Uma alternativa ao desemprego

PorSheilla Ribeiro,5 set 2021 9:12

Não é de hoje que os emigrantes enviam encomendas para os familiares que cá residem. Para alguns, na falta de um emprego e de um rendimento, os bidões e caixotes que chegam do exterior é uma forma de garantir o sustento da família.

Há dois anos, foram implementadas reformas disruptivas e inovadoras no segmento de pequenas encomendas. Assim, passou a ser cobrada uma taxa única de quatro mil escudos a pequenas encomendas, ou seja, bens que as pessoas trazem ou recebem de fora para o consumo familiar que, portanto, não tenham fins comerciais ou lucrativos.

Entretanto, algumas pessoas aproveitam-se desse facto para ganhar algum dinheiro sem ter de pagar muito.

Há cerca de três anos que Elizabeth Miranda, mais conhecida por Nona, recebe bidões dos EUA. Por estar desempregada, os familiares resolveram mandar-lhe produtos americanos para vender e ganhar algum dinheiro.

Conforme avança ao Expresso das Ilhas, receber os bidões e montar um negócio foi uma forma de ocupar o tempo e não ficar em casa. Assim, de segunda a sexta, Nona deixa a sua casa rumo à Achada Santo António onde espera vender ao menos mil escudos por dia.

“O que ganho com a venda desses produtos dá para desenrascar no dia-a-dia. Num ano posso receber bidões duas vezes e de cada vez posso tirar quatro de uma vez”, narra.

Nona explica que recebe bidões duas vezes por ano por se tratar de um negócio familiar, mas há quem os receba mensalmente, ou a cada três meses por ter um negócio mais amplo.

“Sempre que tiro um bidão, depois de vender o seu conteúdo tenho de enviar uma parte do dinheiro para os EUA porque eles compram-no para enviar. O dinheiro vai para que possam comprar mais e enviar outra vez”, fundamenta, acrescentando que graças a esse negócio pode ter algum dinheiro para pôr em casa.

“Não dá tanto para pagar todas as contas de casa. Entretanto, eu tenho uma casa própria e eu e o meu companheiro dividimos ao meio, então é alguma coisa”, revela.

Depois de tirar o bidão das alfândegas e analisar o seu conteúdo, a comerciante reúne-se com o familiar que o enviou para negociar o valor a ser enviado para os EUA.

A comerciante diz que tem recebido muitas propostas de emigrantes que não são familiares para uma parceria do tipo. Contudo, não aceita por medo da responsabilidade de ter em mãos o dinheiro de outrem.

Da mesma forma, há dez anos Helga Carvalho começou a receber bidões dos familiares nos EUA para os ajudar a vender e ganhar algum dinheiro. Mas, ao contrário do que acontecia há dez anos, hoje recebe bidões de emigrantes que não compartilham de laços sanguíneos e vende os produtos através do Facebook.

Neste caso, por ano, a comerciante recebe quinze bidões em diferentes épocas. Actualmente, a venda dos produtos oriundos dos EUA é a sua fonte de rendimento.

“Posso dizer que neste momento vivo disto. Por vezes, para tirar um bidão, vender o seu conteúdo e ainda tirar a parte do dinheiro que tenho de mandar para os EUA, o dinheiro que ganho não é suficiente para pagar todas as contas. Mas, há vezes em que posso pagar todas as contas tranquilamente, dependendo do lucro”, explicita Carvalho.

Segundo Helga Carvalho a pandemia afectou muito os negócios que só começaram a recuperar agora. Ainda assim, considera que o ganho ainda não se compara ao antes da COVID-19.

“Depois da pandemia, por bidão, posso vender entre 50 e 100 mil escudos e o lucro pode ser de 30 mil escudos, mais ou menos”, informa.

Comprar para vir vender

Ao contrário de Nona e Helga, Iolanda Ferreira vai para Portugal pelo menos duas vezes ao ano fazer compras, embala-as em diferentes caixotes e envia para Cabo Verde.

“Há muitos anos que faço caixotes para vir vender. Não consigo nem me lembrar quando comecei esse negócio”, conta.

Esta entrevistada admite que divide as compras em diferentes caixotes para que possa entrar no país como uma pequena encomenda e assim pagar menos para as retirar. Ainda assim, afirma que custa cada vez mais tirá-los.

“Dependendo da medida dos caixotes, pago uma certa quantia para mandar vir, posso pagar entre 20 e 60 euros. Quando aqui chega tenho que pagar para mudar os papéis e depois pagar para tirar cada caixote, por vezes quatro mil, outras vezes cinco mil escudos. Este mês, por exemplo, paguei quatro mil escudos para dois caixotes”, exemplifica.

Iolanda Ferreira reconhece que o ganho não compensa e que está neste negócio por teimosia e porque tem de ganhar dinheiro de alguma forma.

“Só para ter uma ideia, nem sequer dá para pagar todas as contas da casa. Talvez o negócio compensasse se as pessoas não tomassem fiado para depois se recusarem a pagar. Algumas pagam, mas nunca é de uma só vez, sempre a prestações”, lamenta.

Assim, para ter um pouco mais de lucro, a comerciante diz que além das colchas e lençóis, enche as caixas com roupas ou utensílios usados de modo a pagar menos na alfândega. As peças usadas, entretanto, costumam vender mais e mais depressa.

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“As roupas ou lençóis usados vendem mais e mais rápido do que as peças novas. Porque são poucas as pessoas que querem comprar tudo novo uma vez que temos de colocar um preço que compense tudo aquilo que pagamos para trazer cada caixote”, indica.

A comerciante diz que este ano, devido ao atraso no desembaraço de pequenas encomendas, vai ter ainda mais atrasos já que espera tirar sete caixotes para vender antes de regressar a Portugal em Setembro.

Se não conseguir tirá-los, Iolanda Ferreira explica que não terá como fazer compras para trazer no mês de Dezembro, época em que mais se vende.

Do ponto de vista da CCS

Ao Expresso das Ilhas, o presidente da Câmara do Comércio de Sotavento (CCS), Jorge Spencer Lima, elucida que a lei que estabelece a questão de pequenas encomendas tem por objectivo facilitar a vida das pessoas, mas não no sentido comercial.

Porém, continua, as pessoas muitas vezes não respeitam essa lei como forma de garantir a sobrevivência das suas respectivas famílias, “que não têm muitas alternativas”.

“O comércio informal existe e vai continuar a existir em praticamente todos os lados, particularmente aqui em Cabo Verde. O governo tentou resolver a questão do comércio informal através da criação de uma figura para levar às pessoas a formalizarem o seu comércio, pagando uma taxa única, mas não funcionou muito bem. Continua a haver dificuldades. O comércio informal neste momento garante o sustento de muitas famílias”, profere.

Por esta razão, Jorge Spencer Lima defende que é preciso criar condições para que as pessoas possam sair da informalidade “sem bloqueio e sem choque”, porque o sustento das famílias “deve prevalecer sobre qualquer medida administrativa que for necessário tomar”.

Deste modo, entende que além de maior fiscalização dessas cargas, é necessário cuidado com esse rigor.

“Porque se formos ver, uma pequena encomenda que alguém traz e que vai vender não tem grandes impactos no comércio informal. Não é por aí. É evidente que subtrai impostos e outras coisas mais, mas essas pessoas não têm como organizar e de qualquer maneira é a garantia do sustento dessas famílias. É preciso ir com equilíbrio”, intervém.

A CCS, conforme garante o seu presidente, não preconiza uma mão dura em cima dos rabidantes, por exemplo, ou da informalidade das pessoas, mas também pensa que as pessoas não podem fazer o contrário.

“Quando não há mão firme começam os exageros. É preciso algum bom senso na gestão dessa questão”, reflecte.

Jorge Spencer Lima assegura que se essas pessoas se organizassem em cooperativas poderiam contar com o absoluto apoio da CCS.

“Mas, neste momento vemos um individualismo do cabo-verdiano que não o leva a associar-se. Sobretudo associarem-se nos negócios. Há muito tempo estávamos a tentar criar uma central, por exemplo, de aprovação para pequenos empresários, para acções conjuntas, saídas mais baratas, menos custos. Mas é quase impossível. O exemplo que nós podíamos seguir dos chineses que cá estão”, indica.

De qualquer forma, Jorge Spencer Lima é de opinião de que a lei nº 39/19 teve um impacto positivo na vida das pessoas, ainda que continue com alguma subjectividade. Como exemplo, cita o facto dos funcionários alfandegários terem o poder de determinar se uma carga se enquadra ou não na categoria de pequenas encomendas.

Essa subjectividade, do ponto de vista deste responsável, abre a porta a reclamações, complicações e confusões.

Neste momento, refere que “o grande problema que se põe” é a demora da ENAPOR na descarga, na verificação e em pôr as mercadorias à disposição dos utentes.

“Há necessidade de uma maior celeridade. O código aduaneiro tem vindo a ser revisto neste sentido, mas ainda tem muita coisa por fazer, sobretudo é preciso saber investir na formação das pessoas a nível das alfândegas, da formação das pessoas a nível da ENAPOR para que tenham consciência que estão a prestar um serviço público e não podem estar a injuriar os utentes”, sugere. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1031 de 1 de Setembro de 2021. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,5 set 2021 9:12

Editado porAndre Amaral  em  5 set 2021 19:21

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