“Usávamos máscaras quando era necessário, em situações que nos obrigavam a usar. O dia-a-dia no trabalho era mais fácil, agora para trabalhar em qualquer situação é preciso o máximo de cuidados, usar máscaras perante os colegas e perante os doentes. São 24 horas com máscaras que, por vezes, até me esqueço que estou a usar”, relata Carla Rodrigues enfermeira do Hospital Agostinho Neto (HAN).
Segundo esta enfermeira, no início era “muito difícil” usar máscara durante o dia. Entretanto, acredita que, actualmente, tornou-se apenas mais um acessório necessário, assim como as roupas. “Há dias em que chego a casa e é preciso uma chamada de atenção da minha filha para eu me lembrar de retirar a máscara”, afirma.
A enfermeira-chefe da clínica MediCentro em São Vicente, Acelia Mireya Cáceres conta que, no início, para além do stress e preocupação por se tratar de uma doença nova, foram precisas mudanças no espaço e no atendimento ao público.
“Tivemos de criar consulta e lugares específicos para casos suspeitos e para os casos positivos da COVID-19. Começamos a trabalhar com equipamentos de protecção individual como máscaras e outros dispositivos que eram utilizados apenas nos laboratório ou em casos muito específicos. Até a lavagem das mãos, que sempre foi rotineiro para os enfermeiros, passou a ser com mais frequência”, narra.
Eric Tavares, enfermeiro na Delegacia de Saúde no Tarrafal de São Nicolau, também menciona os cuidados redobrados para evitar a infecção e a forma de atender os pacientes.
“Tudo é redobrado, principalmente o cuidado ao atender um paciente. Por exemplo, onde eu trabalho se a pessoa chegar com sintomas de gripe é colocada em observação por meia hora para se fazer o teste de despiste à COVID-19. Se o resultado for negativo o paciente fica em observação, mas se testar positivo tenho de prescrever paracetamol e vitamina C e mandar para o isolamento, durante dez dias”, diz.
Marcas da pandemia
Quando o país notificou o primeiro caso de COVID-19, Carla Rodrigues encontrava-se na Boa Vista, ilha onde foi notificada a primeira infecção, a trabalhar um inquérito do Ministério da Saúde. Ao invés de regressar à Cidade da Praia, onde vive, foi contratada para apoiar a Delegacia de Saúde daquela ilha.
“Foi aí que comecei o meu trabalho com a COVID-19, até hoje. Na altura, por estar longe da minha família, dos meus amigos e numa ilha praticamente desconhecida, tinha muito medo e ansiedade”, admite.
Passado alguns meses, Carla Rodrigues conta que regressou à cidade da Praia onde começou a trabalhar nos quartos particulares do HAN a cuidar dos pacientes infectados com COVID-19. Na época, lembra, os enfermeiros ficavam em pensões e só depois de testarem negativo, regressavam às suas casas. Um mês depois.
“Essa rotina deu cabo do meu psicológico, era apenas sair para o trabalho e regressar para a pensão. Na altura perdi o meu avô, que sempre foi um pai para mim. Eu não pude cuidar dele quando esteve doente, tinha de ficar na pensão. Acabou por falecer e nem sequer pude ir ao funeral, não pude estar com a minha família para receber e dar apoio. Tive de assistir ao enterro do meu avô pela janela da pensão, que tinha uma vista para o cemitério da Várzea”, descreve a enfermeira que se emociona ao relembrar o facto.
Carla Rodrigues declara que a morte do avô afectou o seu trabalho e na altura teve de parar de trabalhar, realizar o teste e regressar a casa para receber o apoio da família.
Mudanças
Segundo Acelia Mireya Cáceres, na clínica MediCentro hoje os pacientes já não são atendidos directamente por um enfermeiro. Antes, têm de fazer uma triagem num enfermeiro específico para tal que decide se a pessoa pode consultar directamente o médico, ou se fica isolado para que o médico chegue a ela.
“Tivemos de aumentar a quantidade de enfermeiros na clínica para que pudéssemos ter alguém para fazer a triagem de manhã e à tarde. Então, de seis passamos a ser oito enfermeiros”, refere.
O aumento do número de casos em São Vicente, prossegue, fez com que as consultas na clínica aumentassem e hoje realizámos entre 20 a 30 testes diários. Agora, Acelia Mireya Cáceres assevera que os enfermeiros devem estar “muito atentos” já que os sintomas têm variado muito.
“No início todos vinham com problemas respiratórios, agora há sintomas como vómitos, diarreia, dores de cabeça, angina. Encontramos muitos casos com diferentes sintomas. O enfermeiro tem que estar muito atento e ser muito cuidadoso antes de fazer o primeiro contacto com as pessoas”, frisa.
Por sua vez, Eric Tavares menciona que no início da pandemia havia muito mais stress e ansiedade por se tratar de uma doença nova. Mas, o enfermeiro denota que, em um ano, os profissionais da saúde adquiriram experiência e o modo de trabalhar tornou-se totalmente diferente.
Ao Expresso das Ilhas, o enfermeiro da Delegacia de Saúde de Tarrafal de São Nicolau reconhece que diariamente são atendidas muitas pessoas devido à COVID-19, apesar de ser uma situação que varia muito.
“Por exemplo, há dias em que só no período de manhã faço quase 40 fichas, o que é muito cansativo. Mas há dias em que posso atender menos, 15 ou 20 pessoas. Antes, o enfermeiro era responsável pelo Banco de Urgência, pelo curativo, injecção e, ainda, se houvesse doentes em observação tinha de observar. Mas, com o reforço de enfermeiros devido à COVID-19, agora fazemos turnos de dois em todas as escalas, de manhã, à tarde e à noite. Antes era um enfermeiro por turno e o médico ficava em regime de chamada no caso de alguma urgência”, descreve.
O trabalho depois da vacina
Carla Rodrigues já tomou as duas doses de vacina, mas garante que os cuidados no trabalho continuaram o mesmo de antes.
“Já não sinto medo e para as pessoas que começam a trabalhar com a COVID-19 pela primeira vez transmitimos, eu e os meus colegas mais experientes, a segurança e aconselhamos a não ficarem com medo dos doentes porque aí sim é que correm risco de se infectarem. É preciso estar seguro e calmo para conseguir trabalhar”, reflecte.
Acelia Mireya Cáceres foi infectada com COVID-19 a menos de seis meses e por isso ainda não foi vacina. Entretanto, assegura que, apesar de todos os outros colegas da clínica já estarem imunizados, seguem o mesmo protocolo de cuidados e protecção individual.
“Em todas as estruturas de saúde no país, o pessoal da saúde foi vacinado. Mas, como lembrou o ministro da Saúde, não é porque a pessoa esteja vacinada que deixa de correr o risco de contrair o vírus ou de o transmitir, então continuamos com cuidados redobrados. Contudo, tenho de dizer que a vacina deu-nos força para trabalhar com mais confiança”.
Actual desafio
Para Eric Tavares o principal desafio é a mentalidade das pessoas que insistem em negar a existência da doença.
“Ainda em São Nicolau os jovens pensam que a COVID é algo inventada. Tarrafal não tem um caso de COVID-19, é o que dizem sempre. Não adianta darmos o nosso máximo nos hospitais durante 24 horas, enquanto o pessoal não tiver consciência de que a COVID-19 está em Cabo Verde e no Tarrafal. Pensam que é uma brincadeira”, refere.
Tavares alega que, enquanto as pessoas não se consciencializarem pior será para o sistema e para os profissionais de saúde que terão de trabalhar o dobro.
“O meu principal desafio actualmente é continuar com a mesma garra no trabalho. Por isso, apelo ao uso de máscaras e à protecção, a COVID-19 não é uma doença banal como muitos pensam. Eu sinto-me sobrecarregada com o aumento do número de casos na Praia. O número de doentes internados no Hospital não diminui. Sai um, ou por alta ou porque faleceu, e entram outros dois. Isso provoca cansaço mental e físico”, lamenta Carla Rodrigues.
A enfermeira explana que o cansaço mental muitas vezes provém do facto de cada profissional dar o seu máximo e no fim perder o paciente. “Por vezes acabamos por criar laços com os pacientes e quando falecem aquilo provoca um desgaste emocional enorme. Por isso eu apelo a cada um para fazer a sua parte”, diz.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1015 de 12 de Maio de 2021.