Este ano, de Janeiro a Março, a Associação A Ponte já atendeu 33 pacientes. Chegam aqui, encaminhados por vários parceiros para consultas gratuitas e os de saúde mental e dependências que aqui os trazem.
Entre os pacientes, há também os que sofrem de transtorno bipolar.
Este ano, na verdade, ainda não surgiu nenhum caso novo, conta Marcília Araújo, psicóloga da Associação. Já no ano passado apareceram dois, um homem e uma mulher, que se juntam a alguns outros que já tinham recorrido a esta Associação de Promoção da Saúde Mental, na cidade da Praia.
São todos relativamente novos. A paciente do ano passado tem 28 anos, o homem tem 35 anos. Há também uma outra senhora de 42 anos, uma, professora, de 34 anos que lida com a doença há sete, entre outros …
O transtorno bipolar não é, pois, uma patologia rara. Nem em Cabo Verde, nem no mundo. Embora não haja dados estatísticos concretos quanto à taxa de incidência no país, acredita-se que seja semelhante à do resto do mundo, podendo chegar a 9 ou 10% da população, aponta, por seu turno, desde São Vicente, o psiquiatra Aristides da Luz. A título de comparação, a esquizofrenia, por exemplo, tem uma taxa de incidência de 1 a 2% na população mundial.
Quanto ao género, embora os estudos modernos apontem que não existe uma diferença, chegam ao seu consultório mais mulheres com este problema, talvez porque estas “procurem mais os cuidados de saúde”. Porém, a “diferença não é muita, em relação aos homens. Já a depressão, sim, é mais frequente nas mulheres”, diz.
O que é?
Mas afinal em que consiste? Como explica Aristides da Luz, o transtorno bipolar é uma doença que afecta o nosso humor ou o nosso estado de ânimo. Outras doenças, como a depressão, também o fazem, mas o transtorno bipolar tem a característica, como o nome indica, dos dois polos. “Há um polo depressivo – de depressão, tristeza, apatia, falta de vontade, isolamento – mas também um outro polo que é o polo da euforia, uma alegria que chamamos de mania”.
“Ou seja, todos nós podemos ter episódios de tristeza, sem ser um quadro de depressão, e também temos episódios de alegria, sem ter um quadro de mania. A mania é uma alegria patológica onde muitas vezes ou quase sempre a pessoa perde o senso crítico dos seus actos”. Essa mania pode inclusive ser acompanhada de sintomas psicóticos: alucinações, ideias delirantes, muitas vezes de poder, de grandeza.
“Entre as fases, normalmente há um período de estabilidade”, aponta.
O diagnóstico, como acontece em geral com as doenças do foro mental, é “quase 100% clínico”. Sobre o mesmo, explica o médico, que é feito “no transcurso da doença”. Não face aos primeiros sintomas, ou surtos, mas à sua ocorrência ao longo do tempo.
Entretanto, muitas vezes, os doentes têm mais episódios de depressão do que de mania, o que leva a confundir o Transtorno Bipolar com Depressão.
“O diagnóstico é feito a partir do momento em que a pessoa tem essas duas situações [os dois polos] e com um período de completa normalidade”, especifica.
Se tratada, com a dosagem certa de lítio, a pessoa pode passar vários anos sem ter nenhum surto. “Mas a partir do momento que para o tratamento acaba por ter um episódio da doença”, alerta o médico.
Riscos
Voltando a A Ponte. Na Associação, os pacientes recebem atendimento psicológico, mas nunca na fase de surto. “Pessoas que estão fora de si, não atendemos, até porque não teríamos condições para o fazer aqui”, explica a psicóloga Marcília Araújo.
Sempre que haja necessidade, são encaminhados para as entidades parceiras de saúde e tratamento, onde recebem o tratamento medicamentoso. A medicação é, pois, feita por um médico, que é também quem faz o diagnóstico.
Dos dois casos novos que receberam no ano passado, apenas a mulher está medicada. O homem não quer aceitar a doença, lamenta a psicóloga.
Mas apesar da importância da medicação e toda a parte médica, é importante também a terapia. “Tem de fazer acompanhamento psicológico”, avalia Marcília Araújo. Isto, para sensibilizar a própria pessoa e a família para a doença e tratamento, bem como para evitar situações extremas como o suicídio.
Embora nem todos os pacientes com transtorno bipolar venham a passar por ideias suicidas, a verdade é que são um grupo de maior risco para o suicídio, como aliás, as pessoas com doenças do foro mental, em geral.
(Des)controlo
Cada vez mais, os pacientes (ou as pessoas próximas) procuram ajuda médica e psicológica.
Entretanto, a nível médico, essa procura ocorre mais na fase maníaca, considera Aristides da Luz,
Na fase depressiva, a doença acaba por ser mais “invisível”. A pessoa isola-se, não “incomoda” e muitas vezes nem há noção de que padece do transtorno.
“Depois vem para o outro polo. Dizem a pessoa tem uma dupla personalidade”, o que não é verdade.
Na fase dessa “alegria patológica, em algum momento vai ser necessário procurar ajuda médica”. O estado assim o obriga: A pessoa não dorme, deambula.
Regista-se também uma aceleração do desejo sexual e perda do sentido de pudor… “Há a questão da promiscuidade sexual, sobretudo nas mulheres”, o que as pode deixar sujeitas a aproveitamento sexual por pessoas com menos escrúpulos, alerta.
Nessa fase da mania, o paciente também pode cometer delitos. “Têm de responder perante as instâncias judiciais, então são obrigados a procurar ajuda médica”, conta o psiquiatra.
Assim, os riscos porque passa quem tem transtorno bipolar não se prendem apenas com a fase depressiva e o risco de suicídio.
Durante a fase maníaca (o transtorno, aliás, também é conhecido por doença maníaco-depressiva), há probabilidades de o paciente se magoar a si ou aos outros.
Imagine-se um paciente que não sabe conduzir, mas na fase maníaca, tem acesso a um carro. Pode dirigir e colocar em perigo a sua vida e vida dos outros porque “não tem senso crítico dos seus actos”, exemplifica Aristides da Luz.
Os outros
Na verdade, há diferentes tipos de TB, que envolvem, todos eles, mudanças no humor e energia, mas com diferentes níveis de severidade e duração. E, como referido, há momentos em que as pessoas não conseguem, pois, controlar-se e acabam por constituir um risco para si, mas também para quem as rodeia.
Episódios violentos podem ocorrer, e “a família começa a sentir o medo de se relacionar com aquela pessoa”, conta a psicóloga Marcília Araújo.
A família sofre. Mas, a pessoa também.
Marcília Araújo lembra o caso de uma paciente que, em fases da mania, já agrediu a avó. Doutra vez agrediu a filha. Depois, quando o surto passa, vem o sentimento de culpa e o arrependimento. “Não sou eu”, disse a senhora, face ao que tinha feito. Uma expressão que Marcília Araújo já ouviu de vários pacientes, quando confrontados com acções e sentimentos que tiveram durante os episódios maníacos, mas também nos depressivos.
“’Não sou eu’. Não aceitam, dizem ‘não sou eu’”, conta. “Rejeitam completamente o comportamento”.
“Nós todos estamos sujeitos a ter uma doença” e quando isso acontece, o paciente “tem de se ajudar a si mesmo para ajudar a família”, observa.
O apoio da família e todo o ambiente ao redor do doente também é fundamental.
Na verdade, sob o ponto de vista médico, e como observa por seu turno o psiquiatra Aristides da Luz, os casos mais difíceis têm muitas vezes mais a ver com todo o envolvente da pessoa do que com o quadro clínico feito.
“Se no meio onde a pessoa com transtorno bipolar vive há muitas limitações sociais e emocionais, tudo isso vai condicionar a pessoa, a procura do tratamento, a adesão terapêutica e, por último, a eficácia do tratamento”.
Tratamento
Não se conhece a causa efectiva do Transtorno Bipolar, mas sabe-se que é genético e que envolve “os neurotransmissores cerebrais, sobretudo os transmissores de humor”, particularmente a serotonina, mas também a noradrenalina, dopamina, etc.
A medicação é feita com vista a equilibrar os polos, como numa balança, a procurar que “não esteja em baixo, nem lá em cima. Ele deve estar no meio”, explica o médico.
Outro aspecto importante é que o paciente mantenha uma vida saudável e não consuma substâncias psicoactivas. “Não que [estas] provoquem a doença, mas precipitam os quadros, sobretudo os quadros maníacos”. O mesmo acontece, por exemplo, perante situações de stress.
Entretanto, não há, em Cabo Verde, uma política específica dirigida a pessoas com Transtorno Bipolar. A políticas enquadram-se na política da Saúde Mental, que vai no sentido, como refere Aristides da Luz, coordenador do programa de Saúde Mental, de que o acesso aos “cuidados de saúde que deve ser feito prioritariamente a nível dos cuidados primários”. Isto é: o mais próximo possível das suas comunidades, nos centros de saúde. No que toca aos medicamentos, as medidas visam “prestar um maior cuidado às pessoas dentro das limitações existentes”.
Tenta-se, assim, garantir o acesso aos cuidados generalizado a todos, dentro do possível. E isso, diz o médico, é conseguido.
“Não existe nenhum centro de saúde aqui em São Vicente que não tenha cuidados de saúde mental”. O mesmo acontece em muitas outras ilhas, embora não em todas, aponta.
O país conta neste momento com 10 psiquiatras (cerca 2,5 por 100 mil habitantes), um número abaixo do recomendado pela Organização Mundial de Saúde – o que aliás acontece a nível mundial. Embora muito acima da média de África onde não chega a 1/100 mil, está abaixo, por exemplo, de Espanha (8 a 9 por 100mil/hab.) e muito abaixo dos países nórdicos (18 por 100 mil).
Salienta-se, neste ponto, a importância de, mais do que aumentar o número de especialistas, apostar numa melhor organização, envolvendo outros profissionais no processo.
“Os médicos generalistas participam na prestação dos cuidados de saúde mental a quem precisa, e é isso que tem sustentado até hoje o sistema nacional de saúde”, observa Aristides da Luz. E “não podemos criar o mito de achar que a pessoa para ter acesso a cuidados de saúde mental tem de ir para uma consulta especializada de psiquiatria”. Os médicos de clínica geral podem fazer o acompanhamento diário, tal como fazem com doentes crónicos como os diabéticos ou hipertensos, e a consulta é feita pelo especialista quando há necessidade. Por exemplo, não se justifica ter um psiquiatra na Brava, quando existe um no Fogo que se pode deslocar quando há necessidade (ou receber o paciente), defende. E o mesmo se aplica a outras ilhas.
O acesso, garante, é, pois, sempre garantido e “em fase aguda pode ser necessário o internamento hospitalar e é feito, sem nenhum impedimento”.
Os psicólogos, por seu turno, são também outros profissionais fundamentais neste acesso de cuidados na saúde mental.
Vida e estigma
Há pacientes com transtorno bipolar que relatam ter sentido os sintomas da doença desde a infância. Contudo, os episódios agravaram-se mais tarde, na fase da adolescência. E é geralmente quando já são adultos que buscam o tratamento.
Os pacientes que são atendidos n’A Ponte, regra geral, conseguem ter uma vida aparentemente “normal”. Porém, nas consultas muitas vezes queixam-se dessa dificuldade, destacadamente na fase depressiva.
A sociedade, por desconhecimento ou falta de sensibilidade, muitas vezes também não ajuda. Por vezes, nem sequer reconhece a doença como tal e não mostra a mesma aceitação e empatia que tem quando se trata de uma doença “física”. Muita gente diz, face a uma pessoa com o transtorno, “que não está doente, que está a fazer-se de doida [da pa dodu]”, lamenta a psicóloga Marcília Araújo.
Por ser cunhada de louca, pouca gente assume publicamente a doença.
Há um estigma que embora tenha vindo a diminuir, ainda persiste. Para Aristides da Luz, a melhor forma de o combater é “assumirmos que há muito estigma institucionalizado”, que é mais preocupante do que eventuais zombarias, e de que se fala muito menos.
“Por exemplo, na questão do acesso ao emprego e do acesso a outros aspectos da nossa vida, muitas vezes as pessoas são condicionadas por terem uma doença mental”, observa. “O único motivo por que as pessoas portadoras de doença mental crónica não trabalham, não fazem parte da vida social e económica deste país é simplesmente pelo estigma, não pela sua capacidade”.
E também não pela imprevisibilidade das acções. “Que acções? Isso é um mito que criamos de que as pessoas portadoras de doença mental crónica são agressivas, podem ferir, podem matar. Isso não corresponde à verdade, é uma autêntica ilusão”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.