“Num futuro bastante imediato, todas as casas, todas as indústrias, serão centrais fotovoltaicas ligadas à rede”

PorJorge Montezinho,4 dez 2022 8:23

Damià Pujol – Director-Geral da APP
Damià Pujol – Director-Geral da APP

Foram inauguradas, na quarta-feira, as obras de ampliação do Sistema de Saneamento das Águas Residuais de Santa Maria. O investimento – 440 milhões de escudos – foi financiado pelo BCN em 90%. A ETAR de Santa Maria aumenta assim a sua capacidade em 50%.

O projecto de ampliação  da ETAR contemplou  a extensão da rede de esgotos ,com uma nova estação de elevação na zona hoteleira de Ponta Sinó e a correspondente linha de impulsão. Também  foi construída uma nova linha de tratamento biológico, reforçado o pré-tratamento e alargado o tratamento terciário.

Este é um investimento que pode também ajudar a "revolucionar" a agricultura da ilha do Sal, como explica Damià Pujol, Director-Geral da APP – Águas de Ponta Preta, ao Expresso das Ilhas.

Com estas obras passam a ser disponibilizados três tipos de água dessalinizada que pela primeira vez poderá ser direcionada para a agricultura.

É a cereja no cimo do bolo deste investimento, a reutilização da água para a agricultura. Este investimento inclui um tratamento adicional para purificar essa água regenerada para ser possível utilizar na agricultura alimentar. Isso permite transformar uma estação de tratamento de águas residuais – um serviço básico contemplado nos objectivos de desenvolvimento sustentável – numa fábrica de água que dará origem a três tipos de água: água de menor qualidade que servirá para regar jardins, espaços públicos, hotéis, até o golfe; uma segunda água – a chamada água ultrafiltrada – que permitirá fazer uma ampla gama de fruticultura e horticultura; e uma terceira qualidade – a melhor – que terá menos salinidade porque há cultivos que têm limitações em relação à quantidade de sal na água. Com esta ampla oferta tentaremos abranger todas as necessidades e todas as possibilidades de reutilização, incluindo este desafio que é a agricultura alimentar. E há mais um uso: a construção, porque esta água será utilizada também para produzir betão e blocos de betão. Este é o grande desafio deste projecto, não só dar resposta ao crescimento de Santa Maria em termos de população e de turismo como também dar um upgrade na reutilização para a agricultura. Até agora usávamos a água em rega de jardins e zonas ajardinadas, a partir de agora entramos noutra etapa mais sofisticada. Não é nenhuma novidade, já é feito em Israel, na Califórnia, nas Canárias.

É interessante esse conceito que referiu, transformar uma ETAR numa fábrica de água.

Que permitirá valorizar um resíduo – a água residual – evitar o esvaziamento no mar e reaproveitar para usos agrícolas. A ETAR tem várias partes: a de pré-tratamento, que já se começa a fazer nas estações de bombagem, com uma separação de sólidos e gorduras; depois passa-se ao tratamento biológico, onde apenas com a introdução de oxigénio há umas bactérias que se alimentam da matéria orgânica que existe na água; a partir deste passo é só afinar. Neste passo aparece também um resíduo, a lama, que no próximo ano será reutilizada junto com restos de plantas. Será tudo triturado – já temos a máquina – e será misturado para criar composto, que será usado como fertilizante de alta qualidade para terrenos áridos. No Sal há muitas possibilidades de fazer o que fizeram os israelitas no Deserto do Negev, que o fizeram florescer. Vamos tentar fazer aqui igual. O que era feito até aqui já permitia usar a água na rega de jardins. Com a nova parte, a ultrafiltração, conseguimos diminuir a salinidade e usá-la na agricultura.

Uma ETAR pode revolucionar uma ilha inteira.

Bem, vamos a ver se conseguimos. O que faz crescer o Sal é o turismo, atrás dele é que vêm as outras coisas, como a necessidade de alimentos. Cabo Verde apenas consegue produzir 20% da comida que consome, vamos ver se aumentamos um pouco esta taxa, tentando produzir variedades de fruta e de hortícolas que sejam utilizáveis não só para a população como para o mercado turístico. Seria bom para a balança de pagamentos, para diminuir as importações. Não sei dizer em que medida seremos os agentes transformadores, mas será um passo importante. Também se estão a dar grandes passos em Santiago e em Santo Antão, mas aqui no Sal, onde as condições são piores por causa do clima e da aridez do terreno, vamos ver se com este recurso hídrico não convencional, que é a água regenerada, conseguimos começar a dar a volta à situação.

Qual é o volume de água envolvido?

Neste momento estamos a tratar perto de 2.500 metros cúbicos por dia de água residual. Que se transforma em 2.000 metros cúbicos de água regenerada. Destes, 600 metros cúbicos vão passar para esta segunda etapa, dos quais vamos ter 350 metros cúbicos de água ultrafiltrada e 250 metros cúbicos de água osmotizada [que passou pelo processo de Osmose Inversa]. Com esta ampliação, a ETAR passa a ter capacidade para 3.750 metros cúbicos por dia. Ou seja, com isso vamos poder dar cobertura a uma população de 8.000 habitantes e 14.000 turistas. Estamos a preparar a infra-estrutura para o principal, que é proporcionar um serviço básico, mas depois, como a tecnologia permite, vamos ver se conseguimos dar este segundo uso e evitar que a água se perca no mar e seja aproveitada para a agricultura.

Como está o projecto feito em termos de sustentabilidade?

A ETAR tem uma central solar fotovoltaica com uma potência de 300Kwp [Watt-pico é uma unidade de potência criada especialmente para medição em painéis fotovoltaicos e simboliza a capacidade máxima do painel sob condições ideais de funcionamento] com a qual vamos produzir 30% das necessidades de consumo de electricidade dos processos de tratamento de água. Isto tem o seu impacto no meio ambiente e na economia, evitando a importação de combustíveis e a contaminação provocada pelos sistemas térmicos de produção de energia. As políticas actuais vão na direcção de integrar as energias renováveis em todas as infra-estruturas hidráulicas e neste caso é possível. Provavelmente, a curto prazo, com o desenvolvimento de tecnologias de baterias, talvez consigamos ser autónomos em termos de energia.

Quais considera serem os grandes desafios energéticos para os próximos tempos?

Integrar-se na transição energética. Agora é apanhar boleia da tecnologia que está a ser desenvolvida. Temos já a mobilidade eléctrica na APP, a ETAR tem também um posto de recarga de viaturas eléctricas. Porquê importar combustíveis quando temos o recurso aqui e a tecnologia já permite utilizá-lo? Temos de ir nesta direcção. É cara? É. Esse é outro desafio. Mas as tecnologias tendem a ficar mais baratas.

Neste momento, em que o mundo está a entrar num processo de desglobalização é importante que Cabo Verde seja cada vez mais autónomo?

Claro. Não é só o nosso caso, da nossa empresa. As tecnologias solares permitem que as famílias sejam também cada vez mais autónomas. Uma das partes da transição energética é a geração distribuída. Num futuro bastante imediato, todas as casas, todas as indústrias, serão centrais fotovoltaicas ligadas à rede. O paradigma mudará completamente. Aqui no Sal, por exemplo, já temos uma escola de kitesurf totalmente autónoma, uma cooperativa agrícola em Espargos, em breve um restaurante na Murdeira. Em Monte Trigo, há 12 anos que se paga 16$ por KW/h consumido e é completamente imune às oscilações e às especulações dos mercados internacionais de combustíveis. Este é o caminho e estou convencido que Cabo Verde está no caminho certo.

Mesmo em termos de preços?

A produção de água é um processo caro pelo grande custo de energia, mas cada vez será mais barato porque cada vez mas as dessalinizadoras vão depender da autoprodução eólica, como temos os casos recentes do Maio, aqui na Ponta Preta, ou em Porto Novo. Cada vez mais as dessalinizadoras vão apoiar-se nas energias renováveis até ao ponto em que serão autónomas e não precisarão de energia térmica para os seus processos de tratamento de água. A partir daí, será possível reaproveitar toda a água para outros usos. Acho que o futuro de Cabo Verde é muito bonito.

Como vai a APP capitalizar estes investimentos?

Graças ao facto do país ter cada vez mais segurança jurídica, uma agência de regulação que determina as tarifas de forma transparente, tarifas que pagam o serviço da dívida do investimento aos bancos e o retorno para os accionistas. Somos uma empresa totalmente privada e trabalhamos com completa confiança na segurança jurídica de Cabo Verde, que evoluiu muito deste que viemos para cá em 2000. E nós que estamos num sector delicado, onde não podemos determinar o preço, porque são serviços básicos e têm de ser regulados por uma entidade independente, confiamos plenamente que todos os intervenientes farão o seu trabalho.

Um investimento de 440 mil contos, a maior parte conseguido junto de um banco. O financiamento – que era uma das queixas dos empresários – já não é tão difícil como antes?

É cada vez mais fácil encontrar financiamento nos bancos cabo-verdianos, também graças à evolução da segurança jurídica. Ou seja, os bancos têm a certeza que vão recuperar os créditos. No nosso caso, este investimento na ampliação da ETAR e no sistema de saneamento de Santa Maria foi financiado em 90% pelo Banco Cabo-Verdiano de Negócios (BCN). Os outros 8% são recursos próprios da empresa e 2% foram um donativo através do projeto “Acesso à Energia Sustentável para Gestão da Água: Nexos Energia-Água”, financiado pelo Fundo Global para o Ambiente GEF e a ser implementado em Cabo Verde pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) e pelo Governo.

A APP está em Cabo Verde há 22 anos, tem acompanhado a evolução do ecossistema empresarial. Acha que os desafios legais, regulatórios, administrativos, etc., têm diminuído ao longo dos anos?

Sim e graças a este trabalho legislativo feito. Em 2010/2011 começou uma profunda reforma do sector da água, foi a época em que foi implementado o código de água e saneamento e toda uma série de diplomas complementares com os quais Cabo Verde passou a fazer uma gestão integrada do ciclo da água. Antes, o saneamento era o parente pobre, ninguém sabia, ninguém queria, mas com esta reforma, que ainda continua, as coisas mudaram muito e têm reflexo também na parte de financiamento. Foi implementado um regulador técnico – Agência Nacional de Água e Saneamento – e uma reguladora económica – Agência Reguladora Multisectorial de Economia – e isso permitiu procurar financiamento, esta segurança jurídica, a garantia que os cash-flows [fluxo de caixa, o dinheiro que entra e sai da empresa] fluirão, sempre dentro dos parâmetros que garantem que o serviço não será muito caro para os utentes, mas que permite o retorno do investimento aos promotores e o pagamento dos empréstimos aos bancos.

Para terminarmos. Que projectos tem a APP para o futuro?

Como empresa privada estamos numa posição em que vemos que há muita coisa a fazer. Então, estamos a tentar desenvolver tudo o que é o nosso core business através de parcerias público/privadas. Temos uma, que vai fazer 15 anos em Dezembro, que permitiu mobilizar mais de 3 milhões de metros cúbicos de água na cidade de Porto Novo, agora estamos a tentar alargar esta parceria a toda a ilha de Santo Antão. Posso dizer que vamos assinar com a Electra dois contratos para desenvolver dois parques fotovoltaicos de 5MW [MegaWatts – O MW é uma unidade de grandeza física de potência, que representa uma medida de potência equivalente a um milhão de Watts] nas ilhas do Sal e de São Vicente, que vão produzir energia que será vendida a 5$00. Tudo isso terá repercussão a médio prazo. A curto prazo – falo de 2023/2024 – as coisas vão melhorar. Por isso, o futuro? Temos de ser optimistas e positivos e da nossa parte acompanhar a evolução da tecnologia para dar melhores serviços, aos melhores preços e aumentar o nível de vida e o desempenho económico. Cada interveniente tem de fazer o seu papel.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022. 

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Autoria:Jorge Montezinho,4 dez 2022 8:23

Editado pormaria Fortes  em  4 dez 2022 14:18

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