve doentes que vieram de São Vicente para fazer os tratamentos cá na Praia. As cirurgias de urgência também foram feitas”, afirma.
O especialista em saúde pública, José d’Aguiar, explica que o novo coronavírus condicionou os serviços hospitalares, mas que nem tudo foi interrompido. As últimas semanas até permitiram tirar algumas lições.
“O novo coronavírus condicionou o funcionamento dos serviços, mas não levou ao encerramento de um ou outro serviço. Agora, este período de epidemia foi demonstrativo que realmente grande parte dos casos que se dirigiam aos serviços de urgência não eram de urgência, razão pela qual o atendimento nos bancos de urgência reduziu-se consideravelmente”, observa.
Reabertura
Com o registo dos primeiros casos de infecção por SARS-CoV-2, o governo suspendeu em Março as ligações com o exterior e condicionou os transportes inter-ilhas. Agora, o país volta a reabrir o tráfego de passageiros. D’Aguiar diz que se ganhou experiência que lhe será útil daqui para a frente.
“O país não pode ficar indefinidamente fechado ao exterior, nem fechado cá dentro também. Teremos que retomar as agitações do nosso quotidiano. Se vierem a aparecer mais casos no futuro, estaremos mais preparados, com base na experiência que já temos, para enfrentar atempadamente esses casos, isola-los e adoptar as medidas que vierem a ser determinadas”, antecipa.
Para o antigo delegado de saúde de São Vicente, é possível conciliar turismo e saúde pública. O médico sugere que se sigam as melhores práticas internacionais.
“Terá que ser viável, teremos que nos preparar. Não podemos manter as nossas fronteiras fechadas por muito mais tempo, uma vez que somos quase dependentes do turismo. Agora, temos uma outra vantagem: na Europa já está a acontecer a reabertura de fronteiras, pelo que é ver como é que vão estabelecer o sistema de controlo, em caso de aparecimento de um individuo que acusa positivo”, defende.
Até esta terça-feira, Cabo Verde registava 466 casos confirmados, dos quais resultaram cinco óbitos.
* com Lourdes Fortes e André Amaral
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 966 de 03 de Junho de 2020.