Fecha os olhos e abre a boca

PorAntónia Môsso,27 jun 2022 15:26

Fecha os olhos e abre a boca era uma brincadeira que fazíamos em criança. Muito arriscada por sinal. E nem sempre as coisas acabavam bem. Era pedido para fecharmos os olhos e abrirmos a boca e depositavam-nos algo desconhecido na boca. Uma brincadeira pateta, como tantas outras que assinalam a criancice, mas que implicava uma confiança (quase cega) no colega da brincadeira. O manter os olhos fechados remetia para uma vulnerabilidade extrema e o desfecho poderia variar dependendo do que depositassem na nossa boca. Podia ser o que calhasse. Um rebuçado, uma pedra ou até um bicho nojento que tivesse a infelicidade de passar perto àquela hora. Escusado será dizer, que não era brincadeira para se fazer com “qualquer um”, pois implicava confiança.

Crescemos. Supostamente para trás ficaria esse tipo de brincadeira. Mas não. Agora não é o nosso coleguinha de brincadeira que nos puxa e insiste para brincar, mas sim o país. Cabo Verde (líderes políticos, partidos, órgãos de soberania, instituições e até serviços) exige que a sua população confie sem sombra de dúvidas e que “feche os olhos e abre a boca” sem temor do que por aí poderá vir. Pedem confiança. Retifico. Exigem confiança. Mas não é uma confiança qualquer. Querem aquela confiança de peito estufado. Aquela que leve os cidadãos despreocupadamente a colocar as mãos no fogo. Não lhes basta uma “confiança míope”, exigem uma confiança cega.

Como não se precisa provar, ganhar, garantir a confiança (visto tratar-se de um dado adquirido e incontestável), são os cidadãos comuns os intimados a provar a toda a hora que confiam cegamente no “sistema”. Não julgando. Não avaliando. Não criticando. Não exigindo. Não pensando e, principalmente, não fazendo uso da sua liberdade de pensamento e de expressão. (Que é o mesmo que, numa assentada, arrancar os olhos da democracia).

Assim sendo, confio cegamente no governo, partidos políticos, parlamento, e nas instituições ligadas à justiça, segurança, finanças, saúde e afins. E por todos coloco as minhas delicadas mãozinhas no fogo (porque não basta apenas dizer que se confia, é preciso provar- que se confia). E por, no que tange a depositar confiança cega, ser imparável, prossigo. Deposito a mais devota confiança em tudo que se associa ao poder e “derivados”. As declarações políticas são autênticos ninhos morninhos onde chocam-se as verdades; durmo bem mais descansada sabendo que na Assembleia Nacional tenho 72 nobres almas que zelam obstinadamente para o meu bem-estar e progresso do país, e sim, os olhos da minha alma sorriem de tranquilidade e paz por pertencer a um Estado onde é visível uma escrupulosa observância das leis.

Não. Não estou demente. Mas talvez esteja quem acredite que a confiança ou o ato de confiar possa ser algo imposto. Uma exigência. Fundamentada no nada. No vácuo. Uma maneira adolescente, para não dizer levianamente frouxa, de encarar este valor.

A confiança é coisa séria. É o coração que bombeia sangue para todo e qualquer tipo de relações sociais. Sem a confiança a sociedade desmorona-se. A confiança atrai pessoas, pois transmite segurança, estabilidade; potencializa as transações entre os indivíduos e entre os indivíduos e instituições; funciona como uma espécie de “selo de qualidade” nas relações amorosas; fortalece as relações de amizade e profissionais; robustece as democracias e reduz drasticamente sensações como o medo, insegurança e ansiedade na medida em que assegura uma certa previsibilidade no funcionamento. É aquilo com que se pode contar. Aquilo que não nos deixa na mão.

Podemos confiar não só em seres humanos, como noutros seres vivos e até em objetos ou em forças invisíveis. Se há situações em que confiança significa um ato de fé, noutras exige motivos/razões para se confiar. No entanto, o ato de confiar comporta sempre riscos, pode possuir ou não alguma racionalidade, e se não tivermos informações ou dados suficientes para reduzir as dúvidas na hora de decidir confiar, é legitimo que não confiemos.

O ato de confiar resulta do percurso e das nossas experiências pessoais. Excetuando a confiança cuja base não é a racional (religiões p.ex.), por norma, confiamos em quem conhecemos. Traços como a transparência, a honestidade, a coragem, a boa reputação, conferem credibilidade e, consequentemente, confiança nas relações entre cidadãos e cidadãos/ instituições/ representantes políticos. Confia-se quando o “sistema” funciona de forma competente, isento e se sente que as instituições e órgãos existentes trabalham em prol do bem comum e do bem-estar coletivo.

Eric Uslaner, professor e cientista político, sugere que à medida que cresce a desigualdade, sobretudo em termos de rendimentos, a perceção de que as pessoas têm um interesse em comum no bem-estar da sociedade tende a desvanecer-se. Tornando assim a desigualdade um dos principais geradores de desconfiança.

Mas não fiquemos pelas desigualdades. É esse Cabo Verde - que compra votos para ganhar as eleições; que faz da cunha o recurso socialmente mais valorizado; que a impunidade recebe honoris causa, e mente-se a toda a hora, descaradamente, mesmo trazendo a verdade nas mãos, - que nos obriga a participar na brincadeira do “fecha os olhos e abre a boca” não admitindo suspeições, críticas nem escrutínio. Como se, por determinação divina, as instituições que lhe dão corpo estivessem acima de quaisquer suspeitas. Tudo boa gente.

Se levantarmos um bocadinho o véu, participar no ato de votar nas eleições é claramente uma demonstração de confiança. A abstenção nas últimas eleições legislativas rondou os 42.2%, e o cidadão comum, de tão desiludido que está com o seu país, já nem quer saber de nada. Entrou em “modo off “. E esse desinteresse devia ser objeto de interpretação política.

Porém, alheios aos fatos – forma enigmática de gestão dos recursos públicos, obscurantismo na administração pública, acentuadas desigualdades económicas/ sociais /culturais e descrédito - os discursos políticos do “faz de conta” prosseguem feito disco riscado.

Nós, cidadãos comuns, somos a toda a hora assediados a participar, a entrar na brincadeira do confiar de olhos fechados. A população, coitada, defende-se como pode a esse atentado ao intelecto. Há quem finja entrar na brincadeira do fechar os olhos e abrir a boca, mas na realidade faz batota. Vai espreitando sempre que pode, pois não é parva. E há quem já não esteja para fazer fretes, e uma vez chamada para a brincadeira, finja que não é com ela olhando para outro lado. Cá para mim, subtil estratégia encontrada de os mandar ir… pentear macacos.

Antónia Môsso

Mindelo, 27/06/2022

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Autoria:Antónia Môsso,27 jun 2022 15:26

Editado porAndre Amaral  em  28 jun 2022 13:24

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