A vida de Admilson Mendes poderia ter seguido um rumo bem diferente. Tinha todos os ingredientes para tal – ambiente, obstáculos, pobreza... “Quase enveredei pelo caminho errado”, admite.
Penúltimo de um ramalhete de seis filhos criados apenas pela mãe, aos oito anos de idade teve de se fazer ao mundo para ajudar a sustentar a casa. O mundo foi, na altura, o cais de pesca onde praticamente se criou, no meio de “droga, álcool, prostituição e de tudo um pouco mais”.
A par com esse mundo, Admilson tinha, na verdade um outro: a escola. Estudava numa escola conhecida da capital, com boas referências, mas também aí a vida não era fácil. Estudava “junto com os filhos das pessoas que tinham dinheiro. Era pobre, tive muitas dificuldades principalmente a nível financeiro e sofri bullying” precisamente por não ter dinheiro.
“Tive que me desenrascar, vendia até sapos para os colegas que não conheciam” esse bicho. Vendeu, aliás, um pouco de tudo, e principalmente peixe. “Ia para o cais de pesca, tratava dos peixes e depois saia e vendia pela cidade”, recorda.
Com toda a vivência que teve foi “por pouco” que não entrou na criminalidade. Via os colegas consumir drogas, planear assaltos e ataques a outros bairros, mas ele não. “Acho que não entrei por aí porque acreditava que podia fazer melhor”. Ajudou a sua teimosia e ‘espírito do contra’. Era quase expectável que deixasse os estudos, que também entrasse na delinquência. Que acabasse por não conseguir manter o rumo ‘certo’. Mas se alguém lhe diz que não consegue algo, até hoje, Admilson luta por contradizer a expectativa.
E conseguiu. Continuou a estudar, face a todas as dificuldades.
E depois estudou ainda mais... e mais um pouco. E pelo caminho teve ganhos e várias perdas.
Destino?
Admilson teria à volta de 16 anos quando perdeu o primeiro amigo para o “crime”.
“Criamos juntos no cais, éramos vizinhos” em Castelão. Um dia o amigo foi a um outro bairro, Achadinha, assaltar. Entrou numa casa e “levou um tiro”. Depois, muitos outros amigos perderam a vida, outros são toxicodependentes, outros continuam na “vida de assalto à mão armada”.
“Mas são meus amigos, a vida levou-os para um triste caminho”, relembra. Falta de aviso não tiveram, garante. Da parte de Admilson sempre ouviram “temos de estudar, a escola é a alternativa”. Para ele foi.
Uns superaram, outros afundaram, outros ainda lutam por se manter à tona. “Infelizmente a vida, vivendo num bairro pobre, faz de nós vencedores, donu di nha distinu, ou ....” a frase não terminada pode ser preenchida por várias palavras. Todas negativas.
Muitos anos volvidos, um mestrado em curso e muito caminho andado, Admilson fundou Donu Nha Distinu (VER CAIXA), um projecto “que é algo pessoal porque mostra um pouco a história da minha superação durante toda a minha infância até agora”. O culminar de um caminho escolhido.
Activismo comunitário
Não foi só Admilson que percorreu um longo caminho. Donu di Nha Distinu surge num momento já bem distinto da vida dos bairros ditos ‘vulneráveis’. Melhor.
“Agora temos uma política em que se pensa mais nas pessoas, mas éramos esquecidos no bairro. Há 10, 15 ou 20 anos era muito mais complicado e éramos largados à nossa sorte”.
Os bairros têm agora mais intervenção, seja a nível da requalificação, seja a nível de actividades aí promovidas. As próprias autoridades policiais têm uma nova atitude, mais de “proximidade” em que entendem que a punição não é a única via securitária.
Por outro lado, perdeu-se a rede de vizinhança que era, antigamente, um suporte nesses bairros. “Agora não temos isso, agora nós activistas sociais estamos a trabalhar no bairro e temos que correr atrás do prejuízo”, diz.
As Associações comunitárias, entre outros aspectos, cobrem pois parte do que foi deixado a descoberto pela quebra dessa rede.
“Somos filhos uns dos outros, conhecemos muito bem o que resulta” dos conflitos e criminalidade.
Conhecem e têm a paixão necessária.
“Para fazer serviço comunitário é preciso ter muita paixão e resiliência. Não é fácil compreender como é que funciona o bairro, por causa das diversidades que aí existem”, observa.
E Admilson Mendes tem muita experiência a esse nível. Não só é “filho” do bairro, como tem um longo percurso de activismo social e comunitário, e no seu trabalho como guarda municipal já encabeçou um projecto-piloto de policiamento comunitário da Guarda Municipal da Praia, no bairro de Castelão e adjacentes.
Nasceu então, dizia-se, Donu di Nha Distinu que intervém a diferentes níveis e onde a segurança é prioridade e a máxima, empoderamento. Castelão e Coqueiro, bairros com delimitação já difícil de fazer, são o foco.
[Combater a criminalidade] “tornou-se uma prioridade porque acreditamos que não resolve nada e quando estamos a ver a juventude entrar nessa onda de criminalidade percebemos que realmente o país está a perder, porque a força do país é o seu capital humano”, explica.
Acalmia?
É certo que parece haver uma acalmia, confirmada em vários bairros, e muitas coisas positivas a decorrer mas... É ilusório pensar que a onda de criminalidade e delinquência juvenil não são um problema de maior, porque os números que víamos há uns anos parecem ter diminuído.
O sistema é frágil, não há planeamento a longo prazo nos bairros, a falta de oportunidades é uma realidade e há também uma falta de interesse dos próprios jovens em relação ao seu futuro.
Mais ainda, a criminalidade “vai e volta novamente, e quando volta, volta com mais força e começa a apanhar aqueles que não estavam”, adverte Admilson.
Jovens regressam da cadeia, e quando voltam, “não são reintegrados na comunidade”.
Os presos são soltos e na bagagem trazem conhecimento adquirido na cadeia. Chegam e encontram a “mesma coisa. Nada muda”. Nenhum outro caminho é, ou lhes parece ser, possível (ou apetecível).
“Quando saem [da prisão] têm de encontrar algo diferente, porque se não encontrarem nada diferente...” eles próprios voltam ao caminho já trilhado. Ou melhor, uma coisa muda. No bairro há agora outros jovens já em idade de engrossar o crime. Renova-se e fortalece-se.
Então, pela formação e capacitação, DND quer tentar cativar os jovens. Inserção e reinserção. “Não podemos deixar mais vidas ser perdidas, temos de intervir e é nessa altura que é preciso mostrar que há pessoas no bairro que podem fazer muito mais”. Motivar, capacitar, formar.... Mostrar o caminho certo e dar comando ao destino.
Brigas recomeçaram
A acalmia é, pois, frágil. Ainda há dias, em Castelão dois jovens discutiram por causa de uma garrafa de grogue. Uma briga a dois em que se começam a envolver outros. Aqui, há que evitar que, como já aconteceu várias vezes, a briga fútil extrapole, dando origem aos conflitos de gangues que ainda não há muitos anos marcavam os dias e os obituários da capital.
Muitas brigas que acabam em morte começam assim, por ninharias, logo o estancamento deve ser atento e constante. E na verdade, por aquilo que vê nos bairros, tem havido um recrudescimento dos conflitos entre gangues rivais.
“Um primeiro movimento... entrar na criminalidade é fácil, sair é bem complicado. Os conflitos entre os grupos rivais deixam marcas, e essas marcas muitas vezes nunca são saradas, é complicadíssimo”, avisa Admilson.
Há marcas antigas, mas também mudanças no fenómeno da criminalidade juvenil. A liderança dos grupos, outrora bem definida, agora é mais complexa.
“Agora praticamente todo o mundo comanda, e quando assim é, é muito mais complicado desmantelar”.
O fenómeno ainda não tem a dimensão de outrora, mas o alerta está dado. “Vamos intervir agora antes de começar a ter um problema muito maior”. Foi já feito contacto com a polícia nacional, principalmente ao nível do programa de proximidade da Polícia Nacional que tem essa vertente, não tanto de repressão, mas de “compreender”, de “estar na comunidade, conviver com os nossos jovens, e perceber realmente o que precisam”. E as forças policiais têm agido atempadamente, avalia.
Entretanto, a pandemia da COVID-19, que trouxe à tona vários problemas do bairro, ainda não parece ter grandes mudanças visíveis ao nível na criminalidade. Ainda.
Durante o Estado de Emergência, possivelmente devido à clausura, houve apenas episódios muito pontuais. “Nao houve nenhum boom”. Porém, agora, após o confinamento, começa-se a perceber movimentações e nervosismo por parte dos jovens.
Uma coisa é certa, prevenção e acção atempada é sempre o melhor combate à criminalidade, diz. E é “responsabilidade de todos”.
“Temos de estar envolvidos na segurança comunitária, porque a polícia não consegue. É impossível o Estado sozinho resolver esses problemas sem que a comunidade esteja envolvida”, defende.
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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 976 de 12 de Agosto de 2020.