Os últimos meses têm sido marcados por notícias relativas ao contrato de concessão, com muitas alegações de incumprimentos. Em que ponto estamos, exactamente?
A CVI é uma empresa nova, que começou a operar há três anos, a implementar um sistema novo de serviço público de transporte marítimo de passageiros e mercadorias. Nos três anos, vivemos em crises sucessivas, primeiro a pandemia, a seca persistente e, nestes últimos oito meses, a crise grave provocada pela guerra, com efeitos no custo dos combustíveis, o que afecta directamente os transportes e, neste caso, o transporte marítimo. A CVI tem feito um percurso positivo. Se me perguntar se está tudo bem, eu direi claramente que não. Há margem para melhorar todos os dias. Às vezes, damos conta que a CVI existe apenas quando há uma avaria técnica ou uma falha, mas na verdade, todos os dias, todos os nossos recursos estão envolvidos entre as ilhas. Em apenas três anos, a empresa já transportou mais de 1,5 milhões de passageiros e mais de um milhão de toneladas de mercadorias, em 13 mil viagens. Isto demonstra que há um sistema. Ainda está em fase inicial, é verdade, temos de melhorar todos os dias e nos últimos tempos tem sido muito difícil, por várias razões.
Que razões são essas?
Principalmente de ordem financeira. Temos de falar muito claro aos cabo-verdianos. É impossível estarmos em todos o lado, todos os dias, mas temos um modelo operacional que já foi testado, funciona bem, com algumas ressalvas. Como é óbvio, quando há uma avaria técnica, isso ultrapassa as pessoas, a gestão e o sistema e isso acaba por trazer alguma dificuldade. O desequilíbrio económico-financeiro da concessão é o ponto-chave.
A que se deve esse desequilíbrio?
Tem a ver, exactamente, com o pagamento das indemnizações compensatórias, que não é feito a tempo, nem de forma adequada. Isto provoca uma aflição terrível de tesouraria da empresa, o que dificulta, muitas vezes, até o cumprimento da própria programação.
Estamos a falar de que valor, neste momento?
Eu não gostaria de avançar números, porque isto tem sido muito discutido. Através do governo, estamos a trabalhar ao mais alto nível e o governo tem sido muito aberto a resolver praticamente todas as questões. Estamos numa fase boa, a negociar todos os dias, e vamos ultrapassar as dificuldades. Aqui o importante é estabilizar a concessão, porque estamos a viver períodos difíceis. Para termos uma noção da ordem de grandeza dos números, em 2022, com o aumento dos preços, vamos gastar mais de 500 mil contos só em combustíveis.
Em Julho, o Grupo ETE informou em comunicado de imprensa que a dívida se situava nos 9,5 milhões de euros. O que aconteceu desde então?
O Grupo ETE tem feito um esforço enorme para manter a tesouraria da empresa, manter a actividade, mas tudo tem limites.
Quando diz “um esforço enorme”, o que é que isto significa?
Que o grupo tem injectado capital na tesouraria da CVI? O Grupo ETE tem injectado muito dinheiro na tesouraria da empresa, depois também como credor de valores, nomeadamente de afretamento de navios e equipamentos e também na compra de navios. Neste momento, o grupo já investiu mais de 15 milhões de euros.
Esses 15 milhões incluem o quê?
Incluem o afretamento de dois navios, Chiquinho BL e Dona Tututa, incluem equipamentos da parte logística, a tesouraria…
Porque é que os navios são propriedade do grupo ETE e não da CVI?
Esta é uma questão interessante. A CVI é uma empresa nova, com uma composição accionista onde 51% do capital pertence ao Grupo ETE e 49% a armadores cabo-verdianos. A CVI não tem tido capacidade financeira para adquirir navios. O Grupo ETE fez um grande trabalho e prestou um grande serviço a Cabo Verde quando foi ao banco, pediu financiamento, comprou navios e os afectou à concessão…
O grupo está certamente a ganhar dinheiro com esse negócio...
Antes pelo contrário, não está sequer a receber, neste momento, os valores devidos dos afretamentos.
A CVI não está a pagar os afretamentos...
Não está a pagar a quase nenhum fornecedor. Isto é crítico. Se os navios não fossem do Grupo ETE ainda estariam em Cabo Verde? Se fosse outro fornecedor, já não estavam....
A CVI não tem condições para ir ela própria ao mercado obter financiamento para aquisição da sua frota?
Uma empresa nova, ainda sem activos, que começou a operar num período bastante difícil, ainda não conseguiu ter esta capacidade. Estamos a trabalhar com o governo para resolver esta questão financeira. Há um compromisso grande, porque o governo quer apostar, quer desenvolver e quer manter o sistema de transportes marítimos em condições sustentáveis. Para ser sustentável, é preciso que haja financiamento, dinheiro em tempo útil, e são precisas outras coisas, nomeadamente, a actualização tarifária. O tarifário de passageiros é de 2012 e a última actualização do tarifário de mercadorias ocorreu em 2006. Pagamos 800 escudos numa viagem São Vicente - Santo Antão. Desses, 30 escudos vão para taxa de porto, 6 para a taxa de regulação. Restam ao armador 764 escudos. É basicamente metade daquilo que pagamos para ir de táxi da cidade do Mindelo ao aeroporto.
Bem, mas um taxi leva 4 pessoas e um navio 400. É uma conta arriscada de ser feita...
Não, para o aeroporto tens 5 litros de combustível, 500 escudos de gastos. Um carro custa 2 mil contos, um navio 1,5 milhões de contos. Tê-lo todos os dias a operar, custa 700, 800 ou 900 contos.
Mas os preços já eram estes quando o grupo aceitou a concessão dos transportes marítimos
Eram, mas sempre numa perspectiva de os actualizar. Por isso é que estamos a trabalhar e já há uma grande abertura, há um reconhecimento do governo. Temos que aplicar o princípio do utilizador- pagador.
Afinal, a rota São Vicente - Santo Antão não é rentável?
As rotas não são rentáveis, porque tens o contrato e tens que o cumprir todos os dias, quer haja passageiros ou não. É a rota mais equilibrada, neste momento, mas poderia ser ainda melhor. Nós temos um sistema de nove ilhas, portanto, a maior parte das rotas são deficitárias...
Mas é aí que entra a indemnização compensatória…
É aí que entra a indemnização compensatória, mas ela deve ser feita em tempo útil.
Na rota São Vicente – Santo Antão, o que seria para si um valor razoável? Acima de 1.000 escudos?
Acho que 1.000 escudos, ou um pouco acima dos 1.000 escudos, era normal e suportável. Convenhamos, 800 escudos não é propriamente um valor compatível com o serviço que se presta...
O cenário de ruptura, está afastado neste momento? Quando digo ruptura, falo de acabar a concessão.
Isto nunca esteve em cima da mesa. É um cenário muito longe da realidade....
Se a empresa se tornar definitivamente insustentável, deixar de ter condições para operar, pagar salários, se os fornecedores deixarem de prestar serviços… Não é assim tão impossível...
Neste contexto, sim, mas quando há vontade política, é possível resolver. Há uma vontade e uma abertura clara do governo, ao mais alto nível, para estabilizarmos a concessão, garantirmos a sua sustentabilidade e ganharmos outra vez o equilíbrio económico.
Esta estabilidade financeira consegue-se através da regularização das dívidas e de uma mexida tarifária. É por aqui?
Claramente. Esta é uma equação que tem valores muito claros. Há uma operação, custa X, ela é deficitária, deve ser compensada do ponto de vista da indemnização compensatória. Depois, a indemnização compensatória pode ser mais ou menos em função daquilo que o tarifário também puder ser. Ou seja, se tivermos mais tarifa, teremos menos indemnização compensatória. Quanto maior for o tarifário, mais real e mais ajustado ao mercado, menor será a indemnização compensatória. O Estado também tem consciência de que é necessário atribuir a compensação, porque cabe ao Estado garantir a coesão territorial, a mobilidade, a rápida circulação de pessoas e bens. É preciso sempre algum equilíbrio. Eventualmente, mais de 50% das pessoas que utilizam os transportes marítimos fazem-no por lazer. Devemos subsidiar o lazer? Esta é uma questão que também temos que ver.
Quando fala das negociações em curso, noto-o esperançoso em relação ao desfecho. Ouvimos há dias declarações do ministro do Mar que vão em contraciclo com o tom que trouxe para a nossa entrevista.
A minha interpretação é completamente diferente, sou construtivo, acho que este projecto é um dos projectos mais importantes de Cabo Verde nos últimos tempos. É um projecto que não deve falhar, deve haver uma junção de esforços, pessoas e recursos, para que haja um sistema a funcionar. A empresa está a trabalhar diariamente com o governo e a um nível alto.
Outro tema que tem estado em cima da mesa prende-se com as dividas a empresas públicas, nomeadamente Enapor, Cabnave… Há dividas da CVI a estas empresas?
Claramente. Se nós não conseguimos ter ou gerar fluxos suficientes, se não conseguimos que as indemnizações compensatórias sejam pagas a tempo, não conseguimos satisfazer todos os nossos compromissos, a todos os nossos fornecedores. Graças a Deus temos uma relação muito boa com todos os fornecedores, temos uma relação de excelência com a Enapor, com a Cabnave, com os fornecedores de combustíveis, com todos os armadores e muitos deles são accionistas e têm navios afretados à CVI. Graças a isso, a este relacionamento, ainda estamos a conseguir trabalhar.
Foram suscitadas questões relacionadas com a credibilidade das contas apresentadas pela concessionária. Há sobrefacturação das contas da CVI? Elas poderão ser auditadas?
Isto é falácia, um mito que as pessoas tentaram criar. É totalmente falso. As contas são totalmente transparentes, auditadas todos os anos. Temos um auditor externo. A CVI tem uma auditoria externa, que faz parte das exigências do contrato de concessão. Não há nada de ilegal, de má fé.
Em torno da CVI foram criadas várias outras empresas que prestam serviço à CVI. Isto não é uma forma de sobrefacturar? Tudo isto é transparente?
Tudo transparente. [Essas empresas] participam no mercado e faz-se sempre uma avaliação de preços, pedimos sempre propostas. Não são preços acima daqueles que existem no mercado ou que eventualmente outros poderiam oferecer, são preços competitivos. É uma relação totalmente transparente. Temos até feito auditorias dos chamados preços de transferência entre empresas do mesmo grupo. Partilhamos com o governo relatórios específicos dos preços de transferência, para mostrar que, de facto, nada é feito de forma dolosa, contrariamente àquilo que muitos querem passar.
Foi referida há dias a questão dos salários praticados pela CVI e da necessidade de alinhar esses salários com a realidade do país. Os salários estão inflacionados?
Não. Isto não é visto desta forma. A CVI é uma empresa privada, tem liberdade para decidir sobre a sua política salarial. Os preços são preços de mercado. Veja que em relação aos tripulantes, por exemplo, não tínhamos e não temos gente suficiente em Cabo Verde. Há armadores que pagam muito mais do que a CVI, principalmente quando se trata de pessoal qualificado, oficiais de ponte e de máquinas. Agora, nós não podemos estar submetidos a uma portaria do governo que estabelece valores para os gestores públicos, porque não é o caso. Esta é a parte que convém ser explicada e que as pessoas têm de perceber. Se me perguntar se temos valores exorbitantes, não temos. Temos valores do mercado.
E quanto ao pessoal de terra, nomeadamente cargos de gestão?
Não. Vou lhe dar um exemplo: eu não tenho salário na CVI. O meu salário é do Grupo ETE, como representante do Grupo ETE em Cabo Verde. O meu salário vem directamente do Grupo ETE. Faço o meu trabalho pro bono, em representação do accionista maioritário, mas sem qualquer tipo de remuneração. Não estou a onerar os custos de administração por causa disso.
Porque é que, na semana passada, houve alterações na rota Fogo-Brava e nas viagens para São Nicolau?
São pequenos ajustes que, por vezes, são necessários. Se me perguntar se é razoável, não é. Se deviam acontecer, não deviam...
Foi ou não uma forma de pressionar o governo e causar ruído?
Não, de todo, porque estamos a trabalhar com o governo todos os dias. Temos um nível de relacionamento fantástico, a abertura é total e as negociações estão a decorrer de forma muito construtiva, de boa fé. Não há da parte da CVI, nem dos seus accionistas, qualquer tipo de pressão, de chantagem ou de condicionamento. Não é a nossa forma de estar no mercado. Já conhecemos o mercado, aquilo que são as necessidades. Por vezes, não conseguimos satisfazê- las todas, mas os navios não param, estão todos os dias nos mares de Cabo Verde, com a nossa tripulação muitas vezes em situação de exaustão, de dificuldade para cumprir...
Não sei se quero estar num navio onde a tripulação está exausta...
Exausta, no sentido de pressão, porque é diário, não paramos. Agora, cumprimos tudo aquilo que são as regras de segurança. Somos a única companhia em Cabo Verde a implementar o ISM Code, o instrumento de segurança para navios, e cumprimos também os horários de descanso da tripulação. É diferente um navio que não pára e um navio que faz uma rota e fica uma semana no porto, ou faz uma deslocação e fica 48 horas no porto. Exaustão em termos operacionais, no sentido de garantirmos que tudo o que está no contrato de concessão é garantido.
Quando poderemos ter ‘fumo branco’ nas negociações em curso?
Nos próximos dias. Estamos a fechar, já fizemos uma proposta concreta e uma explicação minuciosa das necessidades, não só nossas necessidades, também do mercado.
Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro