Comemorou-se esta quarta-feira (3) o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em 2023 sob o lema “Moldando um futuro de direitos: liberdade de expressão como motor para todos os outros direitos humanos.”
O cenário não é animador, com detenções arbitrárias de jornalistas, assassinatos e controlo de narrativas a marcarem a agenda internacional. Estão a dar-se passos atrás, entende a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês).
“Do Peru ao Irão, do Sudão ao Afeganistão, os governos estão a tomar medidas drásticas para impedir a liberdade de expressão e o direito do público a saber, incluindo restrições à Internet, espancamentos, prisão e intimidação de jornalistas, controlo do conteúdo dos meios de comunicação social e introdução de leis drásticas sobre os meios de comunicação social e outras leis para restringir o livre fluxo de informação”, declara a presidente da IFJ, Dominique Pradalie.
Desde Janeiro, e de acordo com números da Repórteres Sem Fronteiras, seis jornalistas e um outro profissional ao serviço de um órgão de comunicação social foram mortos em exercício de funções. Neste momento, há 548 jornalistas e outros 22 colaboradores de media atrás das grades.
Para o professor e investigador de comunicação digital, Miguel Crespo, os últimos anos foram definidores.
“A pandemia veio aumentar o interesse e as audiências do jornalismo: por haver uma crise, uma preocupação, uma sede e fome de informação factual e actualizada. Mas, em contraponto, as receitas não subiram, ou até desceram, devido à paralisação da economia”, realça.
“A pandemia veio também abrir portas, de forma encapotada ou explícita, a limitações, restrições ou imposições de autoridades oficiais em muitos países, que limitaram a liberdade de imprensa, a bem de um ‘bem maior’ para as sociedades”, completa.
Mais recentemente, identifica o também jornalista, a invasão russa à Ucrânia reforçou as tentações de controlo do jornalismo, desta feita em benefício do alinhamento político e geoestratégico dos estados.
“Chegou-se mesmo ao extremo hipócrita de estados e associações de estados que erguem a bandeira da liberdade, da pluralidade e do jornalismo livre, decidirem proibir o acesso dos seus cidadãos a informação produzida por meios de outros estados ou blocos, sob o argumento de riscos desinformativos, numa lógica de ‘exame prévio’”, comenta.
Análise semelhante é feita pelo presidente do MISA Angola (Media Institute of Southern Africa), André Mussamo, para quem a cobertura da guerra Rússia-Ucrânia é apenas “a ponta do iceberg” de tudo o que corre mal no campo da liberdade de imprensa.
“A principal função do jornalismo é informar com verdade. Todavia, parece que esta lógica está a ser profundamente alterada, subalternizando os fundamentos seculares da profissão em detrimento de interesses de outras forças, com destaque para o poder político. Nunca ficou tão patente o parcialismo e o alinhamento com as partes, numa demonstração clara de tomada de posição em contramão de um dos pilares em que assenta o jornalismo: independência”, avalia.
“Estamos numa turbulência que não parece ter fim à vista, o que é muito mau e sombrio. Precisamos encontrar novos caminhos, novas motivações. É preciso repensar a forma de fazer jornalismo, porque felizmente ele é necessário, diria mesmo, é fulcral para a democracia”, reforça.
A desinformação e o discurso de ódio, que encontram no online o campo ideal para a sua disseminação rápida e, aparentemente, imparável, não escapam a esta equação de crise.
Numa mensagem em vídeo a propósito do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, falou precisamente dos perigos destes fenómenos, que disse serem formas de colocar em causa a verdade, por confundirem os limites entre factos e mitos, ciência e conspiração.
Ao jornalismo, o que se pede é que se mantenha credível e confiável. Nem sempre é assim, lamenta Miguel Crespo.
“Enquanto o jornalismo não se blindar à desinformação, que em 99% dos casos é detectável numa questão de segundos, só está a perder credibilidade e a deixar de ser um farol das democracias. É preciso mudar processos, ser mais cuidadoso, mas, acima de tudo, definir estratégias mais focadas na qualidade e menos na quantidade. Diferenciar o jornalismo da poluição das redes sociais”, apela.
Direitos Humanos
Na sua mensagem, o líder da ONU defende que “toda a nossa liberdade depende da liberdade de imprensa”. A relevância do jornalismo reside na oportunidade que oferece para se descodificar o mundo em toda a sua complexidade (e apesar de todas as suas contradições).
Miguel Crespo lembra que “a protecção do jornalismo é tão importante como garantir eleições livres, instituições sólidas de protecção social, saúde, segurança ou justiça”.
Porque não há princípios democráticos irreversíveis, e perante as dificuldades de sustentabilidade enfrentadas pela indústria jornalística, o especialista considera ser este o tempo de se repensar, inclusive, o modelo institucional e jurídico associado aos órgãos de comunicação social.
“O jornalismo já não é sempre um bom negócio, nem é simples do ponto de vista de modelo de negócio. Daí que estamos no momento de repensar o enquadramento do jornalismo, deixando de o ver apenas como um produto comercial e enquadrá-lo como um serviço de utilidade pública. Os Estados deverão encontrar formas de sustentar o valor social do jornalismo, como fazem para tantas actividades culturais ou sociais, mas sem fazerem avaliações prévias ou subjectivas ou cair em tentações de controle”, acredita.
O presidente do MISA Angola, André Mussamo, aspira a uma comunicação social “livre”, “independente”, apoiada por mecanismos de financiamento público e baseada na ética.
“Infelizmente, os jornalistas continuam a trabalhar em condições difíceis e são permanentemente vítimas de pressões financeiras e políticas cada vez mais fortes, de vigilância, de actos de violência e de penas de prisão arbitrárias”, contrapõe.
IA, o próximo passo
A relação entre vida quotidiana e tecnologia é uma daquelas inevitabilidades que poucos se atrevem a colocar em causa e que altera os processos produtivos em todas as áreas de actividade. O jornalismo não é excepção e a inteligência artificial (IA) parece ser a próxima fronteira.
Numa consulta ao Chat GPT, é o próximo chatbot a explicar que a IA “pode ser usada para automatizar tarefas repetitivas, como a verificação de factos, a análise de dados e a produção de notícias em grande escala”. Diz ainda que “a tecnologia pode ajudar a detectar e corrigir erros e desinformação, tornando o jornalismo mais confiável”.
O académico cabo-verdiano, investigador nas áreas de Comunicação e Jornalismo, Silvino Lopes Évora, reconhece que a autonomização da produção jornalística tem sido encarada com “algum desdém” por parte daqueles que ‘habitam’ as redacções. “Porém, são conhecidas as implicações da automação em qualquer sector das unidades produtivas. Isto não é uma questão exclusiva dos nossos dias”, nota.
“A IA lança um conjunto de desafios ao jornalismo, sobretudo com o processo de automação da produção das notícias. Há uma coisa importante que ela traz, que é a segmentação do público, segundo a sua experiência de consumo, abordando os consumidores de produtos mediáticos no ciberespaço em forma de nichos de produtos simbólicos”, assinala.
Miguel Crespo releva justamente o papel que a IA poderá ter nos processos de disseminação de conteúdo jornalístico. “Os consumidores poderão usar a IA para procurar o melhor jornalismo sobre um determinado assunto e aceder assim à melhor informação”, sublinha.
No essencial, faz questão de destacar Silvino Lopes Évora, não é a tecnologia que altera a missão central do jornalismo, que continua a ser a “realização do direito à informação e a afirmação do direito à liberdade de imprensa”.
Nós por cá
À hora a que fecha esta edição do Expresso das Ilhas, ainda não são conhecidos os resultados de 2023 do Índice de Liberdade de Imprensa, publicação anual da Repórteres Sem Fronteiras, divulgada normalmente a 3 de Maio. Os alertas da organização, esses, têm-se repetido e assinalam que, apesar da boa prestação global de Cabo Verde, há questões por resolver - as dificuldades financeiras dos órgãos privados, a manutenção de uma cultura de sigilo, a autocensura e algum grau de dependência dos órgãos públicos face ao poder político.
A Associação Sindical dos Jornalista de Cabo Verde acrescenta à lista a ameaça representada pela precariedade laboral.
“A precariedade laboral é sem dúvida um problema sério para a liberdade de imprensa em Cabo Verde e pode, do nosso ponto de vista, representar uma das maiores ameaças à independência e à capacidade dos jornalistas realizarem o seu trabalho de forma livre e eficaz. A falta de estabilidade financeira e de condições de trabalho adequadas pode levar à dependência dos meios de comunicação social em relação a fontes de financiamento externas, como empresas privadas ou governamentais, e isso pode resultar em conflitos de interesses e em maior vulnerabilidade à pressão política e económica”, nota o líder sindical, Geremias Furtado.
O professor da Universidade de Cabo Verde, Silvino Lopes Évora, evidencia que a informação é um bem público a proteger.
“O Estado tem o dever de formar os cidadãos. Esta formação se dá através da educação formal, dos instrumentos da educação social, das formações profissionais, mas, também, dos conteúdos mediáticos. Por regra, as políticas públicas devem atender a um conjunto de interesses da sociedade, sobretudo os legítimos e necessários. Os interesses públicos, em todos os países de configuração moderna, obrigam a que o Estado faça subsistir os setores deficitários, mas fundamentais para a vida das pessoas”, salienta.
O declínio sentido na liberdade de imprensa a nível mundial não é um caso isolado. No seu mais recente relatório sobre a Liberdade no Mundo, a Freedom House verificou que esta segue em queda há dezassete anos consecutivos. Os ataques aos media tornaram-se mais frequentes em 2022, com registo de violações à imprensa livre em pelo menos 157 países.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.