Para fazer um balanço da Lei e falar sobre os desafios ainda existentes, o Expresso das Ilhas entrevistou Cláudia Rodrigues, que foi presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) de 2005 a Janeiro de 2011, a presidente da Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género (ACLCVBG), Vicenta Fernandes e a jurista que foi uma das consultoras na elaboração da lei, Dionara Anjos.
Em 2005, quando foi realizado o primeiro Inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva, integrando o módulo da violência doméstica, mais concretamente, da violência contra as mulheres, constatou-se que que uma em cada cinco mulheres no país era vítima de violência física por parte dos homens.
Em declarações ao Expresso das Ilhas, a antiga presidente do ICIEG, Cláudia Rodrigues, conta que foram os dados desse inquérito que serviram de base para definir uma política pública de combate à VBG, traduzida no Plano Nacional de Combate à Violência.
Quando foi elaborada, a Lei 84/VII/11 previu um conjunto de outras violências, como violência verbal, psicológica, violência física, violência sexual e assédio sexual. No entanto, a Lei VBG para além de tratar a violência como crime e punir, diz Cláudia Rodrigues, engloba a componente da prevenção e a componente da reabilitação.
“Considero esta Lei como um dos marcos mais importantes na promoção de igualdade de género”, considera Cláudia Rodrigues, justificando com o facto de a legislação trabalhar a prevenção, mas também a reabilitação, quer da vítima, quer do agressor.
Impactos da Lei VBG
“Hoje em dia, como temos o terceiro inquérito que integrou, pela segunda vez, o módulo da violência contra as mulheres, podemos fazer uma análise do que aconteceu nos últimos 13 anos porque se trata de um inquérito de 2018, feito por força da Lei. Por ser uma Lei que engloba a parte pedagógica, a parte da punição e a parte da reabilitação, teve um papel fundamental na mudança de atitudes e comportamentos não só das instituições, como os hospitais, os polícias e do Tribunal, mas também da sociedade como um todo”, analisa Cláudia Rodrigues.
Segundo esta entrevistada, as pessoas passaram a compreender o que é igualdade de género, o que é violência contra mulheres, o porquê da ocorrência desse fenómeno e o que deve ser feito para que não aconteça.
“E há uma mudança de atitudes e comportamentos visíveis no resultado do inquérito de 2018. Actualmente, está nos 10 %, ou seja, uma em cada 10”, aponta.
Cláudia Rodrigues afirma ainda que o trabalho feito de 2005 a esta data demonstra, “claramente”, mudanças a nível da sociedade e comprova que políticas públicas de facto têm efeito quando são bem implementadas.
A antiga presidente do ICIEG frisa ainda que não só o país e as mulheres ganharam com a criação da referida Lei, como o próprio ICIEG que viu o seu papel reforçado enquanto instituição que promove a igualdade de género.
Por sua vez, a presidente da ACLCVBG, Vicenta Fernandes, assume que nos últimos dez anos a Lei 84/VII/11 resolveu, em parte, os problemas das vítimas da VBG, bem como problemas dos direitos humanos em Cabo Verde.
“Nos últimos dez anos muita coisa mudou e pelo menos as pessoas conhecem ou sabem sobre a existência da Lei. Um dos grandes ganhos que esta legislação trouxe relaciona-se com o facto de que antes a violência doméstica ou violência de género não era um crime público e passou a ser um crime público. Aí, qualquer pessoa pode denunciar esse crime”, menciona.
Para a jurista e consultora Dionara Anjos, um dos maiores impactos da Lei VBG é o grande conhecimento da lei hoje em dia. Na sua opinião, esse conhecimento, para além de dar às vítimas mais força para denunciar, acaba por se tornar num desencorajador à prática do crime.
“As vítimas ficam alertas porque sabem que podem procurar ajuda e os agressores ficam alertas de que existe uma lei que os pode punir. Embora isso seja um processo e, assim como os demais crimes, não é o facto de existir uma punição que impede as pessoas de os cometer”, discorre.
Desafios
Vicenta Fernandes considera que ainda há muito a ser feito. No seu entender, há aspectos da Lei, que mesmo depois de uma década, ainda não saíram do papel.
“Por exemplo, a justiça muitas vezes não tem sido respeitada como indica o regimento. Ainda há muitas lacunas nesse sentido. Em relação ao Fundo de Apoio às vítimas, durante esses dez anos não saiu do papel e nós, enquanto associação, enquanto sociedade civil assistimos todos os dias situações gritantes relacionadas às vítimas. Não temos um fundo directamente para as apoiar. De uma maneira geral, consideramos que há mais desafios do que avanços da Lei VBG”, pondera.
A presidente da ACLCVBG avança ainda que a associação tem, neste momento, um projecto financiado pela União Europeia, com vista a realizar uma avaliação dos dez anos da lei VBG. O estudo participativo, revela, conta com a sociedade civil, políticos, ONG para qualificar a implementação da lei.
“Com esse estudo vamos ver a real situação do cumprimento desta Lei em Cabo Verde. Brevemente teremos condições de partilhar com os cabo-verdianos esse estudo para ver como estamos e que direcção podemos tomar de agora em diante”, anuncia.
Assim como Vicenta Fernandes, Dionara Anjos não nega os avanços conseguidos com a entrada em vigor da Lei 84/VII/11 de 10 de Janeiro. Contudo, acredita que ainda há um longo caminho a percorrer até à sua plena implementação.
Como exemplo, a jurista cita uma das recomendações da Lei, referente à capacitação contínua das pessoas que atendem às vítimas. Na altura, conta, o ICIEG proporcionou várias formações aos profissionais de diversas áreas sobre VBG e igualdade de género. Entretanto, não houve continuidade no processo.
“Primeiro, eu acho que um dos problemas relativos a isso é porque não há uma assunção na totalidade da responsabilidade dos sectores implicados na implementação da lei, por exemplo, a Saúde, a Administração Interna, que é a Polícia. Não se integra no plano de acção anual desses sectores capacitações sobre VBG e Igualdade de Género. Acredito que se fica muito a esperar pelo ICIEG sem assumir as responsabilidades”, julga.
De acordo com Dionara Anjos, um outro desafio que se apresenta à implementação da Lei VBG refere-se à criação de Centros de Apoio e Casas de Abrigo. Nesse quesito, a consultora considera que houve um retrocesso depois de 2016, com o fecho das Casas de Direito, onde havia juristas que prestavam informação jurídica e acompanhavam as vítimas aos Tribunais.
“Com o fecho das Casas de Direito, por aproximadamente um ano, os centros deixaram de existir, até que o ICIEG foi fazendo parcerias com as Câmaras Municipais para a sua instalação. Só que não se conseguiu ter as estruturas que tinham antes com as casas do Direito que já eram estruturas amplamente conhecidas na comunidade. Hoje as vítimas têm informação jurídica, sabem dos seus direitos, mas não têm ninguém para as acompanhar. Para mim, houve avanço nesse sentido e, ao mesmo tempo, retrocesso depois de 2016”, pressupõe.
Outras preocupações
A morosidade da justiça é uma preocupação de Dionara Anjos, que afirma que acaba por desestimular as vítimas e fortalecer os agressores.
“Eu tenho um exemplo meu como advogada num processo de VBG. O processo deu entrada em 2012 no Tribunal, a sentença saiu em 2014 e tivemos o processo-crime, o processo de reconhecimento dos direitos decorrente da sessão da união de facto com o agressor e um processo de alimentos. O recurso subiu para o Supremo Tribunal de Justiça em 2014 e só tiveram a decisão em Fevereiro de 2020”, exemplifica.
Antes da lei VBG, prossegue, a morosidade ainda era pior. Apesar de a Lei estabelecer que um processo no Tribunal deveria ser resolvido em aproximadamente 90 dias, tal não acontece.
“Um outro problema são as verbas. Para implementar as actividades da lei VBG é preciso ter fundos. A lei propõe a criação de um fundo de apoio às vítimas que, inclusive, 50% dos custos do processo de VBG nos Tribunais sejam revertidos para esses fundos, além dos valores do Orçamento do Estado e outros valores de doações. Esse fundo foi criado em 2015, só que nunca foi implementado. Então, os valores dos processos de VBG não vão para lugar nenhum, continuam no cofre de justiça ao invés de poder estar sustentando o funcionamento dos centros de apoio à vítima e as casas de abrigo e ainda do programa de reabilitação dos condenados da VBG”, condena.
Dionara Anjos declara ainda que os artigos da Lei VBG que passaram para o Código Penal no mês de Fevereiro, não favorece em nada o combate à VBG. Isto porque, explica, o crime já existia dentro de uma lei especial que não apenas trata do crime, mas também de diversas outras medidas para a Polícia, Procuradoria, Tribunal, entre outros.
“Quando se retira o crime de VBG dessa lei especial que tem muito mais do que o crime e passa para o Código Penal, acaba por enfraquecer a lei especial favorecendo o não recurso à lei. Quem vai aplicar a lei agora não precisa recorrer a lei VBG e isso quer dizer que os outros artigos vão agora ser ainda menos conhecidos do que eram”, comenta.
Na mesma linha, Cláudia Rodrigues reitera que há espaço para melhorar a legislação, em particular a componente do assédio sexual. Nesse sentido, sugere que é preciso respostas mais concretas no assédio que se vive nas ruas, nas escolas, entre colegas no mesmo espaço profissional e em várias outras situações que não se resume ao contexto laboral.
“A outra parte que eu acho que deve ser cada vez mais reforçada e melhorada é a implementação da Lei. Mas, penso que alguns passos já foram dados, esse ano por exemplo, o ICIEG introduziu a igualdade do género no ensino secundário e primário, uma das recomendações da Lei VBG. Temos a questão das casas de abrigo, algumas estão a funcionar, mas a rede deve ter maior resposta, os centros de atendimento à vítima sempre devem ser reforçados em termos de capacidade de resposta tanto técnica como de terem capacidade financeira para funcionarem e continuarmos a formar e a capacitar”, aconselha.
No entender de Cláudia Rodrigues, deve-se ainda fazer várias formações, treinos de reciclagem aos polícias, assim como sessões de reflexão com os magistrados para que de facto se cumpra todos os requisitos do regimento.
“A Lei exige que se dê tratamento imediato, mas nem sempre isso acontece e muitas vezes também nem todos os casos são tidos com a importância e a urgência que deveriam ter. Muitas vezes há vítimas que fazem a denúncia, mas por não sermos tão rápidos, pelo facto dos processos ficarem parados pode acontecer tragédias. E tem acontecido casos de pessoas que denunciaram, o processo não saiu muitas vezes do papel e houve consequências graves para as vítimas”, pontua.
Caixa:
VBG em números
Segundo os dados do III IDSR houve uma diminuição da proporção de mulheres vítimas de violência física, em cerca de 10 pontos percentuais, passando de 21% em 2005 para 11% em 2018.
O estudo aponta ainda uma maior prevalência de vítimas de VBG entre as mulheres divorciadas/separadas ou viúvas (32,9%), mulheres que têm emprego remunerado (13,6%) e as com um nível de ensino básico (18,7%).
No que concerne à violência sexual, novo item introduzido no IDSR-III, foi registada uma prevalência de 5,8% de mulheres que sofreram este tipo de violência desde os 15 anos de idade, e 3,4% foram vítimas num espaço de 12 meses (de Fevereiro de 2017 a Fevereiro de 2018).
Durante o confinamento imposto pela pandemia, o ICIEG criou a linha SMS 110, um email e a [campanha] máscara 19 para que as vítimas pudessem denunciar as agressões.
Dados apontados pela actual presidente daquela instituição, Rosana Almeida, ao Expresso das Ilhas, revelam que durante o confinamento o aumento da VBG cifrou-se nos 8%. Uma percentagem bem abaixo da média internacional, já que alguns países registaram um aumento de até 70%.
No entender de Rosana Almeida, isso reflecte o sucesso das medidas tomadas. Além disso, aponta, mesmo no Estado de Emergência as instituições envolvidas nesta problemática funcionaram.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1006 de 10 de Março de 2021.