Crescemos. Supostamente para trás ficaria esse tipo de brincadeira. Mas não. Agora não é o nosso coleguinha de brincadeira que nos puxa e insiste para brincar, mas sim o país. Cabo Verde (líderes políticos, partidos, órgãos de soberania, instituições e até serviços) exige que a sua população confie sem sombra de dúvidas e que “feche os olhos e abre a boca” sem temor do que por aí poderá vir. Pedem confiança. Retifico. Exigem confiança. Mas não é uma confiança qualquer. Querem aquela confiança de peito estufado. Aquela que leve os cidadãos despreocupadamente a colocar as mãos no fogo. Não lhes basta uma “confiança míope”, exigem uma confiança cega.
Como não se precisa provar, ganhar, garantir a confiança (visto tratar-se de um dado adquirido e incontestável), são os cidadãos comuns os intimados a provar a toda a hora que confiam cegamente no “sistema”. Não julgando. Não avaliando. Não criticando. Não exigindo. Não pensando e, principalmente, não fazendo uso da sua liberdade de pensamento e de expressão. (Que é o mesmo que, numa assentada, arrancar os olhos da democracia).
Assim sendo, confio cegamente no governo, partidos políticos, parlamento, e nas instituições ligadas à justiça, segurança, finanças, saúde e afins. E por todos coloco as minhas delicadas mãozinhas no fogo (porque não basta apenas dizer que se confia, é preciso provar- que se confia). E por, no que tange a depositar confiança cega, ser imparável, prossigo. Deposito a mais devota confiança em tudo que se associa ao poder e “derivados”. As declarações políticas são autênticos ninhos morninhos onde chocam-se as verdades; durmo bem mais descansada sabendo que na Assembleia Nacional tenho 72 nobres almas que zelam obstinadamente para o meu bem-estar e progresso do país, e sim, os olhos da minha alma sorriem de tranquilidade e paz por pertencer a um Estado onde é visível uma escrupulosa observância das leis.
Não. Não estou demente. Mas talvez esteja quem acredite que a confiança ou o ato de confiar possa ser algo imposto. Uma exigência. Fundamentada no nada. No vácuo. Uma maneira adolescente, para não dizer levianamente frouxa, de encarar este valor.
A confiança é coisa séria. É o coração que bombeia sangue para todo e qualquer tipo de relações sociais. Sem a confiança a sociedade desmorona-se. A confiança atrai pessoas, pois transmite segurança, estabilidade; potencializa as transações entre os indivíduos e entre os indivíduos e instituições; funciona como uma espécie de “selo de qualidade” nas relações amorosas; fortalece as relações de amizade e profissionais; robustece as democracias e reduz drasticamente sensações como o medo, insegurança e ansiedade na medida em que assegura uma certa previsibilidade no funcionamento. É aquilo com que se pode contar. Aquilo que não nos deixa na mão.
Podemos confiar não só em seres humanos, como noutros seres vivos e até em objetos ou em forças invisíveis. Se há situações em que confiança significa um ato de fé, noutras exige motivos/razões para se confiar. No entanto, o ato de confiar comporta sempre riscos, pode possuir ou não alguma racionalidade, e se não tivermos informações ou dados suficientes para reduzir as dúvidas na hora de decidir confiar, é legitimo que não confiemos.
O ato de confiar resulta do percurso e das nossas experiências pessoais. Excetuando a confiança cuja base não é a racional (religiões p.ex.), por norma, confiamos em quem conhecemos. Traços como a transparência, a honestidade, a coragem, a boa reputação, conferem credibilidade e, consequentemente, confiança nas relações entre cidadãos e cidadãos/ instituições/ representantes políticos. Confia-se quando o “sistema” funciona de forma competente, isento e se sente que as instituições e órgãos existentes trabalham em prol do bem comum e do bem-estar coletivo.
Eric Uslaner, professor e cientista político, sugere que à medida que cresce a desigualdade, sobretudo em termos de rendimentos, a perceção de que as pessoas têm um interesse em comum no bem-estar da sociedade tende a desvanecer-se. Tornando assim a desigualdade um dos principais geradores de desconfiança.
Mas não fiquemos pelas desigualdades. É esse Cabo Verde - que compra votos para ganhar as eleições; que faz da cunha o recurso socialmente mais valorizado; que a impunidade recebe honoris causa, e mente-se a toda a hora, descaradamente, mesmo trazendo a verdade nas mãos, - que nos obriga a participar na brincadeira do “fecha os olhos e abre a boca” não admitindo suspeições, críticas nem escrutínio. Como se, por determinação divina, as instituições que lhe dão corpo estivessem acima de quaisquer suspeitas. Tudo boa gente.
Se levantarmos um bocadinho o véu, participar no ato de votar nas eleições é claramente uma demonstração de confiança. A abstenção nas últimas eleições legislativas rondou os 42.2%, e o cidadão comum, de tão desiludido que está com o seu país, já nem quer saber de nada. Entrou em “modo off “. E esse desinteresse devia ser objeto de interpretação política.
Porém, alheios aos fatos – forma enigmática de gestão dos recursos públicos, obscurantismo na administração pública, acentuadas desigualdades económicas/ sociais /culturais e descrédito - os discursos políticos do “faz de conta” prosseguem feito disco riscado.
Nós, cidadãos comuns, somos a toda a hora assediados a participar, a entrar na brincadeira do confiar de olhos fechados. A população, coitada, defende-se como pode a esse atentado ao intelecto. Há quem finja entrar na brincadeira do fechar os olhos e abrir a boca, mas na realidade faz batota. Vai espreitando sempre que pode, pois não é parva. E há quem já não esteja para fazer fretes, e uma vez chamada para a brincadeira, finja que não é com ela olhando para outro lado. Cá para mim, subtil estratégia encontrada de os mandar ir… pentear macacos.
Antónia Môsso
Mindelo, 27/06/2022