Em conversa com os moradores do perímetro florestal da Serra Malagueta, o Expresso das Ilhas pôde presenciar o clima de desolação que se fazia sentir no decorrer do incêndio de grandes proporções, que teve início no sábado, 1 de Abril, na localidade da Serra Malagueta, por volta das 10 horas, na zona de “Xinta Garça”, Ribeira Cuba.
Medo, revolta e muita tristeza foram as palavras escolhidas pelos moradores para definirem o estado de espírito diante do infausto acontecimento.
“O incêndio começou no sábado de manhã. Estávamos crentes que o fogo iria ser logo controlado. Mais para o final da tarde, quando nos apercebemos, o fogo já estava a chegar perto de nós. Estávamos atentos à zona de cultivo, onde estavam os nossos animais e tivemos que subir à presa para combater com o fogo que se aproximava das moradias. Só não aconteceu o pior porque os moradores se uniram no combate. Não restou nem um fio de palha para os animais, nós não dormimos a noite toda, combatendo o incêndio. Se tivéssemos um helicóptero, à semelhança dos outros países, para ajudar no combate às chamas, acredito que o incêndio teria sido controlado mais cedo, evitado mais tristeza”, testemunhou Grinalda, vizinha do Parque Natural da Serra Malagueta.
O Incêndio
O incêndio de grandes proporções, que teve início na manhã de sábado, 1 de Abril, na zona florestal de Serra Malagueta, interior da ilha de Santiago, provocou a morte de animais e danos em habitações e deixou os moradores deste local em estado de choque.
De acordo com um comunicado do Ministério da Agricultura e Ambiente (MAA), o suposto autor do incêndio é um indivíduo do sexo masculino da comunidade da Serra Malagueta. O presumível autor, que se encontra detido pelas autoridades policiais, foi descrito pelos moradores como uma pessoa com problemas mentais, que teria posto fogo para afugentar algumas abelhas.
Segundo o MAA, o fogo que começou na zona de “Xinta Garça”, alastrou-se na direcção Nordeste (direcção Tarrafal-Santa Catarina) para as zonas de Curral de Asno, Locotano, Pedra Cumprida, Curral Velho, Monte Vermelho, Ponta Txada, Figueira-das-Naus e Fundura. As áreas afectada são zonas de muita altitude e de difícil acesso, com vegetação arbustiva e herbácea (pastos), carapate e algumas acácias holocerica de pequeno porte. O fogo que se alastrou alcançou alguns currais localizados no Fundo de Curral Velho provocando a perda de animais e pastos.
Osvaldo, um morador do centro da Figueira-das-Naus, que faz parte de um grupo de dez famílias que tiveram que ser evacuadas, mostrou-se bastante abalado. Abatido e com a voz ainda rouca por conta da fumaça inalada, o homem testemunhou que teve que enfrentar as chamas para socorrer os familiares, que foram levados para o hospital.
“As chamas chegaram bem perto das casas, tive que socorrer a minha sogra, o meu sogro e algumas das minhas sobrinhas que, inclusive, possuem problemas respiratórios, que se agravaram devido à fumaça. Foram evacuados para o hospital de Assomada e, graças a Deus, já tiveram alta. Um familiar continua ainda internado por conta de outros problemas de saúde que, diante da situação, o pânico e a pressão psicológica, acabaram por agravar. O fogo foi controlado e só tivemos a perda do pasto. O sentimento que fica é de muita tristeza, isso só confirma o quanto estamos vulneráveis a situações do tipo. Acredito que se o país estivesse mais bem preparado, as consequências seriam menos impactantes”.
Um outro morador da Serra Malagueta, Ismael, conta que no momento que começou o incêndio não se encontrava em casa. Saiu para fazer uma visita na zona vizinha, Figueira-das-Naus, e no regresso avistou uma fumaça densa.
“Do alto da colina avistei uma grande fumaça, logo corri e junto com os vizinhos começamos a encher baldes de água e a tentar apagar o fogo que já estava perto de casa. Tinha pasto arrumado aqui, quando apercebemos o fogo já se tinha alastrado nele. Os bombeiros não chegaram de imediato, o fogo que se aproximou da casa foi contido pelos moradores com baldes de água e terra. O fogo começou no fundo da colina, onde os pastores tinham os seus animais, tiveram que correr para os libertar, já o pasto foi todo consumido. Vivenciamos momentos assustadores, com medo de perder a nossa casa, nossos animais e até mesmo a nossa vida”.
O Serviço Nacional de Proteção Civil (SNPCB) confirmou, no dia 2 de Abril, que em consequência do incêndio foram evacuadas, por precaução, dez famílias e houve seis feridos, sendo um monitor ambiental em estado grave. Mais tarde, por volta das 23:00 do mesmo dia, foi confirmada a morte no Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), na Praia, do monitor ambiental, Gabriel Estevão Tavares, de 35 anos de idade, que sofreu um acidente na sequência do incêndio. Gabriel Tavares, também conhecido por Gaby, era funcionário do Ministério da Agricultura e Ambiente, exercendo funções no Parque Natural de Serra Malagueta desde 2007.
Estiveram envolvidos no combate ao incêndio operacionais de todas as corporações de Bombeiros de Santiago, bem como de militares das Forças Armadas. As equipas contaram com o apoio de dois veículos pesados de combate a incêndios, quatro veículos ligeiros e três ambulâncias.
Na conferência de imprensa de balanço e ponto de situação, realizada em Serra Malagueta, o comandante regional do Serviço Nacional de Proteção Civil e Bombeiros (SNPCB) de Santiago Norte, Amaro Varela, avançou que é estimado que o incêndio tenha afectado 200 hectares de terreno. Em termos de danos, ainda não se fez um inventário, devido aos estragos no perímetro do parque natural e áreas circundantes.
“Tivemos um total de 289 operacionais, com bombeiros de toda a ilha de Santiago, com excepção da Câmara de Ribeira Grande de Santiago. Tivemos o apoio dos agentes da Protecção Civil, Forças Armadas, Polícia Nacional, Cruz Vermelha”, disse.
O combate ao incêndio envolveu 50 veículos, sendo dois pesados de combate ao incêndio, quatro ligeiros e restantes veículos de apoio e durou 56 horas. A extinção do fogo foi declarada por volta das 19h00 do dia 3 de Abril. O incêndio, segundo o comandante, afectou Serra da Malagueta, Fundura, Figueira das Naus e Achada Longueira.
Onze famílias, sendo dez da localidade da Figueira das Naus e uma de Serra Malagueta foram evacuadas por questão de precaução já que o fogo poderia chegar às suas habitações.
“A área estimada é de 200 hectares de terreno. Esta é uma estimativa porque estivemos a fazer, junto com o Ministério da Agricultura e Ambiente e o Instituto Nacional de Gestão de Território, um sobrevoo com drone para fazer uma sondagem da área. Em termos de danos ainda não fizemos um inventário, porque temos danos no próprio perímetro do Parque Natural e áreas circundantes. Nos próximos dias vamos fazer a inventariação dos danos que houve e todos os detalhes em termos das habitações que foram destruídas, animais que ficaram perdidos e população afectada”, assegurou.
Há meios, há operacionais e agentes do SNPCB que estão engajados e a trabalhar de forma muito rápida, conforme sublinhou. Segundo Amaro Varela, o combate foi feito através de cortes para fazer a descontinuidade do material combustível e abafamento, uma vez que problemas de acessibilidade não permitiam o combate através de água para o arrefecimento dos terrenos e dos combustíveis no local. O comandante reconhece que é preciso trabalhar na prevenção, na limpeza das florestas, na capacitação das comunidades para que tenham o conhecimento e técnica para fazerem um combate inicial ao fogo até à chegada dos operacionais e meios. Também é preciso reforçar a formação dos próprios operacionais no combate a incêndios rurais e florestais e outros incidentes.
“É necessário reforçar as formações, é necessário mobilizar mais recursos para que tenhamos equipas cada vez mais preparadas e mais meios para dar resposta”, finalizou.
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A tragédia da Serra Malagueta
O incêndio de grandes proporções no perímetro florestal da Serra da Malagueta deixou toda a Nação cabo-verdiana em estado de alerta. Infelizmente a devastação feita pelas chamas não foi a única tragédia enfrentada em Cabo Verde nos primeiros dias do mês de Abril. No combate ao incêndio que deflagrou na Serra da Malagueta estava destacado um grupo de militares que prestava apoio.
Por volta das 20 horas, do dia 2 de Abril, foi dado o alerta sobre um acidente com um camião das Forças Armadas, na estrada de Guindão, no concelho do Tarrafal. O veículo, que tinha como ocupantes 31 militares das Forças Armadas, dirigia-se para prestar apoio no combate ao incêndio, que ainda apresentava uma frente activa na área de Monte Semedo alastrando-se a caminho de Ribeira da Prata. No trajecto, o veículo capotou e foram constatados vários feridos e mortes no local do acidente. De imediato as vítimas foram levadas para atendimento médico na Delegacia de Saúde do Tarrafal e em Assomada.
O Gabinete do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas confirmou a morte de oito militares e vinte e três feridos, sendo que desses, oito encontram-se internados no Hospital Agostinho Neto e os restantes já tiveram alta hospitalar.
As vítimas mortais foram identificados como sendo, o Sargento Arlindo Lopes de Brito, do Tarrafal de Santiago, Primeiro-Cabo Ailton Semedo Freire, de Santa Cruz, mas que residia na Cidade da Praia, Segundo-Cabo Hernany José Ramos do Rosário, de São Vicente, mas que residia em Chã de Matias, na ilha do Sal, Segundo-Cabo Igor Júnior Delgado Costa, de São Vicente, Segundo-Cabo Moisés da Cruz Santos, de Santo Antão, Soldado Cleiton John Gomes Rocha, de São Vicente, Soldado Gilmário Ramos Melo, de Santo Antão, e Soldado Humberto Santos Rocha, de São Vicente.
Cabo Verde vive um momento de profunda consternação pelas perdas humanas. O Governo decretou dois dias de luto nacional (03 e 04 de Abril) em memória dos oitos militares e do técnico ambiental falecidos e garantiu o apoio aos familiares dos militares e do técnico ambiental, Gabriel Estevão Tavares, que faleceu numa queda na sequência do incêndio.
*Com Sheila Ribeiro
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1114 de 5 de Abril de 2023.