Há mais de 30 anos que Janice Semedo é invisual. Perdeu a visão aos 3 anos de idade, após lhe ter sido diagnosticado um tumor nos olhos, e fez todo o resto do seu percurso de vida sob esta condição. Mas isso nunca a demoveu dos seus estudos e ambições. Hoje licenciada em Direito, o seu sonho é tirar um Mestrado em Direitos Fundamentais no estrangeiro. A ideia é “ganhar mais experiência, ‘ver’ outras realidades”, conta. E depois, “voltar para Cabo Verde e ajudar outras pessoas com deficiência visual”.
Na verdade, Janice já ajuda. Está a fazer um estágio sala de equipa multidisciplinar de apoio em educação inclusiva (EMAEI) em Vila Nova, onde ensina braille a alunos invisuais. E onde lhes fala também da sua própria experiência pessoal, incentivando-os a “não ficar para trás” e orientando-os, por exemplo, em métodos de estudo.
Escola
Um passo básico para a vida escolar (e não só) dos deficientes visuais é aprender braille.
Janice aprendeu o sistema com Manuel Júlio Rosa, fundador e ex-presidente da Associação dos Deficientes Visuais de Cabo Verde (ADEVIC). O “mentor” deslocava-se duas vezes por semana à escola Paz e Amor em Vila Nova, onde Janice estudava, para lhe ensinar braille. A ela e à professora. No segundo ano, juntou-se-lhes uma nova colega, Keula [Semedo], que para aí fora transferida.
“Foi assim que aprendi”. E o braille passou a ser presença constante na sua vida.
“Eu tinha sempre vontade de participar na leitura. ‘Via’ os outros alunos a ler, e pedia para transcrever o texto em braille, para [eu também] ler. Assim, eu fui aperfeiçoando cada vez mais, a gostar do braille, até à universidade…”
Até hoje conserva a pauta que recebeu de Manuel Júlio e que usou durante todo o percurso escolar. Mas a passagem pelos três níveis (básico, secundário e superior) foi bastante diferente.
No básico, por exemplo, os testes eram feitos em braille. A partir do secundário, eram orais. E o material necessário para conseguir acompanhar as aulas e a matéria também mudou, com a entrada na Universidade.
“Aí não dá para acompanhar o professor e escrever ao mesmo tempo. Então, tinha de ter um gravador. No início eu não tinha, e no primeiro ano fiquei para trás.
Depois consegui um gravador, gravava as aulas, e quando chegava em casa ouvia a gravação e escrevia em braille. Para cada disciplina, eu tinha um bloco de papel cavalinho e fazia os meus apontamentos”, recorda.
100 em 1000
Não há certezas quanto ao número total de cegos em Cabo Verde. O Censo de 2010 apontava que 13 mil pessoas têm algum tipo de deficiência visual, mas cegueira total serão bastante menos.
Marciano Monteiro, presidente da ADEVIC estima que sejam cerca de mil, talvez um pouco mais “os que se não tiverem o recurso braille não conseguem fazer a escrita e leitura”. Mas “não passará de uma centena, no máximo”, o número de pessoas que sabe braille.
Um número muito pequeno, tendo em conta que o braille “é o básico, sobretudo para aquelas pessoas que estão ainda dentro da idade de aprendizagem”.
“Até agora é o recurso mais seguro que as pessoas cegas têm de escrever e ler, pese embora as tecnologias também o permitam. A tecnologia ajuda e muito, mas não substitui o braille”, aponta.
Essa é também a opinião de Janice Semedo que aliás, sempre usou o sistema e as TIC ‘de mãos dadas’. Aliás, para ela não há dúvidas de que um aluno com deficiência visual tem de saber ler e escrever braille, e conhecer as palavras para além do seu som.
E se há que aprender, para aprender é preciso haver quem ensine…
Obstáculos
Vitorino Ramos, mestre em educação inclusiva e técnico do Ministério da Educação na EMAEI de Vila Nova, é também formador em Braille. Conhece pelo nome todos os alunos invisuais da Praia. No total, são cinco alunos no secundário e dois no básico. Havia ainda uma outra aluna que foi este ano para o ensino superior.
Sendo certo que a maior parte desses alunos já sabe ler braille há, por exemplo, o caso de uma menina, D., que perdeu a vista recentemente. Foi operada sem sucesso e acabou por ficar cega. A sua irmã também é invisual. Juntamente com a mãe, estão a aprender braille em Vila Nova.
Falando dos problemas relativos ao ensino/aprendizagem de Braille e parco número de usuários do sistema braille, o técnico coloca o foco na falta de recursos humanos verdadeiramente capacitados.
Basta ver as notícias para ver que tem havido um número elevado de formações em braille, promovidas pela ADEVIC e Ministério da Educação. Mas, na realidade, há muito poucas pessoas capazes de ensinar.
“Todas as coisas que não se praticam, esquecem-se. Formamos professores, saem a ler e escrever em braille, mas depois, não se pratica e muitas vezes [a formação] perde-se”, explica o técnico.
Na mesma linha, também Marciano Monteiro da ADEVIC aponta a carência de professores capacitados como um dos dois principais obstáculos.
É preciso, no seu entender, essa qualificação, para que estes possam “atender os estudantes que passam pelas escolas, neste caso concreto, na questão do ensino do braille”. Assim, embora reconheça que o Ministério tem vindo a formar os professores, quando um sai de escola onde lecciona, esta fica “descoberta”. Além disso, “normalmente as formações que o ministério dá são de curta duração e o braille não é uma coisa que se aprenda de um dia para o outro”.
O outro grande obstáculo, refere, tem a ver com os materiais e acesso aos mesmos.
Materiais
“Só para dar um exemplo, uma pauta que é um dos materiais que se usa para escrever o braille, e que substitui o caderno, custa 2500 enquanto o caderno custa 200 e tal escudos. E a pauta não existe no mercado nacional, é trazida de fora”, ilustra Marciano Monteiro. Ora isto cria dificuldades e uma maior desigualdade em relação aos outros estudantes que não têm deficiência.
Há, entretanto, várias tentativas de minimizar essa desigualdade. Segundo Vitorino Ramos, o Ministério da Educação, em parceria com a ADEVIC, tem oferecido esse material aos alunos.
No que toca ao restante material didáctico, dentro do possível, tem-se tentado fazer algumas adaptações para que possam entender certas matérias.
“Não se vai mandar um cego traçar um gráfico como um vidente. Eu tenho que ter outra estratégia, de mostrar-lhe aquele gráfico que eu quero que aprenda, ou que fique com noção daquele gráfico. Por isso, temos de estar sempre a trabalhar e a inovar com materiais didácticos apropriados”.
Entretanto, tenta-se dar formação básica de braille aos professores com alunos invisuais (cabendo ao docente depois praticar e desenvolver). E algumas escolas já mandam, por exemplo, os testes para o EMEAI para serem transcritos em braille. “Depois, quando terminam de aplicar o teste, ajudamos também na correcção”, explica o técnico.
Quanto ao uso de novas tecnologias, de que já falamos e que embora não substituam o braille são uma ferramenta importante, Vitorino Ramos salvaguarda a dificuldade de muitos estudantes em poder adquirir (e às vezes até mesmo saber usar) alguns desses equipamentos ou softwares.
“Alguns já têm oportunidade de usar, mas são equipamentos de material didáctico que custam muito dinheiro. Muitas vezes dependemos de apoio para que possamos oferecer o tipo de material que precisamos, por exemplo, um gravador”.
Outro material que falta é… livros.
Janice, por exemplo, fez também todo a licenciatura sem nunca ter tido acesso a um livro de direito em braille. “Só audio, pdf, word para ler em formato digital, mas em braille, não”, recorda.
Mesmo a nível do básico e secundário a falta de livros é uma evidência. Como aponta o técnico Vitorino Ramos, um livro braille é custoso e volumoso. O livro áudio, para quem tem computadores ou outro electrónico, seria certamente a melhor opção. O problema, repete-se: “muitos não têm condições para usufruir de um portátil, ou de um smartphone”.
Para além do mundo escolar, também não é fácil encontrar material escrito em braille, embora tenha havido algumas iniciativas recentes nesse sentido. Um exemplo, são os materiais informativos sobre a covid-19, emitidos pelo Instituto Nacional de Saúde Pública. Outro exemplo, são os livros (ainda apenas dois) que a Biblioteca Nacional tem vindo a adaptar para braille.
Marciano Monteiro considera que esses passos não são ainda “muito satisfatórios, mas já dão algum ânimo”.
“Agora o certo é que é necessário que haja mais e melhores condições para que possamos ampliar um pouco mais o ensino do braille aqui em Cabo Verde”, destaca.
Escola de cegos
Voltando às escolas. O maior centro contínuo de aprendizagem de braille, se assim lhe pode chamar, é a escola Manuel Júlio, da ADEVIC, que ensina de forma sistemática para pessoas que estão fora do sistema de ensino regular, mas que também atende crianças nesse sistema, “para reforço”, no período contrário às aulas. Neste momento, contabiliza o presidente da Associação, a escola de cegos terá cerca de 20 a 30 alunos.
São invisuais de Santiago, mas também de São Nicolau, Fogo e Maio, que aí são ensinados e muitos dos quais residem no lar estudantil, que acolhe cegos que não têm familiares na Praia.
Neste momento, o lar tem oito residentes, de todos os níveis de ensino.
Desta forma minimiza-se também a enorme disparidade que há entre ilhas, nas questões dos deficientes visuais. Mas,” mesmo assim a desigualdade ainda é muito grande”, lamenta Marciano Monteiro.
Mas nem só de braille (para invisuais e videntes) e apoio escolar se faz a ADEVIC.
“A gente não trabalha com a cara voltada só para a questão da escolarização, de ensinar pessoas a ler e escrever. A ADEVIC tem apostado também em formações em áreas como a informática, culinária, música…”, refere o presidente.
A associação tem inclusive um grupo musical, muito activo e já bastante conhecido. “A música é a área que mais as pessoas cegas dão atenção”, reconhece Marciano, ele próprio músico.
Positivo
Apesar de todos os constrangimentos, tanto a nível geral, como a nível particular da evolução do ensino e aprendizagem do braille em Cabo Verde, tem havido progressos. E grande parte desses progressos, admite-se, deve-se ao trabalho iniciado por Manuel Júlio Rosa, fundador da ADEVIC, e ao trabalho que a Associação continua a desempenhar até hoje.
Vitorino Ramos realça aliás o grande esforço de Manuel Júlio Rosa, que terá sido quem, praticamente, introduziu e promoveu o braille em Cabo Verde. Houve também, acrescenta, o trabalho realizado pelo Ministério da Educação “sempre na linha de frente” e que, por exemplo, em 1993, convidou Manuel Júlio para as suas unidades de educação especial, “no sentido de desenvolverem políticas de inclusão em Cabo Verde, não apenas relativas ao sistema braille, mas de educação especial”.
Esses dois grandes actores, ME e ADEVIC, junto com parceiros, terão então sido fundamentais para que hoje o número de pessoas conhecedora do sistema braille esteja a evoluir.
O ME vai continuar a investir em formações para as escolas – e costuma haver boa adesão, estando já prevista uma para as escolas de Praia- Norte para este primeiro trimestre do ano. A formação não abrange só o braille mas também dá orientação de como ajudar e orientar, mesmo fora do ambiente escolar.
Na verdade, na sua avaliação sobre a situação dos deficientes visuais em Cabo Verde, Vitorino Ramos refere que esta é muito melhor. “Anos atrás ninguém se preocupava se a pessoa era cega, surda, ou tinha outra deficiência. Actualmente temos uma população mais sensibilizada, mais preocupada. Pessoas que perguntam, como é que eu posso ajudar? Como posso apoiar? Isso já é grande coisa, porque é assim que vamos ter uma sociedade mais inclusiva, preocupada com os outros”.
Também o presidente da ADEVIC destaca uma certa evolução “tendo em conta que as pessoas já começaram a aprender o braille”. Contudo, alerta, esse é ainda um “número muito reduzido em relação aos que realmente tem essa necessidade”.
Ou seja, “estamos com uma evolução não boa, mas bastante razoável, embora eu sublinhe que ainda é um número um pouco aquém daquilo que nós desejamos.
Marciano Monteiro salienta, entretanto, as formações que têm promovido na Praia e Tarrafal, para pessoas que não têm problemas de visão. “Entendemos que é importante incluir as pessoas. Temos de preparar a sociedade para que possam receber pessoas que eventualmente estão à margem”, conclui. Uma sociedade mais inclusiva.
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Dia Mundial do Braille
O dia Mundial do Braille, comemora-se a 4 de Janeiro, data do nascimento de Louis Braille, criador do sistema de leitura e de escrita táctil que leva o seu nome. Braille formou um alfabeto com diferentes combinações de 1 a 6 pontos, em relevo, que se tornou popular a nível mundial e que é hoje usado como forma oficial de escrita e de leitura das pessoas cegas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1049 de 5 de Janeiro de 2021.