“Apenas 7% dos serviços são prestados por via digital e há serviços que nem computador utilizam”

PorAndre Amaral,19 mar 2022 8:47

A digitalização da Administração Pública, em Cabo Verde, está ainda numa fase inicial e apenas uma minoria dos serviços é capaz de um atendimento totalmente digital. Edna Oliveira, ministra que tutela a pasta da Modernização do Estado e da Administração Pública reconhece que a utilização das TIC tem sido feita “de uma forma um pouco desregrada” por não haver uma “estrutura central que defina as prioridades estratégicas do Estado”.

Este é um ministério criado nesta legislatura. Qual o objectivo?

O Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública foi criado nesta legislatura. Foi definido que a modernização do Estado, nomeadamente através da incrementação da governação electrónica e do desenvolvimento da Administração Pública são pilares estratégicos para o desenvolvimento do país. Nessa perspectiva, entendeu-se criar um departamento governamental responsável pela

Modernização do Estado e da Administração Pública. Até então, a pasta Administração Pública tinha sido assumida pelo ministro das Finanças e agora, com a criação deste ministério, o governo demonstra que pretende dar maior relevância à Administração Pública e à modernização do Estado. O ministério actua em várias áreas como a gestão de recursos humanos da Administração Pública, na qualidade dos serviços públicos em toda a sua vertente, seja dos serviços prestados como também da optimização do desempenho dos serviços que existem na Administração Pública. É também responsável pela governação digital que é a implementação das tecnologias de informação e comunicação nos serviços públicos.

Depois deste ano que leva à frente do Ministério o que é preciso mudar na Administração Pública em Cabo Verde?

A primeira coisa que penso que é preciso é desmistificar o que é a Administração Pública e o que é a sua modernização. Muitas vezes as pessoas têm a noção que a Administração Pública é apenas e só a actividade administrativa desenvolvida pelos serviços públicos, e, penso, aí é que está o mal. A Administração Pública é transversal e implica as estruturas, porque o Estado é feito de organismos e entidades, que são as estruturas, e dentro delas temos os dirigentes, os funcionários, os agentes. As pessoas que estão nessas estruturas trabalham os processos e na sua tramitação, naturalmente, leva-se em conta todo o procedimento que existe. As pessoas que estão nas estruturas ao trabalharem os processos recorrem às tecnologias de informação e comunicação e depois, no final, o objectivo da Administração Pública é a prestação de um serviço de qualidade. Daí incidir-se um pouco sobre a questão do atendimento público. Para nós, a Administração Pública não pode e não deve nunca ser entendida apenas e só como a actividade administrativa. Na nossa perspectiva, o desenvolvimento da Administração Pública implica actuar em relação a todos os eixos em que ela se assenta. Em relação às estruturas, entendemos que elas têm de ser em quantidade adequada para que o Estado possa desempenhar a sua função cabalmente. Fala-se muito que a Administração Pública é pesada e que se deve reduzir, mas efectivamente a optimização da Administração Pública não pode passar exclusivamente pela redução das estruturas. É necessário conhecer as atribuições de cada estrutura, ver se existe sobreposição de atribuições e, havendo, aprovar-se um programa de redimensionamento em que se irá tomar a decisão se irão ser extintas as estruturas, se serão fundidas ou se serão mantidas. O mesmo se passa também na introdução de alterações legais relativamente à criação de estruturas. Nós temos uma lei que estabelece a organização dos departamentos governamentais desde 2009. Esta lei, hoje consideramos que precisa de uma alteração, porque surgiram, entretanto, várias estruturas que não estão previstas nesse diploma e por isso temos que actuar sobre elas. Em relação às pessoas, para nós a prioridade no investimento que queremos fazer nos recursos humanos da Administração Pública passa pela capacitação. Cabo Verde, em 1981, tinha um instituto público que se chamava CENFA [ndr Centro de Formação e Aperfeiçoamento Administrativo] que tinha como atribuição essencial ministrar acções de capacitação aos funcionários e dirigentes da Administração Pública. O CENFA chegou a ministrar formações para funcionários públicos vindos dos PALOP. Mais tarde o CENFA foi transformado no Instituto Nacional de Gestão (INAG) que tinha essa mesma missão. Em 2006, com a criação da Uni-CV entendeu-se extinguir o INAG e a perspectiva era de que a Uni-CV deveria passar a desempenhar essas funções. Na nossa perspectiva, são duas áreas completamente diferentes. As universidades normalmente ministram acções de qualificação para aquisição de grau académico, as escolas de capacitação ministram acções de qualificação. Ou seja, o funcionário quando entra já tem a sua habilitação literária de base, mas ao longo da carreira precisa de acções de reciclagem, de especialização e como isso não vem acontecendo, desde então, temos perdido qualidade na Administração Pública.

A mobilidade dentro da administração pública já existe?

Sim. Nós temos um diploma legal que estabelece quais são os instrumentos de mobilidade na Administração Pública e as duas modalidades mais utilizadas são a requisição e a transferência. A requisição quando um funcionário do quadro de um determinado serviço público é chamado para desempenhar as mesmas funções em lugar vago do quadro de um outro departamento governamental, mas por um período máximo de dois anos. Findo esse período a requisição consolida-se e a pessoa é transferida para esse ministério ou a pessoa volta para o seu quadro de origem. A mobilidade poderia ser um bom instrumento para a optimização do desempenho da Administração Pública e para o aproveitamento das competências que nós temos. No entanto, a base de dados da Administração Pública que foi criada em 2004 e que deveria ter todas as informações sobre o número de pessoas, onde é que elas estão, que competências é que elas têm, como é que estão distribuídas em género, área de formação e habilidades, está muito desactualizada, porque ao longo do tempo não se procedeu à sua actualização. Muitas vezes lança-se o concurso para o recrutamento de um determinado técnico quando na verdade ele já existe no quadro da Administração Pública. Mas como a base de dados não está actualizada a perspectiva normalmente é de recrutar. Por isso é que, durante este ano, iremos lançar o segundo recenseamento geral dos funcionários públicos visando actualizar as informações sobre a quantidade, as competências que temos, como estamos distribuídos por departamentos governamentais, serviços, ilhas, para podermos dar a conhecer aos serviços os recursos humanos que temos, onde estão e podermos incrementar e explorar melhor os instrumentos de mobilidade que, na minha perspectiva, são sub-utilizados.

O que é a Agenda de Governação Digital que apresentou há dias no Parlamento?

Cabo Verde já deu grandes passos a nível da exploração das TIC desde que começamos com o processo de informatização dos serviços. Mas é necessário que haja uma estratégia. Primeiro, para sabermos onde é que estamos, definirmos onde queremos estar e traçar o caminho que devemos fazer para alcançarmos a meta. Tem-se recorrido às TIC de uma forma um pouco desregrada. Não existe uma estrutura central que defina as prioridades estratégicas do Estado, o que para mim é algo cimeiro considerando os poucos recursos que temos. A utilização desses recursos tem de ser feita de forma que vá ao encontro das prioridades do Estado. Muitas pessoas pensam que a modernização do Estado é implementar sistemas de informação, é mais do que isso. É necessário termos uma estratégia, uma entidade central que defina quais são as prioridades do Estado e que defina em que áreas e sectores devemos alocar os recursos. Por isso, para nós, ter um documento estratégico era primordial para podermos elaborar um plano de acção e sabermos todos, de uma forma articulada e transversal, em termos de exploração e incrementação das TIC, para onde é que queremos ir. Posso dar um exemplo: quando fui nomeada secretária de Estado, apresentaram-me um projecto, que consideraram um grande projecto, que era a implementação de um sistema de gestão documental ao nível da Administração Pública. Seria um sistema todo digitalizado e, com isso, o proponente pretendia resolver o problema da simplificação da tramitação e da gestão documental. Só que, para mim não era prioritário porque nós não temos um classificador documental. O que chamamos neste ministério de parecer, noutro pode ser chamado de nota ou relatório. Então, para termos um sistema de gestão documental ao nível do Estado, para mim, é prioritário termos um diploma a estabelecer o classificador dos documentos oficiais, depois termos regras para organização dos arquivos, sobre os requisitos de temporalidade dos arquivos, que é para sabermos durante quanto tempo é que vamos ter esses arquivos nos serviços e quais é que devemos enviar para o arquivo da Administração Pública e, só depois, então desmaterializar esses mesmos documentos. Se não definirmos o que é prioritário podemos estar a alocar vários recursos, que são parcos, em desenvolvimento de sistemas que não são prioritários. Depois temos a questão da interoperabilidade dos sistemas da Administração Pública. O NOSi tem desenvolvido vários sistemas de informação que se utilizam nos diversos departamentos governamentais. Dou o exemplo do sistema que está em utilização no Ministério das Finanças e o sistema de informação da Saúde. As pessoas não percebem por que vão ao Banco de Urgência e lhes é pedido o NIF se é o próprio Estado que o emite e se o hospital é uma entidade da Administração Pública. Isto acontece porque o sistema de informação do Ministério da Saúde não comunica com o sistema do Ministério das Finanças. Uma das prioridades é garantir a interoperabilidade dos sistemas de informação, definir regras claras de armazenamento de informações. Uma das áreas que pretendemos incrementar é a partilha dos dados, porque temos dados produzidos por vários organismos do Estado, mas que não são partilhados, porque funcionamos numa lógica de silos e cada instituição entende que não deve partilhá-los. Muitas vezes é esta lógica que tem levado a que apenas 7% dos serviços sejam prestados por via digital. Grande parte é prestada em formato de papel e há serviços que nem computador utilizam. A estratégia definiu qual a visão que queremos e depois definiu um conjunto de medidas que devem ser alcançadas para se atingir o objectivo. E essas medidas estão organizadas em três áreas de intervenção: as medidas administrativas, as medidas legislativas que vão regular a implementação das TIC na Administração Pública e os estruturantes tecnológicos que são um conjunto de sistemas que devem ser desenvolvidos para podermos tirar todo o proveito que as tecnologias proporcionam.

A pandemia teria sido uma oportunidade para avançar com essa digitalização?

Durante a pandemia houve um incremento da utilização das TIC e eu posso dizer que ainda bem para que estivéssemos onde estamos hoje. Obviamente que não estamos no lugar desejável, mas o facto de já termos algum desenvolvimento nesse sector permitiu-nos ter o Certificado Digital que as pessoas poderiam apresentar com recurso ao telemóvel, permitiu que o atendimento em alguns serviços fosse efectuado à distância. O facto de termos um serviço integrado do Estado que é a Casa do Cidadão e os Balcões Únicos nas Câmaras Municipais permitiu fazer atendimento à distância. A obtenção de alguns documentos com recurso às TIC também foi um ganho. A realização de reuniões que deixaram de ser presenciais também foi um ganho. Alguns serviços puderam fazer o trabalho à distância, em teletrabalho, mas grande parte não foi possível devido ao facto de, como eu disse, grande parte dos processos estar ainda a ser prestado de forma presencial e em formato papel. Daí a nossa prioridade e a visão que temos na implementação da estratégia de governação digital, criando um Estado ágil e próximo dos cidadãos e um Estado que recorra às tecnologias de informação para prestar serviços com segurança, de forma célere e de qualidade.

Esta agilização vem contrariar um pouco a ideia do Estado como principal empregador. Com o avançar deste processo há trabalhadores que se tornam redundantes?

O facto de termos os processos desmaterializados não quer dizer que implique despedimentos. Por exemplo, na Direcção Nacional de Administração Pública temos um serviço que tramita o processo de aposentação dos funcionários públicos. Este processo é feito por funcionários em formato papel. Nós já desmaterializamos os procedimentos administrativos com um sistema que irá permitir aos cidadãos solicitar a sua aposentação por via digital e à distância. Mas, isto não significa que vamos despedir os funcionários do serviço de Segurança Social, porque parte da tramitação, ainda que digital, terá de ser feita pelos técnicos só que em vez de ser feito em papel será nesse sistema. Isto vai garantir maior rapidez, maior transparência e irá permitir que o cidadão esteja próximo da Administração Pública, porque a partir do momento em que o cidadão submete o seu processo ele recebe um código e poderá acompanhar toda a evolução do processo não tendo de se deslocar.

Há pouco referia que há falta de comunicação entre sistemas de entidades públicas. O que falta para que essa comunicação seja uma realidade?

Garantir a interoperabilidade entre sistemas. Esses sistemas devem integrar-se, devem falar entre si. E é necessário que haja uma política de dados abertos. Temos de definir quais são esses dados, quem é que pode aceder-lhes e os níveis de acesso. Depois terá de haver uma legislação a estabelecer quais são os requisitos para que os sistemas de informação que venham a ser desenvolvidos possam logo de início ser interoperáveis com os demais sistemas que já existem na Administração Pública. A prioridade efectivamente é garantir a interoperabilidade e ter uma política de dados abertos ao nível da Administração Pública. Por exemplo, o Ministério da Justiça produz e recolhe vários dados que têm que ver com o Registo Civil, vários dados relacionados com o ciclo de vida das pessoas. E se esses dados estão na posse do Ministério da Justiça que os recolhe e os gere, outras entidades poderão ter acesso a dados sobre identificação, sobre filiação, morada... Para isso é necessário que esse serviço possa aceder aos dados que estão na posse do Ministério da Justiça. E como? Integrando o seu sistema com o do Ministério da Justiça por via da interoperabilidade e havendo uma política de dados. Na semana passada submetemos uma legislação que consideramos importante e que estabelece as regras sobre o acesso e utilização de documentos administrativos, porque havendo um diploma que estabelece de forma clara quais são os documentos a que se pode aceder também irá facilitar e muito essa proximidade e integração.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1059 de 16 de Março de 2022. 

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Autoria:Andre Amaral,19 mar 2022 8:47

Editado porAndre Amaral  em  20 mar 2022 9:41

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