Nascida em Ponta do Sol, Santo Antão, o percurso de vida de Fátima Brito Monteiro, levá-la-ia a vários outros destinos em três continentes. Filha de funcionários públicos, cresceu em Moçambique, formou-se em Letras em Lisboa e é doutorada em Estudos Portugueses pela Universidade de Harvard. Fez pós-doutoramento em Yale, momento em que encaminhou o seu foco para estudos insulares, centrando-se em Cabo Verde e seu contexto regional. Foi docente em várias instituições de ensino superior, integrou diferentes centros de investigação e é presentemente investigadora da Faculdade de Letras de Lisboa. É presidente do Instituto de Estudos da Macaronésia (IEMAC), criado em Portugal em 2017 e do qual foi co-fundadora. Em 2020, deslocou a sua sede de actividade para São Vicente onde está a realizar um projecto de investigação sobre a Macaronésia e a Globalização e um projecto educativo de Mestrado em Assuntos Marítimos.
Cabo Verde nasce da confluência de dois continentes, mas parece haver um certo problema na assunção das vertentes (africana e europeia) que criam a crioulidade. Como vê esta questão?
Em relação à memória recente, há uma certa ideia de que há uma dívida de gratidão em relação ao continente. A independência foi há menos de 50 anos e a luta armada realizou-se em solo continental, na Guiné-Bissau e toda a região próxima. Os cabo-verdianos praticamente não foram para as “trincheiras”, eram as lideranças. Há toda uma história que foi contada que tem o seu impacto a nível da memória e penso que os cabo-verdianos ainda sentem algum pudor em reivindicar aquela parte que não é continental e que é, no meu entender, bastante mais forte. Não poderia deixar de o ser porque o cordão umbilical foi quebrado há mais de 500 anos, por um processo violento, com a escravatura, com a colonização, mas, de facto, aqui nasceu uma cultura que não é continental. Tem um substrato africano forte, sim, mas quando analisamos ao nível de um certo imaginário, este foi imposto ou absorvido dos europeus. Cabo Verde não pode ser considerado uma cultura africana, porque é muito marcada pelo catolicismo e pelos valores europeus. A própria língua cabo-verdiana, quando se defende que é uma língua africana… Alguns crioulistas defendem que os crioulos devem ser integrados nas línguas dos povos que predominantemente os falam, portanto, do que foi colonizado. Isto é extremamente problemático porque, entrando na teoria linguística, de acordo com as teorias de Chomsky, a gramática é universal, nascemos já com a gramática, e, portanto, esta não tem nacionalidade. O que tem marca nacional ou identitária é o léxico e a semântica. Ora, mais de 90 % do vocabulário, do léxico cabo-verdiano é europeu, não é africano. Assim, ponderando vários factores, sob o ponto de vista da ciência linguística, das teorias culturais, é difícil fundamentar a africanidade da cultura cabo-verdiana, mas não é correcto dizer-se isso sob o ponto de vista político e até “ético-moral”. Não fica bem.
Por que “não fica bem”?
Por causa de toda a história do racismo e da escravatura, obviamente. É um legado muitíssimo forte. Como o racismo é verificado predominantemente na base do fenótipo e da cor da pele, os cabo-verdianos, pelo menos a grande maioria da população, sob o ponto de vista fenotípico, é africana. Seria como que fazer uma negação da sua identidade racial, então é uma situação extremamente complexa e não se discute muito a questão racial e fenotípica em Cabo Verde.
Existe essa questão racial em Cabo Verde, onde há peles de várias tonalidades?
Sim, mas desde há bastante já tempo que se começou a estabelecer nos debates em torno das questões raciais a visão americana, em que, independentemente da tonalidade da pele, o que tem qualquer tipo de informação genética africana é “black”. Eles admitem a existência de mixed races, mas as misturas raciais contêm sempre, predominantemente, o factor genético negro.
Essa importação da “one-drop rule” americana faz sentido numa sociedade e cultura como a Cabo-verdiana?
É uma importação, mas não é muito recente. Vem desde a época da negritude. Foi muito mais absorvida em Santiago do que foi em São Vicente, por exemplo. A população de algumas ilhas, como São Vicente, até poderá ter uma tonalidade mais clara, mas há uma predominância de pele escura em Cabo Verde e portanto, de forma automática, é identificada como raça negra, é um povo negro.
E há racismo em Cabo Verde?
Não se pode falar da ausência de racismo em Cabo Verde. Desde os primórdios da sua história a questão racial esteve sempre presente. Não é, no entanto, uma questão que esteja muito extremada porque as teorias raciais não se implementaram em Cabo Verde, pelo seu tipo de colonização, pelo tipo de fragilidades inclusivamente ambientais, pela sua sociedade. Houve uma necessidade de as duas partes, o colonizador e o africano, se envolverem e de uma proximidade física e moral muito grande. É consequência disso essa falta de extremismo na questão racial, mas não quer dizer que não exista. Há uma consciência racial que se nota muito mais em Santiago, porque o contraste fenotípico é muito maior, mas em São Vicente também a há. As pessoas têm pudor em falar disso abertamente. Criou-se toda uma metalinguagem em torno da questão racial que diluiu, digamos assim, a intensidade do debate. Expressões como cabelo bedjo, cabelo cuscus, que as pessoas ainda usam, principalmente os mais velhos. Todas essas questões continuam latentes. Mas, isso não quer dizer que haja conflito racial. Acho que não há conflito racial, mas há, pelo menos latente, esta ideia de que a diferenciação racial conta e, se não há hoje, houve, em determinada altura, um favorecimento da pele mais clara.
Entretanto, alguns cabo-verdianos, principalmente de gerações mais antigas, não se assumem como africanos, mas hoje, praticamente todos os jovens dizem ser africanos. O que aconteceu que causou esta mudança?
Penso que se foi assimilando as ideias apregoadas por Amílcar Cabral, pelos líderes africanos, pelos pan-africanistas. Entraram livremente na sociedade e consolidaram-se. Houve também maior emigração para os EUA, deixou de ser quase exclusivamente Fogo e Brava.
Mas Cabo Verde precisa de se posicionar? Uma vertente tem de anular a outra?
Há uma pressão muito grande sobre o imaginário cabo-verdiano para se posicionarem.
Não é que o cabo-verdiano queira posicionar-se necessariamente, até porque está desvinculado pelo oceano dos continentes à sua volta, mas há uma pressão da parte africana, por via da luta de libertação. Acredito que se não tivesse havido essa luta de libertação neste momento não haveria esse dilema tão acentuado. O cabo-verdiano é visivelmente africano, não há como dizer que não tem sangue africano, no entanto, a nível do seu imaginário, da sua mentalidade particularmente nas ilhas do norte, está bastante distanciado de África e muito mais próximo da Europa, porque foi assimilado pelos tais valores europeus e do catolicismo. A minha posição nesses aspectos é relativamente clara. Entendo que Cabo Verde faz parte do Ocidente. Não há uma contradição entre crioulidade e ocidentalidade . A África continental, predominantemente, não é Ocidental, mas há várias comunidades, ao longo da costa africana, ocidentalizadas. Cabo Verde nasceu já praticamente ocidental, nasceu no oceano Atlântico, dentro dos valores da cultura judaico-cristã. Há depois o substrato africano a oferecer em permanência uma certa resistência, mas que foi muito absorvido. Se virmos bem, nem sequer o funaná é inteiramente africano. O batuque sim, mas é o bastião que ficou, e é o que tem sido utilizado, de certa forma manipulado, por um grupo que pretende "vender" a imagem, a ideia de que Cabo Verde não tem outros substratos tão ou mais fortes, nas ilhas do norte. Não ouvimos falar sobre a mazurca, o schottisch – que aliás já desapareceu praticamente –, a contradança, não ouvimos falar sobre muita coisa que é forte na identidade. Eu nasci em Santo Antão e as minhas tias e tios dançavam a mazurca, a valsa. Nos convívios das associações cabo-verdianas em Portugal é à volta deste género de danças e de música que se realiza a identidade das pessoas, não é à volta do batuque. No entanto, temos um centro cultural cabo-verdiano em Lisboa, sob gerência da embaixada, e que eu saiba, até hoje, tirando a Morna, não há qualquer tentativa de programação que inclua as variantes musicais e danças das ilhas do norte. Tudo é um sinal de que existe esta vontade de “anulação” de determinadas variantes culturais de Cabo Verde, o que é um empobrecimento. Pode parecer um bocado extremo, mas às vezes dá-me vontade de falar em cultural cleansing , uma limpeza cultural que se está a fazer em alguma medida.
Uma limpeza das manifestações que eram mais próximas das europeias?
Exactamente. A sociedade foi limpa destas manifestações mais próximas das europeias e é triste porque vivi no convívio deste tipo de manifestações, mesmo vivendo fora, pelo facto de a família transportar consigo toda a sua identidade.
Para terminar esta parte da identidade. Como encara o que parece ser quase uma guerra das línguas?
Coloca-se no mesmo contexto, está enquadrado na mesma narrativa da deseuropeização ou de conflito entre Europa e África. Quando se assumir que o bilinguismo é muito melhor do que o unilinguismo acho que fica a questão resolvida . E não é verdade que a maioria da população não fala português. É uma grande inverdade. A não ser que queiram assumir também que os que estão na emigração não são parte da nação cabo-verdiana. Só em Portugal há cerca de 100 mil cabo-verdianos, talvez mais, falantes de português. Depois, a população mais cosmopolita de São Vicente e de Santo Antão identifica-se com a Língua Portuguesa. Podem não falar como os portugueses de Portugal, mas falam Língua Portuguesa, é uma variante, português de Cabo Verde. Portanto, não venham defender a ideia de que a Língua Portuguesa não é língua materna. É sim, de vários cabo-verdianos. Esta história de quererem colocar o português contra o crioulo está a empobrecer uma geração inteira. Eu dei aulas na Uni-CV e os jovens sentiam-se extremamente constrangidos em assumir que a Língua Portuguesa é a sua língua. Eu disse-lhes: ‘apropriem-se da Língua Portuguesa porque é a vossa língua, é legítimo. Não é dos portugueses, porque se não os brasileiros não a podiam reclamar, nem os angolanos, nem os moçambicanos…’. Cabo Verde é a única das ex-colónias portuguesas que tem este conflito, que está completamente desenquadrado da sua identidade atlântica, do contexto da CPLP. Há uma série de vantagens que se estão a perder porque não se está a assumir como um país proprietário da Língua Portuguesa. É. Somos proprietários da Língua.
E qual o seu posicionamento sobre a oficialização da Língua Cabo-verdiana?
Tenho algumas dúvidas e inquietações. As experiências que tem havido relativamente à oficialização dos crioulos não têm sido muito boas. No Haiti, por exemplo, foram desastrosas. Não têm sido boas porque não há um capital de conhecimento científico que possa estar subjacente à adopção de toda uma série de medidas. Isso pode ter um efeito dominó muito grande, chega-se a um ponto onde nem se fala ou se escreve convenientemente a língua cabo-verdiana, muito menos a Língua Portuguesa, e ficamos num linguajar permanente que serve os interesses de parte nenhuma.
Falava há pouco que a Língua Portuguesa é uma vantagem. Em Cabo Verde criou-se um pouco a ideia de que se é “especial”. Depois, na emigração, há o confronto com outras realidades e exigências. Como é que acha que Cabo Verde está a preparar os jovens para o mundo?
Pois. Cabo Verde está a viver um momento de excessiva enfatuação cultural e identitária e, depois, quando se vê confrontado lá fora com os níveis de exigência que são impostos, a sua auto-estima é posta à prova, de prova absolutamente dramática. Isto acontece quando passam a fronteira para países onde o grau e os patamares de exigência são extremamente elevados. Portugal talvez nem tanto, mas dei aulas na Universidade Católica, que tem um patamar elevado de exigência no ensino e aprendizagem e na investigação, onde havia um sistema de monitores. Fui monitora de alunos cabo-verdianos e angolanos, para ajudá-los a integrarem-se no espaço académico e [os alunos] quando se vêem confrontados com esse grau de exigência, fecham-se em si próprios, na sua pequena comunidade e acusam a comunidade externa de não fazer um esforço para os integrar. Sentem-se envergonhados da sua falta de capacidade de acompanhar e um dos subterfúgios utilizados é que os outros os rejeitam por uma questão racial. Isto é complicado, um jovem cabo-verdiano que queira estudar fora precisa de ser preparado para o impacto da diferenciação social e diferentes patamares de exigência porque a sua auto-estima está extremadamente inflacionada no país .
O que tem falhado? O governo já admitiu que tem de aumentar o grau de exigência em alguns curricula escolares, por exemplo.
Isto leva à questão das elites. O governo adopta medidas, partindo do princípio de que a escola forma elites. A escola, pelo menos a nível do secundário, não forma elites. As elites formam-se a partir de um estágio mais avançado da educação. Portanto, quando os alunos que chegam à universidade são produto do ambiente familiar e do sistema educativo e não se pode assumir que um jovem, por ter concluído o ensino secundário, está preparado para ser transferido para um sistema de ensino superior estrangeiro, mesmo em países como Portugal que, não sendo dos países mais ricos da europa, já tem uma classe média bastante alargada, que tem acesso à cultura, à erudição, exposta a outro tipo de desafios e quando [esses jovens] chegam ao ensino superior já se forma uma linguagem que está noutro patamar. Os jovens que saem do ensino secundário, aqui, vêm, muitas vezes, do meio rural, pobre, com um sistema de cosmopolitismo muitíssimo esbatido, e contextos familiares extremamente mal preparados sob o ponto de vista da instrução. O governo tem [também] de ter em atenção todo o contexto cultural e familiar.
Mas há uns anos a comunidade estudantil cabo-verdiana, pelo menos em Portugal, era tida como uma comunidade de bons alunos. Há uma diferença nas gerações?
Acho que tem a ver com a língua portuguesa. Cada vez se fala pior e se escreve pior. Quanto mais novas as gerações, menos preparadas estão sob o ponto de vista linguístico. Não conseguem acompanhar, porque é a língua de pensamento e eles não pensam em Língua Portuguesa, não conseguem absorver os conceitos. Portanto, o reforço da Língua Portuguesa é condição sine qua non, e reforço da língua inglesa, que é falada em todo o mundo, é também importante. Se tiver pelo menos estas duas ferramentas, o inglês e a Língua Portuguesa, eu acho que os jovens cabo-verdianos têm condição para fazerem o brilharete que quiserem lá fora. Antes disso, não é possível e escusam de inventar que há racismo, que há isto e aqueloutro. É falta de bases, começando pela base linguística.
Em relação à diáspora. Há vários “cérebros”, mas a diáspora sempre se queixou de que o governo não aproveitava o seu potencial. E agora?
Os governos de Cabo Verde, desde a 1.ª República, têm uma relação extremamente problemática com a diáspora porque a massa crítica, as elites estavam, fundamentalmente na diáspora – entretanto, ao fim de quase 50 anos formou-se, aqui, uma geração que pertence a uma determinada elite. Ora, a 1.ª República implementou um regime de partido único, herdeiro da luta armada, das ideias panafricanistas e também influenciado pelos sistemas políticos dos países que ajudaram [na luta], como a União Soviética. Nessa altura houve uma estratégia de se esbater tudo o que fosse manifestação de carácter mais elitista na sociedade cabo-verdiana, e foram inclusivamente perseguidas as famílias com mais posses, particularmente em São Vicente e Santo Antão. A classe empresarial e comercial de São Vicente foi praticamente expulsa, viu-se obrigada a sair com o embate revolucionário da época. Os quadros administrativos de São Vicente foram para a Praia ajudar a implementar toda a construção do aparelho de Estado, e a esmagadora maioria dos que estavam nas outras colónias, particularmente Moçambique, que tinha muito mais quadros preparados do que Angola, não regressou a Cabo Verde, mas à pátria administrativa que era Portugal e continuaram integrados. Os seus filhos, cresceram dentro do mainstream português, frequentaram boas escolas, universidades. Essa é a parte mais representativa da diáspora, até uma determinada altura, porque os emigrantes da classe trabalhadora não tinham visibilidade. O que aconteceu foi que não se reconheceu a existência de uma estratificação a nível das comunidades emigradas e se rejeitou qualquer tipo de articulação com as elites cabo-verdianas que regressaram das outras ex-colónias. Durante muito tempo esta foi a situação e continua a haver esta resistência em reconhecer que a diáspora mais significativa em termos de capacidade de contribuir para o desenvolvimento em Cabo Verde são as elites, não são os trabalhadores. Estes contribuem sim, sob o ponto de vista do sustento dos familiares com as remessas. As elites nem têm remessas. Mas também não emitem remessas nem fazem investimentos porque os governantes cabo-verdianos não querem, porque se fizerem abre-se a porta para que haja um maior controlo da parte das elites do exterior relativamente ao que se passa cá dentro.
Falando então da governação. “A boa governação de Cabo Verde é das maiores falácias que já se tem inventado”. A frase é sua. Pode comentar?
Voltando atrás, eu disse que Cabo Verde é parte do ocidente, portanto, os patamares de exigência, para mim, têm de ser os patamares dos países ocidentais. Enquanto não se ajustar a bitola da governação pela bitola dos países ocidentais não considero que se esteja num nível de governação aceitável. A maior parte da nação cabo-verdiana reside em países ocidentais desenvolvidos. Exigimos que façam um esforço de se equiparar aos nossos patamares. Um amigo dizia sarcasticamente que o nosso problema é a Guiné. Isto porque sempre que formos comparados com a Guiné estamos numa posição favorável, agora se compararmos com países onde está o grosso da nossa emigração, [o nosso patamar] é muito mau. É nesse sentido que digo que é uma falácia. Alguém que desembarque na Madeira, nos Açores e nas Canárias, que estão aqui ao lado, percebe claramente.
Mas esses arquipélagos pertencem a países mais ricos e apoiados por uma entidade como a UE. Como comparar com um país pequeno e vulnerável como Cabo Verde?
Os governantes cabo-verdianos não querem tirar o partido todo que podem tirar da sua ligação à Europa. A Parceria Especial é, precisamente, o que está a proporcionar este status quo, porque o pior erro que a UE está a cometer neste momento é colocar no tesouro cabo-verdianos os euros que coloca. A prestação de contas tem de ser de acordo com os patamares que são exigidos para projectos europeus. Há aqui uma batota. Enquanto a UE não exigir critérios de qualidade, em termos de qualificação de quem vai gerir os projectos, ou quem está na concepção e na execução dos projectos não tiver uma qualificação igual à dos europeus, estamos a fazer batota, estamos a desperdiçar dinheiro dos contribuintes europeus. É altura de a UE trazer os seus procedimentos, para que os dinheiros dos impostos europeus não revertam para ou o bolso da corrupção ou para a incompetência. E o desperdício que há na intermediação entre governo e as instituições [beneficiárias] é tremendo. Não se dá o salto qualitativo que se devia ter dado através dos fundos europeus que já foram disponibilizados porque uma grande parte é absorvida pela máquina da governação. Isto não pode ser considerado boa governação. Outro aspecto: não se aproveita o know how dos investigadores e cientistas. Por exemplo, a nível da agricultura e ambiente foram apesentadas, nos últimos anos, algumas propostas para tentar resolver da forma mais definitiva possível o problema da falta de água. Já sabemos que não chove regulamente, não vamos bater nessa tecla, vamos é preparar-nos para, enquanto não chover, termos água em quantidade suficiente para rega, para consumo interno, etc. As universidades de países europeus, que têm imensa experiência nessas áreas, que já ganharam projectos europeus financiados devidamente, já vieram a Cabo Verde, já apresentaram projectos. Nós, investigadores cabo-verdianos na diáspora, servimos de interlocutores. Trazemos as pessoas, pagamos do nosso bolso, apresentam os projectos, fazem os diagnósticos. O Ministério da Agricultura e Ambiente diz que é um projecto válido. Fazemos visitas e depois nada acontece, não há qualquer tipo de follow up. E, volta e meia, o governo diz que recebeu X milhões da Hungria, X milhões da UE, e o resultado é nada. O problema da água não está nem vai estar resolvido enquanto não houver ciência sistemicamente inserida em todos os processos de aproveitamento, tratamento e produção de água, seja a nível das águas residuais, seja de aproveitamento da dessalinização, etc. A ciência está a trabalhar 24/24h, para ajudar a resolver esse tipo de problemas. Foi resolvido esse tipo de problemas, por exemplo, em certas zonas mediterrânicas que são secas. Os mesmo modelos e tecnologias podem ser perfeitamente usados em Cabo Verde a relativamente baixo custo. Não querem, pura e simplesmente, que os cientistas estejam aqui em Cabo Verde. A UE vai ter que ser persuadida a não colocar os recursos que disponibiliza a Cabo Verde nas mãos do governo, é tao simples quanto isso. Eu sou radical porque há muito tempo que ando nisto. Participei em vários debates em Portugal. A Parceira Especial foi assinada em Novembro de 2007, antes disso houve uma fase preparatória desde 2003, quando Onésimo Silveira era embaixador em Lisboa, em que este chamou os académicos. Não foram só os diplomatas cabo-verdianos que trabalharam. Nós fartamo-nos de trabalhar de graça para a Parceria Especial, para documentos e pareceres. Nada disso está a ser aproveitado. É um sistema que se vai consumindo de forma vitalista, sem se aproveitar os recursos intelectuais, a produção intelectual que vem sendo disponibilizada ao longo de muitos anos e, portanto, é uma Parceria Especial manca.
Acusou também os governos de intromissão em todas as esferas e de ainda não terem entendido as regras das democracias liberais. Mas, pelas dificuldades e desafios enfrentados pelos diferentes sectores, não acha que é ainda preciso um governo presente?
Isso tem sido uma argumentação perigosa para se sustentar totalitarismos e autoritarismos. Aliás, havia quem dissesse que a Península Ibérica, no período de Salazar e de Franco, nunca atingiria a maturidade para serem países democráticos porque os povos tinham um perfil cultural que vinha desde os tempos egrégios avós que não o permitia. Quando digo que se implante, com mais seriedade, a questão das democracias liberais o que eu quero dizer é que os cidadãos pensam, são capazes. A sociedade civil cabo-verdiana, em temos de qualificação técnica e científica está muito além do pequeno grupo de pessoas que constitui o governo. Quando não se aproveita esse capital que está fora do governo o resultado prático não pode ser o resultado qualificado. E não é o liberalismo selvagem, é simplesmente uma opção de um sistema que reconhece que cada cidadão, a partir do momento em que vota, tem a capacidade e o direito de contribuir para a edificação do seu país em pé de igualdade com qualquer outro, incluindo os políticos e os governantes. A sociedade deve ser o locomotor e não o reboque. Os políticos devem estar numa posição de aprendizagem ou no mínimo de recolha de conhecimento e de qualificações da sociedade civil. Devem ser alimentados constantemente, não só pelos impostos da sociedade civil, mas também pelas suas qualificações, pelo conhecimento, pelo know how e quando há obstrução dessa sinergia ou dessa transmissão do conhecimento para os governantes, a sociedade civil está a ser desaproveitada e a governação é pobre. Não pode ser rica, se não é enriquecida pelo conhecimento da sociedade civil.
Então há relutância em fazer uma divisão de funções e poderes com a sociedade civil?
O termo que me ocorre é de açambarcamento. O poder político conseguiu lograr o açambarcamento de todas as esferas de actividade social, pública e económica . Tem a sua pegada em absolutamente tudo, não permite que os outros se expandam, que floresçam, que tenham liberdade para manifestarem. Como o mercado de trabalho de facto é muito pequeno, o poder económico é relativamente frágil, as pessoas não arriscam. Os cabo-verdianos passaram a ser um povo extremamente medroso, porque só estão autorizados a expressar-se a um determinado nível e em determinada esfera. No Carnaval é a expressão total, mas depois ninguém se atreve a entrar no patamar que o poder quer controlar. Portanto, não se pode dizer que estamos numa sociedade democrática. Estas são sociedades vibrantes, onde as pessoas não têm receio de expressarem, inclusivamente, o seu conhecimento de carácter científico, porque pode pôr em causa um programa que um ministro quer implementar falando exclusivamente com o que considera os seus homólogos. Nas sociedades desenvolvidas a questão dos homólogos não interessa. O que conta é chamarem quem está mais preparado na área. Os governos têm obviamente a função de programar a governação, de estabelecer estratégias, mas mesmo as linhas estratégicas se não tiverem o input da massa crítica mais qualificada, são fracas. É isso que não se consegue aproveitar a posição estratégica de Cabo Verde, porque quem pensa estrategicamente, com qualificações, sustentabilidade técnica, científica e tem espaço para reflectir, não está envolvido no processo.
Falando das vantagens estratégicas da posição de Cabo Verde. Quais são essas vantagens?
Antes de mais, a estratégia tem de servir para alavancar o desenvolvimento interno, e para poder realmente defender com garra as suas capacidades. Tem de saber ter a força negocial, particularmente, com os europeus. Os governantes cabo-verdianos preocupam-se em parecer bons alunos em vez de serem governantes que reivindicam patrioticamente. A UE tem um compromisso de reposição do que foi retirado durante o período colonial às suas colónias. Portanto, Cabo Verde tem de ser mais exigente perante a UE, mas para exigir tem de come to terms, exigir porque sabe que vai implementar com critério, com qualificação, com competência. Para isso tem de chamar os mais qualificados. Mas isso não lhe interessa porque a partir do momento em que as coisas se tornem funcionais e haja um alargamento da classe média ou que o patamar de vida das populações rurais melhore, os governos vão sendo cada vez menos essenciais. E é isso que não se quer. Não se quer deixar de ser útil porque associado ao facto de ser útil está a visibilidade, está o poder de mandar, estão as visitas ao estrangeiro, a conversas com os homólogos e está todo um teatro montado para se mostrar, para fins egocentristas. É uma questão de ego.
Cabo Verde tem aproveitado a sua posição na Macaronésia?
Os governantes cabo-verdianos não querem assumir-se como um pequeno estado insular desta região do médio Atlântico. Querem pensar como um homólogo dos grandes Estados continentais. Gostam de apregoar que têm negociações com a China, com os EUA, fazem visitas, assinam contratos, que acabam por não resultar em nada, quando através do financiamento dos europeus para a macaronésia pode beneficiar de quantias bastante avultadas para desenvolver sectores como a agricultura, a água . Entendo que Cabo Verde deve explorar de uma forma muito mais ambiciosa o contexto insular e não o contexto continental. A ligação entre Cabo Verde e a sua região atlântica, oceânica, tem sido muito diminuída. A partir do momento em que se aceitar que a escala, por exemplo, de mercado é equiparável mais à Macaronésia do que é África continental, e muito menos ainda à Europa ou os EUA, estabelecem-se programas sérios, credíveis e sustentáveis com a Macaronésia.
E como vê relação de CV com a CEDEAO?
Cabo Verde pode ser um hub, uma estação de Educação. Pode vender educação e formação, particularmente no sector marítimo. É isso que eu estou a tentar introduzir o mestrado em Assuntos Marítimos. É um mestrado híbrido, presencial e online, e executivo. Ou seja, não é um mestrado teórico voltado para a investigação, é para formar executivos, pessoal que já trabalha no sector marítimo de uma maneira geral. Já foi testado [numa primeira edição]. 1/3 dos alunos eram de países da CEDEAO do Togo (4) e Gâmbia (3), além de Cabo Verde (9) e também do Uruguai (1) e Açores (1). É preciso que haja uma maior circulação de quadros, de pessoas preparadas, que sabem o que está em causa, que têm interesses e vestem a camisola das suas regiões e dos seus países, sem nacionalismos exacerbados, sem os problemas do panafricanismo. Vamos é tratar de qualificar o nosso pessoal. Estou a negociar a 2ª edição do tal mestrado, que está um bocado atrasada, porque não quero começar sem a UNICV ou a UTA, sem que haja pelo menos uma universidade pública cabo-verdiana, envolvida no projecto. A fase curricular, a pós-gradução, da 1.ª edição já terminou. Agora os alunos na fase de dissertação estão com a universidade de Rauma (Finlândia), uma das parceiras deste projecto de formação avançada em estudos marítimos, que conta também com a colaboração de uma universidade da Grã-Bretanha e da Escola Naval de Portugal. O IEMAC não é uma instituição de ensino superior, é só de investigação, e não pode conferir graus académicos, então temos esse protocolo com a universidade de Rauma, que o confere o grau e mestrado para os que quiserem prosseguir [estudos].
Para terminar, voltando ao desenvolvimento. Como se salta para um desenvolvimento que não esteja dependente da ajuda externa?
Estamos neste estado precisamente o Estado que não permite que haja investimentos vindos através de outras vias. O investimento que se faz através da ajuda da cooperação internacional não tem tido efeito multiplicador. As tecnologias, conhecimentos, tudo o que é preciso transferir para o mercado de trabalho, não está a sê-lo. A situação vai ser cada vez mais periclitante, se não se fizer esta absorção do que está fora do circuito restrito do governo. Sabe quantos cabo-verdianos da diáspora, que estão colocados em posições favoráveis nos EUA e países europeus têm uma contribuição sistemática em projectos e programas do governo de Cabo Verde? Nenhum.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.