“O jornal não é apenas uma empresa. Existimos para lá da lógica do lucro”

PorNuno Andrade Ferreira,30 jan 2021 8:45

Na semana em que o Expresso das Ilhas chega às suas mil edições, Lígia Pinto, administradora da Media Comunicações, empresa que detém o jornal, aborda os desafios da comunicação social cabo-verdiana e o papel de um semanário que é parte de Cabo Verde.

O Expresso das Ilhas chega à sua 1000ª edição em circunstâncias diferentes daquelas que imaginávamos há um ano. Como tem sido manter o jornal nas bancas, todas as semanas, em plena pandemia.

Não tem sido fácil, mas é preciso dizer que a pandemia só tornou mais evidente dificuldades que estavam assinaladas e para as quais temos vindo a chamar a atenção, ao longo dos anos. A questão do mercado, a questão da impressão, distribuição e outras. São desafios muito grandes, que o último ano apenas exacerbou.

Já lá vamos às condições de mercado, mas antes queria tocar no facto de o jornal ter continuado a sair semanalmente, mesmo durante o confinamento. Com tudo fechado e, imagino eu, uma quebra nas vendas, o que é que levou a empresa a decidir pela continuação da edição impressa?

O compromisso com o leitor e o com o anunciante. Tão simplesmente, o compromisso com quem lê e com quem anuncia. O jornal, como qualquer órgão de comunicação social, não é apenas uma empresa. Estamos sujeitos ao mercado, mas existimos para lá da lógica do lucro. Já não existiríamos, de resto, se assim não fosse. Temos uma responsabilidade social, cumprimos um papel importante e, portanto, em condições tão adversas, ajustámos a nossa oferta, redefinimos cadeias de distribuição, mas continuámos a chegar às pessoas, a quem nos lê todas as quartas-feiras. Se calhar, era mais fácil deixar de imprimir, mas isso nunca nos passou pela cabeça. Esse é, se me permite, um dos elementos que distingue este jornal. Essa resiliência e até teimosia em colocar o interesse público e o direito à informação em primeiro lugar. Demonstrado, se quisermos, mais um exemplo, na opção de há vários anos de continuar a imprimir numa gráfica nacional, ao invés de mandar imprimir fora, o que até permitiria reduzir custos.

À semelhança da generalidade da imprensa mundial, o Expresso das Ilhas tem, na sua edição online, uma audiência maior que na sua edição imprensa. Porquê a aposta no papel?

Sim, a questão da audiência é verdade, mas não pode ser a única variável. Eu digo isto muitas vezes e é algo em que acredito e que é secundado por especialistas e estudos. Um órgão de comunicação social não é apenas audiência bruta. É também a qualidade da audiência, a sua fidelidade, a sua atenção aos conteúdos, o seu retorno e engajamento. É ainda, claro, a qualidade dos seus conteúdos, o impacto que criam, a sua capacidade de marcar a agenda. Tudo isso são ponderáveis que têm que ser tidos em conta quando se faz a avaliação de um projecto editorial. A aposta do Expresso das Ilhas, ao manter uma edição impressa e uma online, é o reflexo desse entendimento. Cada um dos veículos cumpre o seu papel e trabalha para o seu público, embora complementar. No online, temos o acompanhamento da actualidade diária. No papel, um verdadeiro semanário, para ser lido com calma, num convite à reflexão e ao debate. A prova de que a estratégia faz sentido é que, do mesmo modo que, no online, temos tido taxas de crescimento anuais muito consistentes, no impresso, temos conseguido manter, e até aumentar, o número de leitores, por exemplo, com um aumento considerável das assinaturas.

Complementarmente, a Media Comunicações gere, desde 2012, uma terceira plataforma, a Rádio Morabeza. O que é que esta parceria trouxe ao vosso portefólio e ao negócio?

A parceria entre a Media Comunicações e a Rádio Morabeza é, para mim, o melhor exemplo de como a convergência de meios, num mercado como o nosso, pode ser muito vantajosa. A rádio tem a sua administração e estrutura accionistas, pelo que a Media Comunicações entra como parceira ao nível da gestão financeira e comercial e ao nível dos conteúdos. Há uma verdadeira simbiose, consolidada ao longo dos últimos nove anos, que foram de crescimento e afirmação de parte a parte. Conseguimos ganhos de escala interessantíssimos. A nossa abordagem ao mercado, feita em conjunto, é uma mais-valia. Do mesmo modo, a poupança pela partilha de estruturas e equipamentos e os ganhos pela integração das redacções são significativos.

O panorama mediático cabo-verdiano é pequeno e desigual. Repito uma pergunta que já foi feita muitas vezes: como é que se resolvem os problemas existentes para que possamos ter um espaço mediático mais plural?

A particularidade de estarmos sempre a falar do tema significa que os problemas continuam por resolver. Isto tem várias dimensões. Primeiro, a questão da gestão das empresas. As empresas têm de ser geridas de forma muito eficiente, com uma boa tesouraria, com uma política comercial muito dinâmica e adaptável e um grande realismo. Diria que, a esse nível, estamos num bom patamar, tanto no jornal, como na rádio. Procuramos ter zero ineficiências, sem deixar de cumprir com as nossas obrigações e fazê-lo de forma atempada, tanto a trabalhadores, como Estado e fornecedores. Mas isso não chega, porque, por melhor que tu abordes o mercado, por mais eficiente que sejas, se o mercado é disfuncional, tu chegas a um ponto a partir do qual não consegues avançar. No caso de Cabo Verde, temos várias disfuncionalidades identificadas. A primeira é a pequenez do mercado e a sua dispersão geográfica. A segunda, o pouco poder de compra. A terceira, os reduzidos hábitos de leitura. A quarta, um operador público sobredimensionado e multifinanciado.

E como é se resolvem essas disfuncionalidades?

Com intervenção do Estado. Eu digo isto e as pessoas pensam que estou a dizer que o Estado deve subsidiar os órgãos privados, como faz com o público, mas não é isso. Numa economia aberta, como a nossa, o papel do Estado é intervir para resolver disfuncionalidades existentes. Se um sector não funciona bem, se não há concorrência, o Estado intervém, criando mecanismos que visam resolver os problemas e garantir o funcionamento do mercado. Com a comunicação social é a mesma coisa. Através de benefícios ou isenções fiscais, por exemplo, em sede de IVA, dando folga às tesourarias. Com uma política de assinaturas públicas do jornal, levar o jornal a todas as escolas, a todas as repartições e organismos públicos. Tão simplesmente, com uma distribuição equitativa da publicidade institucional que, no nosso contexto, tem um peso importantíssimo. Se quisermos ir mais longe, com o estabelecimento de contratos-programa com os operadores privados, para cumprimento de missões de serviço-público, tal como admite a legislação. Ou com a retirada do operador público do mercado da publicidade comercial.

Já se falou da possibilidade de afectar aos órgãos privados uma parte da verba resultante da taxa de audiovisual, cobrada com a factura da Electra…

E porque não? Temos várias alternativas, as propostas do sector são conhecidas.

Mas o Estado já apoia os órgãos de comunicação social…

Sim, mas aquilo que temos agora são incentivos. É verdade que são importantíssimos para os meios que a eles têm acesso, e a actual tutela melhorou o processo, mas não resolvem o problema estrutural, que resulta das condições do mercado. É aí que é preciso intervir, porque é aí que a intervenção é mais justa e efectiva a longo prazo. A questão de fundo é a necessidade, com a qual todos concordamos, creio eu, de termos uma comunicação social mais forte, melhor preparada, mais diversa, que represente melhor aquilo que é a sociedade cabo-verdiana. Não estamos aqui a falar de o Estado apoiar as empresas para que estas distribuam dividendos aos accionistas. Não estamos nesse patamar, longe disso. A questão é de sobrevivência, de pluralidade e de vitalidade democrática.

Com tantas queixas que existem em relação ao jornalismo, alguém compreenderá que o Estado apoie de forma mais permanente as empresas de comunicação social?

As reclamações são justas. Nós precisamos de melhor jornalismo, estamos de acordo. Mas para termos melhor jornalismo, precisamos de melhores condições. No jornal e na rádio, precisamos de ter uma redacção que não esteja subdimensionada, que tenha jornalistas melhor remunerados. Precisamos de ter capacidade de modernizar equipamentos e de reportar a partir de qualquer ponto do país. Precisamos que, no conjunto, o panorama mediático seja mais concorrencial e que, na comparação público-privado, a balança esteja mais equilibrada. A experiência mostra-nos, exactamente, que o desenvolvimento do sector privado de comunicação social é fundamental para o desenvolvimento do jornalismo e, até, para a consolidação da democracia.

Que Expresso das Ilhas teremos nas próximas mil semanas?

O futuro o dirá. Da nossa parte, mantemos o compromisso que temos com os leitores e com os anunciantes, que é o compromisso com o rigor e a verdade. Somos, e creio que todos reconhecem isso, um jornal que fez um esforço muito grande para se afirmar como uma referência de seriedade e isenção, que deixa para as colunas de opinião aquilo que é opinião. Nos últimos anos, de forma muito especial, também nos tornámos um veículo de difusão cultural, com iniciativas marcantes em várias áreas, da literatura à música. Continuaremos a fazê-lo. Há uma vontade de inovação permanente, mas sem comprometer aquilo que é a missão do jornalismo: informar. O jornalismo é necessário. Os últimos anos mostraram-nos que o jornalismo faz falta, perante aquilo que é um contexto mediático confuso, contraditório, cheio de desinformação. É preciso que exista um espaço de ponderação, de verificação, de confiança. E esse é o espaço do jornalismo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,30 jan 2021 8:45

Editado porAntónio Monteiro  em  28 out 2021 23:21

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