Comecemos por um exemplo. Por estes dias, foi publicado o estudo "A eficácia virucida dos componentes de lavagem oral contra a SARS-CoV-2 in vitro". Os resultados admitem a hipótese de se incluir os elixires bucais como parte da prevenção da covid-19, a par de todas as outras medidas que seguimos há vários meses.
Os autores testaram sete elixires bucais, expondo o vírus por períodos de 30 segundos, em ambiente laboratorial. Observou-se que os elixires com, pelo menos, 0,007% de cloreto de cetilpiridínio ou uma determinada percentagem de etanol, podem, eventualmente, inactivar o vírus.
Das marcas testadas uma é vendida nos supermercados em Cabo Verde, a Listerine. Os elixires Listerine não contêm cloreto de cetilpiridínio, mas têm etanol.
Desconhece-se quanto tempo podem durar os eventuais efeitos. Os resultados da pesquisa ainda não foram revistos por pares.
Revisão por pares
É este o tema principal do Teste Rápido de hoje: a revisão por pares ou peer review. O que é isto e qual a sua importância?
À procura de respostas, conversamos com Hélio Rocha, mestre em Saúde Pública, doutorando em Medicina Tropical e Saúde Global, professor e investigador na Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, e Miguel Crespo, jornalista e professor de comunicação digital, investigador assistente no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do ISCTE, em Portugal.
Ao longo dos últimos meses, vimos reproduzidas na imprensa conclusões de muitos estudos relacionados com a covid-19. Apesar de nem sempre esse elemento estar referido, uma parte dos estudos foram tornados públicos sem que tivesse sido cumprida uma etapa importante, a revisão por pares. No processo de produção de conhecimento, que importância tem o peer review?
Hélio Rocha: A revisão de pares é um método utilizado nas revistas científicas, para dar uma maior garantia de qualidade às publicações. Por mais incrível que pareça, os cientistas tendem em não acreditar naquilo que os outros cientistas dizem ou apresentem. Então, fazemos a revisão de pares. O trabalho é enviado para dois ou três investigadores, que trabalham na mesma área, e que têm também uma expertise elevada, para reverem principalmente os dados, para saber se realmente aquilo que a pessoa está a apresentar condiz com a realidade. A revisão de pares está ligada a esse cepticismo científico.
Porque é que está a ser divulgada investigação que não passou por essa etapa?
Hélio Rocha: O que acontece é que necessitamos de ter as informações disponíveis o mais depressa possível. Então, os processos acabam por decorrer mais rapidamente e a própria revisão de pares acaba por ser feita de forma mais rápida, levando a uma diminuição na qualidade do processo.
Quando tratam matérias científicas lidando, nomeadamente, com conclusões de pesquisas não sujeitas a revisão por pares, que cuidados devem ter os jornalistas e os órgãos de comunicação social, em geral?
Miguel Crespo: Conclusões de pesquisas não revistas por pares ainda não podem ser consideradas ciência, pois ainda não terminaram todos os passos do método científico. É por isso que os jornalistas devem ser muito cautelosos e apenas publicar esses estudos e os respectivos resultados como hipótese, deixando sempre muito claro que o resultado ainda não é válido e, portanto, ainda não se aplica como resultado científico.
Quanto ao público, quando contactam com este tipo de informação de base científica - e muitas pessoas fazem-no agora com uma frequência inédita - que cuidados devem ser seguidos no tratamento da informação? Ou seja, quando eu leio, escuto ou vejo uma notícia que cita um estudo ou uma qualquer descoberta científica, que atitude devo ter perante a informação e o que é que devo procurar na notícia?
Miguel Crespo: Pela primeira vez, de forma massiva, as pessoas estão a ser confrontadas com a ciência em acção. Ou seja, lêem e ouvem notícias sobre hipóteses, sobre a aplicação de hipóteses, sobre validação dessas hipóteses e assistem a algo que é fundamental na ciência mas que costuma estar escondido nos laboratórios e centros de investigação. E que é o quê? O teste, hipótese e o erro e até acesso a conclusões que ainda não foram validadas por outros cientistas. Por isso, antes de tomar uma informação supostamente científica por certa, o mais importante é tentar perceber se ela já foi validada e publicada numa revista científica, o que só acontece após um processo de revisão, críticas, melhorias à investigação e aprovação final por pares, ou seja, por outros cientistas especializados naquela área da ciência.
Hélio Rocha: Ainda nos falta comunicação científica, o que passa por pessoal com alguma expertise na matéria, que consiga decifrar ou traduzir a linguagem científica para a linguagem mais comum. Há esse problema. O que acaba por chegar no grande público são coisas que parecem dogmáticas, tudo o que a ciência não é. A ciência não é dogmática, baseia-se, na verdade, no cepticismo. A ciência não é feita de certezas, mas baseia-se num grande grau de incerteza e cepticismo.
Perante esta onda de 'qualquer coisa pela verdade', de contestação crescente às medidas de controlo da pandemia, que papel tem, pode ter, deve ter a informação?
Miguel Crespo: Cada vez mais, quando vemos alguém a tentar vender-nos uma verdade, normalmente em letras maiúsculas ou com um discurso alarmista, isso só quer dizer que é uma grande mentira. Há muitas verdades possíveis sobre uma questão, mas só se consegue lá chegar através dos factos. Esses sim, iguais para todos. O que acontece é que todos os movimentos 'pela verdade' são, na verdade, manipuladores, com objectivos pessoais ou apenas loucos. Isto não quer dizer que não seja possível pôr em causa o mundo, mas devemos fazê-lo com base em factos e não em mentiras e falsidades. Se há médicos, jornalistas, advogados ou outros profissionais a dizer que eles é que são 'pela verdade', desconfiem sempre. São apenas pessoas que querem que os outros confiem na sua suposta verdade e não que os cidadãos tenham acesso aos factos e tirem as suas conclusões. Nesse sentido, é a informação jornalística baseada em factos que permite a cada um de nós chegar às suas verdades. Nunca comprem uma verdade já embalada porque o que vem lá dentro nunca corresponde ao que vem anunciado no pacote.
Sobre o Teste Rápido
O Teste Rápido é um projecto da Rádio Morabeza e do Expresso das Ilhas. Todas as informações usadas neste programa estão disponíveis na Internet. Pode ouvir-nos na rádio (quinta-feira, depois das 11h00), recuperar-nos em formato podcast ou ler-nos aqui, no site do jornal.