O mundo vive tempos conturbados com os extremismos de parte a parte a acentuarem-se. Que visão tem do cenário político internacional?
Eu creio que vivemos tempos absolutamente desafiantes e que exigem governos seguros, credíveis e, sobretudo, governos com coragem e responsabilidade. Nós vivemos uma guerra na Europa e no Mundo. Temos também a crise inflacionista, que vinha de antes da guerra, mas que afecta todos os países, porque a guerra veio acrescentar dificuldades no acesso às matérias primas, o que faz aumentar os preços. Vivemos tempos conturbados, também do ponto de vista político no que diz respeito ao crescimento dos movimentos populistas. Nós temos hoje um terreno fértil para que os movimentos populistas possam crescer quando não há um contraponto responsável, por parte dos partidos políticos que normalmente têm a responsabilidade de governar, designadamente os partidos mais moderados de centro-esquerda e de centro-direita. Creio que o que acontece hoje é que o combate à pobreza, o combate à corrupção e a luta pela transparência, pela credibilidade são combates que os governos moderados têm de fazer porque são o terreno fértil que conduz ao populismo, a terceira causa da degradação das democracias. E hoje parece que há um conjunto de políticos, normalmente conotados com os espaços mais de centro do espectro partidário, que não se importam de crescer do ponto de vista eleitoral com afirmações e projectos políticos que são absolutamente populistas, que à primeira vista parecem muito úteis do ponto de vista eleitoral e que até têm a confiança dos eleitores, mas que são nefastos para as democracias.
Mas a democracia está em risco?
Nós temos assistido no mundo inteiro a situações que não pondo a democracia em risco, porque creio que hoje a esmagadora maioria das populações já tem uma cultura democrática muito enraizada, mas temos assistido a circunstâncias que minam aquilo que são os pilares essenciais da democracia. Nós tivemos há dias o que aconteceu em Brasília que é, de facto, um atentado à democracia e ao Estado de Direito Democrático. Nós não podemos ter uma perturbação do funcionamento normal das instituições como tivemos nestes dias. E isso acontece pelo crescimento de movimentos populistas e acontece, sobretudo, por causa deste antagonismo do preto e do branco no sentido que as coisas não podem ter um meio termo. Isso prejudica os pilares do Estado de Direito e da Democracia.
A Europa tem sofrido uma pressão migratória muito grande que também tem ajudado ao nascimento destes movimentos. Temos o Chega em Portugal, o Vox na Espanha, a Frente Nacional em França... Como se reverte esta pressão?
Deixe-me dizer uma coisa. Não é só de direita. A Europa assistiu nos últimos anos a governos de esquerda mais dura. É que eu não distingo, sinceramente, os movimentos populistas de esquerda ou de direita radical. Portugal com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista e Espanha com o Podemos tiveram governos apoiados em partidos extremistas de esquerda e eles [partidos extremistas de direita ou esquerda] estão uns para os outros como irmãos gémeos. Dito isto, sendo eu português e estando hoje em Cabo Verde – Hugo Soares participou na sessão solene do 13 de Janeiro – a sua pergunta ganha mais pertinência porque quer um país quer outro são países de forte pendor de emigração. Portugal é hoje, também um país receptor de imigrantes, mas tem uma história marcada de emigração que ainda hoje se repercute. Eu creio que políticas de integração são cada vez mais urgentes. Nós não podemos continuar a tentar, por um lado, escamotear que estes fluxos migratórios são uma realidade. O mundo deu um exemplo de sabedoria e de construção de democracia e de paz na forma como integrou agora aqueles que fugiram da guerra na Ucrânia. Eu creio que políticas cada vez mais assertivas de integração são absolutamente necessárias. E há que dizer com toda a coragem que não são os fluxos migratórios que põem em causa a segurança ou o bem-estar dos outros. É preciso dizer isto de forma clara exigindo também que aqueles que se querem integrar noutro país tenham de respeitar os princípios, os valores desse país. Só com um discurso muito claro é que podemos combater a demagogia desses movimentos populistas.
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria, esteve em Cabo Verde há um ano para fazer a entrega de vacinas contra a COVID, mas também assinou uma linha de crédito para construção de centrais dessalinizadoras, e em declarações à comunicação social disse que, mais do que políticas de integração dos imigrantes na Europa, é necessário que as pessoas sintam a necessidade de emigrar. Concorda com essa ideia?
Isso é verdade. Os movimentos migratórios surgem por necessidade, e dentro deles temos aqueles que fogem de uma guerra, mas também aqueles que procuram uma melhor oportunidade de vida. Hoje em dia o fluxo de pessoas tem várias causas. Agora é evidente que se todos nós, em cada país, tivermos melhores condições do que aquelas que temos hoje dificilmente procuramos outros para nos darem as mesmas condições. É natural que nos sintamos confortáveis no país onde temos a nossa família, onde crescemos, onde nascemos, onde vivemos. É evidente que sem nenhuma carga nacionalista, que eu creio que está cada vez mais em desuso e com que se deve ter muito cuidado precisamente por causa dos movimentos populistas que vão nascendo nos vários países, se nós tivermos consciência que melhorando as condições de vida estamos a criar atractividade para os nossos e para os que vêm de fora, isso parece-me uma evidência.
Como vê a evolução da democracia cabo-verdiana?
Cabo Verde é um exemplo da construção de uma democracia num tão curto espaço de tempo. As primeiras eleições livres e democráticas foram há 32 anos e Cabo Verde é uma democracia muito recente. Comparado por exemplo, com Portugal, que tem uma democracia mais consolidada desde 1975, Cabo Verde é uma democracia muito mais jovem. Mas a verdade é que, até do ponto de vista africano, é uma referência naquilo que diz respeito a num tão curto espaço de tempo se ter consolidado uma vertente de alternância política tão bem aceite e tão naturalmente aceite pelo povo cabo-verdiano. E desse ponto de vista, acho que é mesmo uma referência de construção de uma democracia que pode ser vivida dentro da alternância, dentro da alternativa, dentro da necessidade de fazer melhor pelo povo, mas no respeito total pelo Estado de Direito. Não quer dizer que não tenha os seus riscos, as suas ameaças, as mesmas que hoje se vivem na Europa, designadamente no que diz respeito ao ganho eleitoral fácil e aos movimentos populistas, mas é realmente um exemplo de construção democrática.
Saímos de uma crise provocada pela pandemia e entramos noutra provocada pela guerra. Como é que vê o futuro próximo?
Com apreensão, mas também com olhos de desafio. Creio que se deram provas de uma grande resiliência. Nenhum de nós estava à espera de ter vivido o que vivemos. Um isolamento brutal entre povos e pessoas face a uma doença que ninguém esperava que afectasse o mundo como afectou. E isso teve repercussão directa nas nossas vidas e no nosso quotidiano, mas evidentemente também nas economias de cada país. Agora vivemos outro período desafiante com a guerra e que ajudou a que houvesse uma crise inflacionista muito grande com uma subida brutal dos preços. Creio que é desafiante, porque os governos têm de ser capazes de encontrar formas de responder àquilo que são as necessidades mais prementes das populações. Um dos terrenos mais férteis ao crescimento do populismo é a pobreza, quando as pessoas não têm acesso ao que é mais essencial como alimentação, habitação, é muito fácil construir um amanhã que canta que normalmente corresponde a regimes totalitários de extrema esquerda e de extremas direita. Por isso, penso que a responsabilidade dos políticos é hoje olhar para aqueles que mais precisam e não deixar ninguém para trás. São tempos difíceis, mas também absolutamente desafiantes.
Este populismo tem contribuído para o descrédito da política e dos partidos políticos actuais. Como é que se reverte isto?
Os responsáveis políticos, tenham eles ou não responsabilidades governativas, principalmente estes segundos, devem sempre ter no foco a vontade de governar, mas também a expectativa que um dia vão governar e vão governar com aquilo que disseram atrás e disseram quando eram oposição. Porque eu creio que um dos problemas do populismo é precisamente a forma como os partidos que estão na oposição não olham a meios para poderem chegar ao poder, esquecendo-se que um dia terão a responsabilidade de ter responsabilidades governativas. Não se combate o populismo com populismo. Dá a sensação que há alguns partidos políticos no mundo inteiro que consideram que ocupar o espaço eleitoral do populismo é com mais populismo. Não é. É com responsabilidade, com credibilidade, é respondendo às necessidades concretas das vidas das pessoas. Porque o fim último da política é visar a felicidade das pessoas. O fim último de um projecto político é a felicidade individual de cada um, seja ela o que for. A política deve permitir às pessoas isso mesmo, ter o seu projecto individual de felicidade. E se nós não formos responsáveis desse ponto de vista e se continuarmos todos a alimentar este discurso populista de auto-destruição dos regimes democráticos, temo que os movimentos populistas possam continuar a crescer.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.