Às 22h30 de dia 19 de Março, o Ministério da Saúde recebia o resultado de um teste feito a um turista na Boa Vista. O pior confirmou-se: o paciente, um inglês de 62 anos que estava hospedado no resort Riu Karamboa, estava infectado com SARS-CoV-2. Cabo Verde já havia passado por “nove” sustos. Entre nacionais e estrangeiros, desde 2 de Março, eram já conhecidos os resultados de 9 casos suspeitos, todos eles negativos. Mas sabia-se que era uma questão de tempo até a pandemia, que surgiu em Wuhan (China) em Dezembro de 2019, chegar a Cabo Verde. E esse dia chegara.
Os dias que antecederam a confirmação do primeiro caso tinham sido intensos. A nível mundial, a OMS declarara a 11 de Março, a pandemia. Em Cabo Verde instalou-se um Laboratório de Virologia e os exames, antes realizados no estrangeiro, passaram a ser feitos em território nacional. Os eventos e festas iam sendo, por esses dias, cancelados em dominó. As medidas do Plano de Contingência estavam em curso, tinha sido criada uma linha verde para a covid, para onde deviam ligar as pessoas que tivessem sintomas. Encerravam-se espaços culturais, desportivos, discotecas, condicionava-se o atendimento ao público e os horários da restauração e cancelavam-se voos.
Cabo Verde isolava-se do mundo para se proteger da pandemia com interdição de voos para/de vários destinos a entrar em vigor (coincidentemente) às 0h00 de dia 19. O cenário de encerramento de fronteiras começava, aliás, a espalhar-se por todos os continentes.
Uma das maiores preocupações era … ficar sem comida e outros bens essenciais. O governo apelava “a que se evitem corridas aos supermercados” e lembrava que o “açambarcamento é uma infracção contra a economia”, punível por lei.
Temia-se já o impacto económico da pandemia, tentando avançar medidas para o mitigar. E anunciava-se a antecipação das férias escolares da Páscoa de dia 27 para 23. A previsão era, porém, que as aulas recomeçassem a 13 de Abril, o que como se sabe não aconteceu…
Os relatos internacionais que chegavam por via da imprensa e testemunhos da diáspora eram assustadores. Itália era então o país que mais sofria com o novo coronavírus. O repatriamento de cidadãos de todo o mundo já estava a ser organizado e Cabo Verde não foi excepção. Aos que chegavam, mormente em voos fretados pelo governo, era imposta quarentena obrigatória nos hotéis designados para acolhimento na Praia e Sal (nos locais de desembarque, portanto).
A 19 de Março, dia do primeiro caso em Cabo Verde, registava-se a nível mundial 230.736 casos de infecção, 86.261 recuperados e 9390 mortes relacionadas com o “novo” coronavírus…
Boa Vista
Com o diagnóstico positivo do turista inglês, no dia seguinte (20), foi anunciado que toda a ilha da Boa Vista ficaria isolada, de quarentena durante 14 dias. E dentro da ilha, mais concretamente no Hotel onde estava hospedado o paciente, 850 pessoas ficariam em isolamento. Dessas 210 eram funcionários. Os restantes, seriam entretanto transferidos para os seus países de origem.Um forte contingente composto essencialmente por pessoal da saúde, protecção civil e forças armadas rumou para a ilha.
Dois casos mais, entre turistas também, foram confirmados. E apesar do isolamento obrigatório, sucederam-se relatos de botes a sair da Boa Vista, com cidadãos que fugiam assim do (até então único) foco da doença no país.
Ailton Tavares, de 35 anos, foi um dos funcionários do Karamboa que ficou isolado no hotel. Aí esteve durante 25 dias, ao fim dos quais foi enviado para casa, sem sintomas, mas também sem ser testado, num dos movimentos mais mal pensados do combate à pandemia em Cabo Verde.
Foi já à sua casa, pouco depois de ter saído da quarentena, que as autoridades o foram buscar para fazer isolamento, agora num outro espaço (o Decameron). Conheceu o resultado do exame a 15 de Abril, dia em que em 196 amostras aos trabalhadores do Riu Karamboa, 44 testaram positivo (aumentando para 50 o número de casos relacionados com esse espaço e passando de 11 para 55 o total de infectados a nível nacional). O governo, pela voz do Primeiro-ministro, assumiu erros na gestão da situação, mas criticou também a irresponsabilidade dos trabalhadores que, na quarentena, não terão cumprido as normas estabelecidas.
Ailton foi, como se dizia, levado para o Decameron, onde permaneceu 19 dias.
“Eu sentia apenas dores de cabeça, mas nada de especial. Já estive pior com uma simples gripe”, recorda. Aí, conta, o acompanhamento médico era feito essencialmente por telefone. Todos os dias ligavam para saber como estavam, e “à tarde sempre havia um enfermeiro para medir a temperatura de todos no hotel.”
Como entre sair do Karamboa e ir para o isolamento houve contacto dos trabalhadores com as suas famílias, estas também foram testadas. A esposa de Ailton fez o teste PCR, mas o resultado nunca foi conhecido. “Pressuponho que tenha sido negativo, já que ela não foi isolada,” diz.
Em Abril, ainda não se sabia o que se sabe hoje sobre a covid. A desinformação era muita, o medo também. Quando soube que estava contaminado o funcionário ficou “em pânico devido às notícias que acompanhava sobre o vírus. Estava com bastante medo.”
“Depois, fui seleccionando as informações que eu consumia e comecei a relaxar e a encarar a doença normal. Aproveitei o isolamento para ler muito, a minha família ajudou-me... Ligavam a todo o momento. Se no início foi difícil, depois foi um aprendizado”.
Estado de Emergência
De Boa Vista para a Praia, e andando um pouco atrás, no tempo. Menos de uma semana depois do aparecimento do primeiro caso de covid em Cabo Verde, e quando o país totabilizava já 3 casos, todos na Boa Vista, confirmou-se o primeiro caso na cidade da Praia. O paciente era um cidadão nacional, de 43 anos, que tinha voltado recentemente de uma viagem a França, tendo passado também por Portugal. Esse cidadão terá chegado no dia 18 de Março, e entrado em quarentena voluntária. Seguido pela Delegacia de Saúde, quando começou a apresentar sintomas compatíveis com a covid-19, foi internado no Hospital Agostinho Neto. Testes à família indicaram que esposa tinha sido infectada e que se tornava assim o quinto caso confirmado em Cabo Verde e o primeiro de contágio local.
Entretanto, faleceu o cidadão inglês na Boa Vista.
A 26 de Março, Cabo Verde passou do nível de Contingência da Protecção Civil para Situação de Risco de Calamidade. Na prática isto significou que as medidas restritivas para fazer face à pandemia de COVID-19 endureceram. Entre outras, ficou proibido o movimento de pessoas entre as ilhas. Foram também “encerrados todos os serviços e empresas públicas, em todo o território nacional”, mantendo-se apenas os serviços mínimos. No mesmo dia, noticiava-se que haviam já sido detidas pessoas por não respeitarem as medidas restritivas para combater as infecções. O governo e parceiros lançavam o site covid-19.cv, ainda hoje em funcionamento.
À medida que se endureciam as restrições, eventuais conflitos com a Constituição empurravam para a necessidade da declaração do Estado de Emergência. Assim, a 27 de Março, pela primeira vez na história de Cabo Verde, este foi decretado.
Paralelamente, nesse dia da Mulher Cabo-verdiana foram anunciadas várias medidas dirigidas ao sector informal, idosos e outras camadas mais vulneráveis ao choque da pandemia. O governo estimava que o desemprego irá disparar para os 20% e o ministro das Finanças alertava para aquilo que era expectável: o Orçamento do Estado para 2020, “pifou”, disse.
Supercontagiadores
Às medidas sanitárias (e também por causa delas) foram-se somando as medidas de mitigação do impacto económico, como algumas já acima referidas e outras como programas de assistência alimentar, linhas de crédito, moratórias, lay-offs, e afins… o que se prolonga até hoje.
A 2 de Abril que foi diagnosticado o primeiro caso em São Vicente, sétimo em Cabo Verde, numa senhora de origem chinesa.
A 7 de Abril era noticiado que o primeiro caso de infecção da Praia tinha tido teste negativo à covid. Contudo ainda não era considerado “recuperado”. Na altura os critérios eram muito mais rigorosos do que hoje, para ser considerado como tal. Eram necessários mais testes, e mais dias de observação. Ao longo do ano as orientações internacionais foram mudando e Cabo Verde seguiu-as.
Em Abril já tinha destaque a corrida às vacinas que permitiu, pela primeira vez na história da ciência, chegar a um imunizante em menos de um ano. Corrida que vai permitir também que hoje, dia em que se assinala um ano de covid em Cabo Verde, comece a vacinação em Cabo Verde.
Ao país continuavam a chegar equipamentos adquiridos e, muitos, doados pelos parceiros. Estávamos também na altura em que a OMS desaconselhava o uso generalizado de máscara (lembra-se?).
Ainda a cronologia: a 16 de Abril o Estado de Emergência foi prolongado até 2 de Maio em Santiago e Boa Vista e até 26 de Abril nas restantes. “É tempo que não é perdido”, garantia o Presidente da República, pois as vantagens da paralisação farão com que esta valha a pena. Assim, a vida do país continuou quase em suspenso.
A 17 de Abril surgia o quarto caso na Praia, um homem de 43 anos, residente em Ponta d´Água. Vários contactos desse homem foram investigados. Muitos tinham infecção por SAS-CoV-2, o que mostra, também em Cabo Verde que a hipótese dos chamados supercontagiadores ( pacientes que, por alguma característica, conseguem disseminar a doença a um grande número de pessoas) parece ser correcta. Na verdade, segundo os investigadores internacionais, cerca de 10% dos casos levaram a 80% da propagação da doença.
Na altura, ainda todos os dados, excepto o nome, eram dados. Mas isso foi antes do número aumentar tanto que se tornou difícil recordar e falar em detalhe de todos os casos, e antes de se começar a periclitar sobre o direito à privacidade (versus informação de utilidade pública). Desde então deixou-se fornecer informações específicas sobre os pacientes e até dados relativos os bairros mais afectados deixaram de ser referidos.
A 19 de Abril, um mês após o primeiro caso de covid o cenário nacional era o seguinte: 61 casos de infecção pela COVID-19, sendo 51 na Ilha da Boa Vista, 9 na Cidade da Praia e 1 em São Vicente.
E nos dias seguintes os casos continuaram a subir… a subir…
Na cidade da Praia, os infectados assintomáticos ou com sintomas leves começaram então a ser encaminhados para residência estudantil da Escola de Hotelaria e Turismo de Cabo Verde (EHTCV), Estádio Nacional e outros, ficando no HAN apenas os pacientes em estado mais graves.
Também em Abril, já sem grandes esperanças de uma retoma das aulas, começava, a 27, o programa educativo "Aprender e Estudar em casa”, para o 1.º ciclo e sem fins avaliativos.
O fim do estado de Emergência (em todas as ilhas menos Santiago, Boa Vista e São Vicente), não trouxe normalidade. Houve uma manutenção de várias regras, e medidas tomadas no sentido de evitar os contágios. Destacam-se três: “o uso de máscaras faciais, a organização e a higienização dos espaços de atendimento ao público e a realização de testes rápidos”. Aqui, estamos mais ou menos na mesma…
E num cenário distópico, as autoridades de saúde repetiam à exaustão os alertas para os cuidados, nomeadamente o confinamento. O objectivo essencial era, então, ganhar tempo…
Isolamento
O mês de Maio começou mal, com a segunda morte relacionada pela covid a ocorrer no país, mais concretamente na Praia. A vítima era uma senhora de 92 anos.
O neto Rodney Fernandes, recordou mais tarde em entrevista ao Expresso das Ilhas, os momentos que antecederam o óbito. A senhora começou a apresentar algumas complicações no estado de saúde - mais fraqueza, alguma tosse, coisas que são vistas como “normais” para alguém de idade tão avançada. Recorreu-se aos serviços de saúde, mas nenhum teste foi feito à idosa.
Entretanto, a avó morreu. Nesse dia, “às 10h00 comunicaram-nos que a minha avó tinha falecido, foi enterrada às 14h00 e quando eram 17h00 a ambulância foi-nos buscar, a mim e a outros quatro membros da minha família, em casa. Foi um dia de grande choque”, afirma.
O modo como a recolha dos pacientes era feita e a curiosidade mórbida que provocava eram, por si só, perturbantes. Rodney conta que quando o foram buscar para ser levado para o isolamento, a rua se encheu de pessoas que queriam assistir ao momento. Muitos dos seus amigos, alguns até no estrangeiro, souberam que estava infectado porque alguém filmou o momento em que as autoridades de saúde o recolheram e divulgou o vídeo nas redes sociais.
“As pessoas têm medo do preconceito da sociedade”, confessou em entrevista dada em Maio.
Feito o teste, Rodney que teve sintomas ligeiros e apenas durante três dias, foi colocado em isolamento na Escola de Hotelaria.
Houve várias críticas aos hospitais de campanha, e os custos avultavam-se à medida que os casos registados se exponenciavam.
A 25 de Junho, dia em que Cabo Verde ultrapassou os mil casos (1003) de covid-19 as autoridades informavam que as regras para a operacionalização do isolamento domiciliar estavam prontas para serem aplicadas. Só na Praia e só para quem tivesse condições. A partir de 1 de Julho, começou então o isolamento domiciliar na capital.
Isolamento domiciliar
Não foi só o isolamento que mudou, toda a forma de lidar com os pacientes evoluiu. Como o caso de Ana, residente da Praia, onde o facto tempo (em pandemia) lhe proporcionou uma experiência completamente diferente com a doença.
Ana, como a maior parte dos pacientes, não sabe dizer nem onde nem quando contraiu o vírus. Em Novembro, a certa altura perdeu o cheiro e o paladar. Desconfiou logo do que se tratava e dirigiu-se ao centro de saúde do seu bairro. “Fiz o teste PCR no dia 21 de Novembro e deram-me o resultado no dia 24”. Entretanto, por iniciativa própria, Ana já se isolara em casa. Com diagnóstico positivo, os contactos com as autoridades de saúde ocorreram amiúde, sempre por telefone. “Ligaram para saber se eu tinha condições de lidar com a quarentena (esgoto, água canalizada, compartimentos da casa, …). Disseram que viriam ver as condições da casa, mas não chegaram a vir. Mas ligavam sempre a perguntar se estava bem, os sintomas…. Depois ligaram para dar a alta”, recorda.
Assim, o período de infecção, não foi muito mau. “Socialmente, não foi nada de mais. Cumpri a minha quarentena, não saí de casa, as pessoas que tinham que saber [que estava infectada] no momento souberam, e tudo foi tranquilo. Psicologicamente o que fazia muita confusão era a falta total do olfato e do paladar, que são importantes para mim”. Tanto quanto sabe, nenhum dos seus contactos apanhou covid. Nem sequer a filha que esteve sempre com ela.
Alguns meses mais tarde, em inícios de Fevereiro 2021, também Carlos testou positivo, na Praia. Os sintomas eram muito leves. Não perdeu o olfacto e paladar, e poderiam ser outra coisa qualquer, mas por precaução foi a um laboratório fazer um teste de antigénio. Deu positivo. Daí foi fazer o PCR no centro de saúde, levando o documento do resultado do teste rápido, e comprovou-se que estava positivo. Avisou a entidade laboral e durante 15 dias manteve-se em casa. Os seus contactos directos fizeram testes. Ninguém mais acusou SARS-CoV-2. Onde apanhou o vírus? Também ele não sabe. Desconfia daquela vez que foi a um serviço público. “lá dentro estava quente, tudo fechado e sei que a praticamente todos os funcionários dessa instituição tiveram covid”. Mas certezas não tem. Quando se soube que tinha covid, um grupo de enfermeiros foi a sua casa, mas após essa primeira visita, em que avaliaram as condições, apenas era contactado amiúde por telefone, por uma enfermeira do centro de saúde. Estava bem, apenas tinha falta de apetite.
Entretanto passou a quarentena e ao fim de 15 dias teve alta. Simples assim.
Maio
Voltando à ordem cronológica… Maio. A produção de máscaras comunitárias (cada vez mais em desuso a favor das cirúrgicas e afins) decorria a todo o gás. O número de infectados estagnava em todo o território excepto na Praia onde todos os dias surgiam casos.
É de lembrar que nessa altura ainda se contabilizavam e noticiavam casos suspeitos. A nível internacional Trump ainda defendia a Hidroxicloroquina, Rajoelina a Covid-Organics e Shinzo Abe, o Avigan. Tudo balelas, como hoje se sabe.
A 7 de Maio, 27 profissionais de saúde do Hospital da Trindade foram diagnosticados com COVID-19. Nos dias seguintes o número subiria para 40. Havia também 15 agentes da Polícia Nacional infectados.
A 11 retomavam-se dos transportes inter-ilhas de passageiros vai arrancar segunda-feira, 11 de Maio, entre a ilhas(excepto Santiago e Boa Vista que ainda estavam em EE).
No Turismo, principal fonte de rendimento por cá, noticiava-se lá fora que 100% dos destinos mundiais tinham restrições às viagens e 72% (nos quais se incluía Cabo Verde) fecharam completamente as suas fronteiras ao turismo internacional. Em Cabo Verde, anunciou o Vice-primeiro ministro e Ministro das Finanças estava já a ser preparado um programa de segurança sanitária para a retoma.
A meio do mês, Boa Vista saiu do Estado de Emergência que só foi prolongado em Santiago, e nesse mesmo dia, mais um concelho se somava aos municípios com casos: Santa Cruz.
No dia 16 morria mais um paciente, o 3.º. Iniciava-se ainda neste mês a testagem massiva com testes rápidos.
A 19 de Maio, dois meses depois do aparecimento do primeiro caso, Cabo Verde registava um total acumulado de 334 no total, e 3 óbitos. Dois dias depois, na Boa Vista os últimos pacientes internados tinham alta, e Santiago era então a única ilha com casos de infecção pelo novo coronavírus.
Por esta altura pensava-se que o vírus estaria circunscrito à Praia, ou pelo menos a Santiago. Mas o caso de uma grávida evacuada do Sal para São Vicente mostrou que não era assim.
No fim do mês de Maio, no mundo registavam-se 6.229.776 casos de infecção dos quais 2.779.488 recuperados. Já 372.888 pessoas tinham morrido devido ao novo coronavírus.
COVID na gravidez
Falando em grávidas. É de lembrar que o bebé da paciente que foi evacuada do Sal para São Vicente – primeira grávida diagnosticada com covid - nasceu sem infecção por SARS-CoV-2.
Mas para elas foi uma época complicada. As dúvidas sobre como o coronavírus agiria sobre os bebés e mães era uma constante. Já não bastaria os medos “normais” da condição, estes sem dúvida foram agravados pela pandemia. Damos aqui um salto no tempo (até finais de Novembro) para falar de Gui (nome fictício) que descobriu estar com covid durante a gravidez. Um colega do marido testou positivo, e assim o marido, sem qualquer sintoma, foi fazer teste. Gui por seu turno teve sintomas sim: perdeu o cheiro. Também ela estava pois positiva. Da família, apenas a filha deu negativo (embora tenha feito, mesmo assim, a quarentena com os pais).
Grávida, claro que Gui ficou aflita. Além disso, pouco sabiam dizer-lhe sobre os impactos na criança. Nos contactos telefónicos com as autoridades de saúde, “que é coisa nova, que não sabiam dos impactos nos bebés, não tinham estudos sobre o assunto…”
Depois, na consulta com a ginecologista já depois da quarentena ficou mais sossegada. Tudo parecia bem, a fase pior da doença já passara e a médica falou-lhe inclusive de uma criança que nascera com covid, mas não tinha tido qualquer problema. E também no caso de Gui, tudo correu bem.
Santa Cruz
O estado de Emergência terminava em Santiago a 29 de Maio.
A dia 19 de Junho, quando se completavam 3 meses de covid em Cabo Verde, o país contabilizava 849 casos acumulados de COVID-19 e 8 óbitos.
A partir Junho e durante algumas semanas um outro foco surgiu em Cabo Verde: Santa Cruz. Em crescendo, os casos sucediam-se.
Estávamos a entrar no mês de Julho quando Patrick Silva, de 30 anos, descobriu que estava infectado.
“Eu fui 100% assintomático, nem uma febre, nem dores de cabeça, absolutamente nada. Só fui fazer o teste porque o meu amigo, que é muito próximo, testou positivo e indicou-me como contacto”, recorda. Na sequência da indicação do amigo, Patrick foi contactado pela delegacia de saúde. Com resultado positivo, Patrick foi encaminhado para a Assomada, fazer isolamento no hospital de campanha. Aí esteve 14 dias. Durante esse tempo, “tomei vitamina C todos os dias. Não mediam a temperatura, nada. Apenas vitamina C”.
A doença, conta, não o afectou nem psicologicamente, nem socialmente. “Não me afetou em nada. Não tive medo, não sofri nenhum preconceito, absolutamente nada. Foi normal, como uma doença qualquer”. Não há sequer sequelas. “Ficou tudo igual…” Felizmente.
A rede de laboratório do país continuava a espalhar-se, e em várias ilhas onde não nunca tinha havido casos, estes começavam a surgir.
A 19 de Julho, o país contabilizava 2042 casos positivos acumulados e 21 mortos.
A abertura do espaço aéreo internacional, prevista para Julho foi adiada. E em Agosto abriu apenas uma linha especial com Portugal.
A 19 de Setembro assinalavam-se seis meses desde o primeiro caso diagnosticado em Cabo Verde. Todas as ilhas já tinham tido casos, excepto a Brava. Mais 5000 mil casos acumulados e 52 óbitos era o balanço do semestre. Santiago, em destaque a Praia, era o principal foco da doença.
E Outubro os números de infectados e óbitos subiram. E no 7.º mês da pandemia, Cabo Verde tinha mais de mil casos activos de covid, espalhados um pouco por todas as ilhas. Contava ainda com 6348 casos recuperados, 79 óbitos. Antes do mês acabar, havia já 94 óbitos.
Fogo
Chegados a Novembro, uma outra ilha apresentava os piores números: o Fogo. Tanto, que em finais desse mês, São Filipe (com 188) superava a Praia (128) em termos de casos activos.
Foi em Novembro que Mateusresidente em São Filipe contraiu covid. Não se lembra bem da data, mas terá sido na primeira quinzena. Isto porque o motivo que o levou a fazer o teste de despiste foi o de ter tido contacto com muitas pessoas durante a campanha para as eleições autárquicas de 25 de Outubro
“O teste deu positivo, mas não senti nenhum tipo de sintoma. Na verdade, os únicos sintomas que senti foi a falta de gosto e olfacto”, conta.
Ao contrário de Ana e Carlos, pacientes da Praia, os entrevistados de São Filipe estiveram num centro de recuperação.
Cinco dia depois da realização do PCR, foi informado de que o teste deu positivo e Mateus foi encaminhado para Almada (onde as pessoas infectadas foram albergadas) e a sua mãe, que entretanto testou igualmente positivo, também.
“Eu pedi para a minha mãe ficar em casa, mas as autoridades sanitárias disseram que ela não. Ela precisava ser acompanhada por um médico.”
Nesse centro, critica havia problemas com os horários das refeições, e a comida era indiferenciada. “Havia ali pessoas com problemas de tensão arterial e outros!”, aponta. Também deveria haver, considera, “um médico permanente para atender os infectados” e oxigénio disponível. “Em relação aos enfermeiros devo dizer que deram o seu máximo, atendiam-te na hora e foram 100 por cento”, elogia.
A reacção dos entrevistados à notícia da doença evoluiu imenso durante o ano. Se nos primeiros tempos, como conta Ailton e Rodney, havia algum receio e estigma social, quando Mateus testou positivo
“Já tínhamos começado a relaxar. Não era como no início da pandemia em Cabo Verde em que as pessoas ficavam em pânico”. Hoje, acredita, “ninguém kastâ ta ligal más”.
Claudino testou também positivo no início de Novembro e recebeu a notícia com tranquilidade, até porque não era de grupo de risco, mas o seu caso complicou-se ao ponto de ter de ser transferido do centro de recuperação perto da cidade de São Filipe, para o Hospital São Francisco de Assis.
Tinha sido chamado pela delegacia, no âmbito de uma investigação epidemiológica, para fazer teste. Primeiro fez quarentena em casa, depois já com alguns sintomas, no centro e após alguns dias foi evacuado para o Hospital, onde ficou internado “aproximadamente 10 dias internado”.
“Segundo os médicos que estavam lá, eu inspirava alguns cuidados e estive uns dias com oxigénio”, recorda.
Na verdade, esse tempo no hospital foi um pouco medonho. “É um ambiente fechado , com restrições, sem contacto familiar ou com pessoas próximas. Tive alguns receios, na verdade, mas com o passar dos dias fui-me consciencializando que estava no hospital, tinha de ficar la péla minha saúde, e acabei por encarar isso como uma coisa normal. Depois passei mais tranquilo aqueles dias no hospital”, diz, acrescentando um agradecimento aos médicos, enfermeiros e todos profissionais que trabalham com a covid.” sempre fizeram um trabalho incansável, em São Filipe, é de louvar”, diz.
Óbitos
Dezembro chegou com uma notícia positiva, a nível internacional: o Reino Unido iniciava a vacinação em massa contra o coronavírus. Era o primeiro. Outros se seguiram.
Mas em todo o mundo e em cabo Verde também pessoas continuavam a morrer com/de covid.
O senhor Manuel faleceu antes da sua ilha, São Vicente, se ter tornado (por algumas semanas) o principal foco do país. Morreu em início de Dezembro, pouco depois da boa notícia para o país que de 34 óbitos em Outubro se descera para 10 no mês seguinte. O país tinha então somado já 105 óbitos relacionados com a covid.
O senhor Manuel tinha já 88 anos e apesar de algumas complicações de saúde relacionadas com a idade, mas nada preocupante. Em finais de Novembro terá contraído pneumonia. E depois, covid. Aonde? Não se sabe, até porque nenhum contacto próximo acusou positivo. O que é certo é que o sr Manuel foi às urgências do Hospital Baptista Sousa. Fez um PCR, do qual nunca se chegou a saber o resultado. Voltou para casa. Foi-lhe depois feito um segundo teste, de antigénio que deu positivo.
Entretanto, cerca de dez dias depois de ter estado no banco de urgências foi para lá levado e internado. Faleceu passados quatro dias. Os procedimentos nos funerais em época de covid são terríveis para a família. Tratando-se do óbito de um paciente com covid, pior ainda. Ninguém pode ver o corpo, e normalmente nem se entra no cemitério.
“Não vês o corpo ser enterrado”, conta o filho. O senhor Manuel morreu de madrugada de uma quarta-feira, recorda ainda e foi a enterrar às 12h do mesmo dia. Nem esperaram por si, que mora em outra ilha, e só conseguiu aterrar às 14h30. E outra coisa que é também perturbante é que o pai não pode ser enterrado junto da mãe.
“A minha mãe morreu e está enterrada num espaço comprado [pela família]. Mas o meu pai não foi enterrado nessa cova, porque disseram que não dava tempo para a abrir. Tinha de ser numa que já estivesse escavada”. Resta agora esperar um tempo, até poder exumar e transladar os ossos para poder juntar pai e mãe.
Boom depois das Festas
A 19 de Dezembro, no 9.º mês da pandemia, havia em Cabo Verde um total acumulado de 11.567 casos positivos, dos quais 111 tinham resultado em óbitos. 239 permaneciam activos e havia, então, 11.211 pessoas dadas como recuperadas.
Depois veio o Natal e a passagem de ano. Várias restrições foram estabelecidas para estas celebrações, mas nem todas terão sido cumpridas. Logo depois das festas, São Vicente viu subir o número de infecções, e tornou-se o ponto mais preocupante do mapa da covid-19.
Foi mais ou menos nessa altura do “pico” em São Vicente, que João fez um teste de despiste à covid. Tinha uns sintomas leves, mas sabia que algumas pessoas com quem teve contacto tinham testado positivo. Também João estava infectado.
Jovem, com uma vida regrada e nenhum problema de saúde a notícia foi porém recebida com preocupação. Não por si, mas pelos outros que pudesse ter infectado.
“A minha primeira reacção foi avisar a família, avisar os colegas e amigos, para ficarem atentos e fazerem o teste”, conta.
E sentiu-se sim assustado. “Ficas preocupado por causa de pais e amigos e outras pessoas. Porque não queres ser nunca a pessoa que traz o infortúnio para os outros” principalmente quem tem algum problema. “O resto é tranquilo”.
João fez quarentena em casa. Recebeu um telefona onde foi indagado sobre as condições para fazer o isolamento em casa e “mostraram-se disponíveis para o que fosse necessário”. Depois recebeu outros telefonemas de acompanhamento que incidiram mais sobre as questões psicológicas da doença, até porque sintomas, basicamente não teve.
A parte boa de tudo isto, aponta, é que depois se sente um “bocadinho de alivio” pela imunidade que é expectável ter adquirido por alguns meses, confessa.
A 19 de Janeiro, Cabo Verde registava 120 mortes e quase 700 casos activos de covid.
Até dia 16 de Março, a poucos dias de assinalar-se um ano de covid, o ministério da saúde dava conta de 435 casos activos, 15549 casos recuperados, 157 óbitos, 5 óbitos por outras causas e 8 transferidos, perfazendo um total de 16154 casos positivos acumulados
Vacinas!
Este ano não houve Carnaval nem Cinzas. A retoma turística custa a avançar e foi sofrendo também revés à medida que novas ondas afectavam um o país e, muito, os países emissores. Mas o que dominou o mês, para além dessa ausência do Carnaval, foi a corrida às vacinas. A 18 de Fevereiro o governo publica no BO um plano nacional de vacinação que, indicativamente, prevê vacinar 60% da população até 2023 (20% em cada um dos três anos).
A 12 de Março chegava o primeiro lote de vacinas a Cabo Verde. A 14 o segundo. A partir de dia 19, vai iniciar-se a vacinação, primeiramente nos profissionais de saúde, e depois nos outros grupos prioritários estabelecidos no Plano. O objectivo pretendido vai muito além do plano: conseguir vacinar 70% da população até ao fim deste ano. Conseguir a imunidade de grupo. Até lá, vamos seguindo com o aprendizado de um ano de covid.
*Testemunhos recolhidos por André Amaral, António Monteiro, Fretson Rocha (rádio Morabeza), Sheilla Ribeiro e Sara Almeida. Alguns nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.