Há futuro para o jornalismo?

PorNuno Andrade Ferreira,30 jan 2021 8:45

A pergunta que serve de título a este artigo é sincera. Num tempo de internet, redes sociais e instantaneidade, haverá futuro para o jornalismo ou será esta uma actividade em extinção? Quem precisa de intermediários quando pode falar em nome próprio?

A edição 2020 do Digital News Report, o mais importante relatório anual sobre a indústria jornalística concluiu que a pandemia de covid-19 fez aumentar substancialmente o consumo de notícias. À data de Abril do ano passado, a confiança nos órgãos de comunicação social era o dobro daquela demonstrada pelas redes sociais. Mas será isto suficiente para assegurar o futuro da profissão?

Há muito que as páginas dos jornais, os programas de rádio e de televisão deixaram de ser os únicos a oferecer conteúdos. O smartphone que transportamos no bolso é tudo aquilo de que necessitamos para passarmos de consumidores a produtores. A tecnologia que nos permite construir um público tornou-se acessível e de fácil utilização.

Ao Expresso das Ilhas, Rasmus Nielsen, director do Reuters Institute for The Study of Journalism, analisa o actual panorama mediático e conclui que, apesar de os media tradicionaisterem perdido o monopólio que conservaram durante décadas, continuam a ser relevantes.

“O jornalismo costumava oferecer às pessoas muitas coisas diferentes, de notícias a opinião, passando pela informação meteorológica, eventos locais, etc. Muitas dessas coisas estão agora disponíveis noutros sítios. Mas o jornalismo pode continuar a disponibilizar informação rigorosa e oportuna sobre assuntos de interesse publico e isso continua a ser tão relevante como sempre foi”, comenta.

Num qualquer canal de notícias, 24 horas por dia, online, com actualizações ao minuto, nas redes sociais, num scroll interminável. A informação acompanha-nos ao longo do dia, à distância de poucos toques. Há muito que acabou a necessidade de esperar pela hora do telejornal, pelo noticiário depois do sinal horário, ou pelo jornal do dia seguinte. “Terminou a escassez da informação”, realça Luís António Santos, professor de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho.

“Mudaram coisas fundamentais e mudaram para sempre, parece-me. A primeira delas é que o jornalismo deixou de concorrer apenas entre si pela atenção das audiências e passou a concorrer também com outros espaços e canais de transmissão. A segunda é que parte dessa outra informação responde a necessidades a que o jornalismo não quis ou não soube dar a devida atenção ou que, então, tem objectivos muito distantes dos do jornalismo. A terceira é que parte dessa ‘outra informação’ é organizada quase que por oposição ao próprio jornalismo”, regista.

Falar sem ninguém ouvir

Por certo que já lhe aconteceu estar num sítio cheio de gente, onde todos falam ao mesmo tempo e ninguém se entende. No fundo, é assim que está estruturado o actual panorama mediático. Todos temos uma opinião, mas não paramos para ouvir ou ler a opinião dos outros. Daí até desatarmos aos ‘gritos’ é um pequeno passo.

A chave do jornalismo moderno poderá estar na capacidade de tornar compreensíveis as múltiplas vozes da esfera pública. É isso que defende o professor da Universidade de Cabo Verde, João Almeida Medina.

“O jornalismo foi desafiado a ser um local de fala polifónica e de organização das múltiplas vozes que se anunciam e pronunciam, mas não se comunicam. Ao jornalismo, mais do que nunca, cabe o papel de analista de discurso, assim como o de moderador das narrativas que tendem aos extremos. Se nos ficarmos no papel de fazedores de notícias, a relevância desaparece”, acredita.

Desinformação

Sem editores a decidir o que é ou não importante, sem códigos de ética e deontologia que obrigam a ouvir todas as partes e a confirmar factos, as ‘novas’ plataformas de comunicação apresentaram-se como espaços de liberdade absoluta. A experiência mostrou-nos que, apesar de todas as suas vantagens, estas também se tornaram locais de propagação de desinformação, a uma velocidade incontrolável.

Valerá a pena o jornalismo tentar concorrer com o ritmo alucinante a que tudo acontece na rede? Luís António Santos acha que não.

“Percebemos, com a pandemia, que em áreas realmente importantes para as nossas vidas continuamos a preferir procurar a ajuda do jornalismo. A escolha das empresas é muito clara: ou escolhem ser ‘fábricas de conteúdos’, com um valor social nominal muito baixo, ou escolhem fazer jornalismo. A primeira garante rendimentos com mais facilidade e a segunda implica investimento em pessoas e tem um retorno muito mais demorado”, antevê.

João Almeida Medina subscreve. Não há confusão possível.

“O jornalismo deve ser o local de equilíbrio na dimensão da verdade – o compromisso ético – a estética, a técnica e o conteúdo. Portanto, deve diferenciar-se e não competir com outros actores que estarão mais interessados no poder de influenciar”, sintetiza.

Financiamento

A questão do milhão é ‘como é que isso se paga?’. Como é que se paga o jornalismo a que ambicionamos? Perante a dispersão dos anunciantes, diferentes corporações têm experimentado diferentes abordagens. Nalguns casos, o sistema de subscrição parece funcionar. Para algumas empresas, doações e mecenato são opções válidas. Mas a maioria continua à deriva.

O director do Reuters Institute for The Study of Journalism, Rasmus Nielsen, explica ao Expresso das Ilhas que as empresas de media têm que ser muito mais transparentes sobre as razões pelas quais as pessoas devem ler as suas notícias e pagar por elas. Do mesmo modo, têm que ser claras sobre as vantagens que oferecem aos potenciais anunciantes.

“É difícil e a maioria pode ter que viver com receitas menores do que no passado, mas isso não significa, por si só, que o jornalismo se tornou insustentável. Temos exemplos de organizações distintas e de qualidade que convencem as pessoas a pagar, assim como também temos novas formas de jornalismo online apoiadas por outras fontes de receita”, sublinha.

Não há mercados iguais. Cada meio, o seu mercado, o seu público e a sua estratégia.

“Algumas empresas, sobretudo gigantes com expressão em universos linguísticos alargados, vão até ser maiores do que alguma vez foram. Percebemos isso com o The Guardian, o New York Times, o Washington Post, o El País, mas para a maioria das empresas jornalísticas insistir no mesmo modelo vai apenas adiar uma morte anunciada. Cada uma precisará de pensar, antes de mais, se quer continuar a ser uma empresa com fins lucrativos ou se é mais viável optar por outro tipo de estrutura. Depois disso, precisará de se aproximar ainda mais da comunidade, envolvendo-a na busca de soluções. Gostaria de pensar que vai haver alguma forma de os Estados se associarem a estes esforços”, observa o professor da Universidade do Minho, Luís António Santos.

O jornalismo tem futuro?

Depende. O professor da Universidade de Cabo Verde, João Almeida Medina coloca a tónica no papel que a profissão reservar para si própria.

“Se o jornalismo assumir o papel de analista do discurso, de polifonia e aceitar o desafio quase diário de provar a sua relevância, sim. Há um futuro, desde que também se encontrem mecanismos de financiamento”,

Por sua vez, Luís António Santos destaca a importância de, num ambiente cheio de mensagens, quase sempre tão contraditórias, existirem profissionais que actuam com transparência.

“A Universidade de Cardiff, em Gales, que tem uma das mais reputadas escolas de jornalismo do mundo, organiza uma conferência, em Setembro deste ano, cujo título é ‘ultrapassar obstáculos no jornalismo’. Parece-me que se enquadra na postura certa a adoptar. Pensar no que é relevante e no que é acessório e tornar o jornalismo ainda mais vital na vida dos regimes democráticos”, ambiciona.

Rasmus Nielsen está optimista.

“O melhor jornalismo, hoje, é o melhor de sempre, mesmo apesar de a indústria estar a ser desafiada e de alguns jornalistas terem caído em opinião e press releases. É claro que existirão perdas reais mas, fundamentalmente, eu acredito que as pessoas querem informação de qualidade e que o jornalismo pode oferecê-la”, confia.

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“O jornalismo só continuará a ser relevante se regressar às suas origens”

Carlos Santos, presidente da Associação dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC), apela a um regresso aos valores fundamentais do jornalismo e diz que o futuro da profissão em Cabo Verde também depende da implementação de políticas públicas que reduzam os factores de contexto.

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De que forma é que o jornalismo se poderá manter relevante?

O esboroar da relevância do jornalismo nas sociedades resulta de vários factores, alguns decorrentes da forma como os próprios jornalistas passaram, num determinado momento, a entender a sua profissão e outros mais ligados ao funcionamento do mercado e às novas formas de intermediação tecnológica. O jornalismo só poderá continuar a ser relevante se regressar às suas origens, se voltar a religar-se com os cidadãos. Um jornalismo que não prescinda dos valores tradicionais, como a isenção, a imparcialidade, a objectividade, e tão-pouco de aspectos técnicos como o rigor.

Como tornar os projectos jornalísticos rentáveis ou, pelo menos, auto-suficientes?

A auto-suficiência financeira consegue-se através de um conjunto de medidas devidamente articuladas, quer do lado do Estado, quer na vertente da exploração comercial do mercado, mas também do lado editorial, disponibilizando uma informação que seja de qualidade, relevante e confiável. Depois, há uma dimensão de políticas públicas, por forma a que se possa fazer face aos chamados ‘factores de contexto’, que no caso de Cabo Verde são bastante limitativos. O Governo pode, como acontece noutras paragens,comprar por antecipação espaços para publicidade institucional, o que representa liquidez para as empresas de comunicação social. Pode ajudar essas empresas a fazer face aos custos com as telecomunicações, internet e com os transportes. Pode comprar jornais para disponibilizar aos utentes que frequentam as repartições públicas, bem como às bibliotecas municipais e nacionais, escolas e universidades. Pode ter programas de apoio à contratação de jovens jornalistas. Tudo isso contribui para o reforço da literacia mediática, contribuindo também para reforçar os hábitos de leitura.

Há futuro para o jornalismo?

Hoje, mais do que nunca. A onda de desinformação constitui uma oportunidade para o jornalismo. É preciso recuperar o legado do jornalismo sério e rigoroso e sobre ele abraçar os novos desafios das sociedades em rede, onde as relações sociais são cada vez mais mediadas por computadores. O seu futuro, no caso de Cabo Verde, dependerá, cada vez mais, da arte e do engenho dos patrões e dos jornalistas, no sentido de criarem projectos editorais que consigam ir buscar muito do seu sustento financeiro ao mercado. Infelizmente, do lado dos governos, continua a reinar a miopia quanto ao imprescindível contributo da imprensa na consolidação da nossa democracia e no desenho de um modelo de desenvolvimento destas ilhas que seja sustentável. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,30 jan 2021 8:45

Editado porAntónio Monteiro  em  28 out 2021 23:21

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