A autonomia alimentar do país pode aumentar “substancialmente”, defende Ana Touza que garante igualmente que há “boas perspectivas” de o valor mobilizado poder ser ainda maior.
O valor mobilizado para o novo programa de cooperação entre a FAO e Cabo Verde é o dobro do programa anterior. Por que razão?
O valor mobilizado com a colaboração da FAO (que tem boas perspectivas de ser aumentado durante a execução do programa de cooperação) é, em grande parte, resultante de fundos climáticos e ambientais multilaterais, bilaterais e verticais. Por que razão? Porque os principais desafios e as prioridades identificadas pelo governo passam por desenvolver e modernizar o país com aumento de rendimentos e da segurança alimentar, mas garantindo uma gestão sustentável do capital natural. Estes desafios, que são abordados nos 4 pilares do PEDSII – Soberania; Sociedade; Economia; e Ambiente – estão enquadrados nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas e na Agenda 2030, e estão plenamente alinhados com as prioridades estratégicas da FAO para Melhor Produção, Melhor Nutrição, Melhor Ambiente e Melhor Vida. Acresce que os compromissos internacionais de mitigação e adaptação às alterações climáticas, conservação da biodiversidade e sustentabilidade a que Cabo Verde aderiu, por um lado balizam as opções a tomar e, por outro, dão garantias de futuro ao povo cabo-verdiano e ao mundo, viabilizando financiamentos internacionais específicos. De notar que a colaboração técnica da FAO com as instituições nacionais facilita o acesso a estes fundos. Não podemos esquecer que Cabo Verde é um SIDS com relevante fragilidade ambiental em todo o seu território. É assolado pela seca e os seus habitantes estão particularmente expostos às consequências das alterações climáticas. Esse facto é muito relevante, especialmente tendo em conta que aproximadamente 80% da população reside em zonas costeiras sujeitas à subida do nível do mar e 36% vive em zonas rurais directamente dependentes da agricultura de sequeiro, sendo que, presentemente, o país importa cerca de 80% dos alimentos que consome. Apesar deste contexto, o potencial para a agricultura e pescas continua em grande parte inexplorado. Há que desenvolver e transformar os sectores da agricultura e das pescas, rentabilizando-os de forma sustentável, com base em conhecimento, dados e evidências, técnicas e tecnologias inovadoras e limpas, com soluções baseadas na natureza. Por estes motivos, a FAO Cabo Verde concentrou-se em planear, financiar e promover actividades dirigidas à melhoria de capacidades das pessoas e das instituições para a gestão dos recursos naturais renováveis; ao aumento da produção sustentável de alimentos; à organização e implementação de cadeias de valor inovadoras, inclusivas e sensíveis ao género, com foco na adaptação às alterações climáticas, agroecologia e manutenção ou melhoria da capacidade produtiva dos ecossistemas naturais. Este esforço permitiu aumentar substancialmente o fluxo financeiro dirigido à sustentabilidade, fluxo este que, se bem gerido e orientado, poderá aumentar continuadamente, incluindo pagamentos por serviços ambientais a nível internacional.
“Queremos atingir um futuro onde não há insegurança alimentar” em que “todo o cabo-verdiano tem comida”, palavras suas durante a assinatura do acordo. A que distância está esse futuro?
Bom, esta é uma resposta difícil porque depende em grande parte da capacidade transformadora do país. Depende das pessoas, das instituições, das empresas, dos investimentos mobilizados e da capacidade para os gerir, e para gerir o bem comum. Não posso, no entanto, deixar de referir que uma das principais condicionantes para que este futuro desejado seja rapidamente atingido é o do Capital Humano. Para que as transformações desejadas ocorram, mais do que tecnologia e equipamentos, precisamos em primeiro lugar de pessoas capacitadas e com vontade de levar estas transformações adiante. Para isso, na minha opinião, a principal prioridade é a de atrair e formar uma camada jovem capaz de perceber a importância do conhecimento profundo sobre o funcionamento dos ecossistemas, os desafios do país, o enquadramento de Cabo Verde nas prioridades internacionais e as oportunidades abertas nesta era da inteligência artificial, digitalização, tecnologia e caminho para a sustentabilidade. É fundamental promover o aumento de capacidades para decisões assentes em dados e evidência, melhorar a conectividade, a interoperabilidade e o acesso à informação, incluindo a geográfica e ambiental, permitindo e fomentando as melhores decisões e investimentos.
Afirmou igualmente que a comida deve ser produzida localmente. Cabo Verde tem condições para ser auto-sustentável a nível alimentar?
Na minha opinião, Cabo Verde não tem condições para ser 100% auto-sustentável a nível alimentar, mas tem condições para aumentar substancialmente a sua autonomia, apesar de, por agora, ter apenas 10% de terras aráveis e condições edafoclimáticas muito desafiantes. Isto porque mesmo o conceito de “terra arável” pode ser alterado com base em insumos, tecnologia e conhecimento. Veja-se o exemplo do negócio de micro-greens ou da hidroponia. Para além do aumento e diversificação de alimentos produzidos localmente, com melhor e mais eficiente gestão da água, há uma grande margem para a instalação de cadeias de valor acrescentado que podem almejar mercados internos e externos, compensando as importações daqueles produtos que não podem ser localmente produzidos em quantidade adequada (como é o caso dos cereais). Há sempre o exemplo da produção de frutas e de hortícolas, para os quais há evidente aptidão em várias zonas do país. Por exemplo, a manga, com possibilidades de transformação para o mercado internacional. Para o fazer, ainda mais do que aumentar e diversificar a capacidade produtiva, é necessário organizar os mercados e tornar eficientes e consistentes as cadeias de recolha e distribuição, e a capacidade transformadora de forma previsível, em quantidade e em qualidade.
Capital humano e governança, desenvolvimento e transformação económica e promoção de um ambiente saudável são as áreas consideradas prioritárias para este programa. Como se poderão alcançar estas metas?
No que concerne à Governança a FAO tem vindo a colaborar na revisão de quadros jurídicos e de planeamento ambiental, de protecção social e de género, principalmente nos sectores da economia azul, da economia verde e da segurança alimentar e nutricional. Estas actividades contribuem para sistematizar e regulamentar os sectores de forma adaptada aos compromissos regionais e internacionais, não deixando ninguém para trás. Em relação ao Capital Humano, para além de acções de capacitação específicas, há várias ideias a serem trabalhadas no sentido de se aumentar a oferta/frequência de cursos médios e universitários com apoio financeiro directo aos alunos para as áreas do conhecimento mais relevantes. A FAO tem em estudo neste momento a constituição de uma Cátedra na Uni-CV, em colaboração com outras universidades estrangeiras, para que esta sirva de pivot a uma dramática modernização de conteúdos e formatos de ensino nas áreas relacionadas com a gestão de recursos naturais renováveis, incluindo agronegócios. Com esta iniciativa, a FAO vai contribuir para se concretizarem os objevtivos relativos à mobilização de jovens para sectores produtivos como a agropecuária, as pescas e indústrias associadas, o turismo verde e azul, entre outros, contribuindo directamente para a transformação da agricultura e a economia azul. Já relativamente à governança e contributos da FAO orientados para a capacitação institucional, há as formações técnicas e facilitação, por exemplo, para gestão de intervenções ou desenvolvimento de instrumentos de compilação, estandardização, e análise de dados com disponibilização de informação em redes nacionais e internacionais. No programa de cooperação o maior investimento é, no entanto, dirigido para a Transformação Económica, com forte aposta na organização e integração de conhecimento, inovação e tecnologia nas cadeias de valor nos sectores agropecuário e das pescas. Nesta parte do programa temos também previstas actividades de organização de acesso aos mercados locais para melhorias na comercialização de produtos. Haverá para isso um apoio previsto às micro e médias empresas, com facilitação de acesso a serviços financeiros e de protecção de risco em condições adequadas. Além disso, prevê-se um esforço para melhoria do acesso das populações a uma alimentação adequada e nutritiva, incluindo acções de sensibilização. Neste contexto, é priorizada a capacitação institucional para a abordagem de uma-só-saúde (One Health), em que se reforça a necessidade de transformação das cadeias agroalimentares para o bem-estar de pessoas, animais e ambiente. Não podemos esquecer o grande risco que a gestão inadequada destes sistemas tem vindo a colocar com repetidos problemas de zoonoses (entre outros). Já para o Ambiente Saudável, a FAO tem previstas actividades de restauração de ecossistemas terrestres e marinhos com gestão da biodiversidade, redução da degradação e aumento da neutralidade carbónica. De notar que as intervenções no terreno são sempre enquadradas numa gestão integrada das bacias hidrográficas com enfoque no aumento da capacidade produtiva e humidade no solo, reabastecimento dos lençóis freáticos, e capacidade de mobilização de água com minimização de perdas. São ainda desenvolvidas técnicas inovadoras e adaptadas às alterações climáticas na agricultura, florestas, pescas, pecuária e gestão da agro-biodiversidade com aumento da resiliência social e ambiental.
A sustentabilidade da agricultura é também outro objectivo. Para se alcançar é preciso uma mudança radical na forma como se pratica a agricultura em Cabo Verde. Quais são as grandes alterações necessárias e como se pode alcançar este objectivo?
Para se atingir a sustentabilidade na agricultura é necessário não esgotar nem depauperar a capacidade produtiva dos solos (a base de nutrientes e capacidade de retenção de água – estrutura do solo). Pelo contrário, é necessário aumentar essa capacidade ao mesmo tempo que se vai utilizando os recursos para uma produção continuada que se procura aumentar. É por isto que a FAO adopta tanto quanto possível uma aproximação agroecológica e uma gestão integrada das bacias hidrográficas assente em evidências. Isso não quer dizer que não haja lugar para a produção intensiva (por ex., em estufas). É claro que há. No entanto, é de primordial importância conhecer a aptidão presente e futura de cada hectare de terreno (com base em projecções climáticas) para se poderem preconizar as melhores utilizações e as possíveis melhorias com garantias de sustentabilidade. A aproximação proposta nas actividades da FAO implica não só conhecimento, estudo e disponibilidade de informação credível, como a construção de uma visão partilhada e multidisciplinar. Para isso, a FAO prevê a implementação de muitas actividades de cariz participativo e acções de capacitação, tanto para as instituições como para a sociedade civil. Assim, torna-se crucial a existência de bases de dados interconectadas, incluindo internacionais (por ex., com imagens de satélite) que permitam a melhor gestão do território. Isto porque, para além do padrão de chuvas, a capacidade produtiva dos solos e a disponibilidade de água dependem directamente da composição, dimensões e arranjo e geometria das várias ocupações do solo. Assim, a FAO aposta fortemente no desenvolvimento de sistemas de informação inovadores que permitam uma adequada gestão de informação sobre o coberto e uso do solo e sobre as infra-estruturas de retenção, mobilização e distribuição de água nas bacias hidrográficas, incluindo com recurso à monitorização remota.
Que projectos é que a FAO desenvolveu ao longo do seu mandato enquanto representante da organização em Cabo Verde e que pensa que devem ter continuação?
Por exemplo, a FAO desenvolveu recentemente o projeto REFLOR-CV, relançou as bases para o desenvolvimento do sector florestal. Neste projecto, produziu-se uma nova lei de bases para o sector e plantaram-se mais de 1.100 ha com espécies endémicas, florestais e fruteiras produzidas pelas comunidades locais em Santiago e no Fogo, contribuindo com cerca de 11% do objectivo inscrito na Contribuição Nacionalmente Determinada para 2030. No entanto, este projecto precisa de ser renovado e continuado para se estender a outras zonas do país e para apoiar o adequado desenvolvimento dos sistemas de informação, seguimento e planeamento do MAA. Mais recentemente, o projecto financiado pelo GEF (Global Environment Facility) intitulado “Rumo à Neutralidade da Degradação das Terras para Melhor Equidade, Sustentabilidade e Resiliência”, mais conhecido como projeto LDN, inclui algumas das aprendizagens de projectos anteriores e aumenta o grau de inovação na restauração de ecossistemas em bacias hidrográficas de Santo Antão e Santiago. Além disso, promove a integração de neutralidade de degradação das terras nos processos de planeamento desenvolvendo capacidades; promove a organização de cadeias agroalimentares locais; e contribui com reforço institucional para monitorização e reporte. Projectos de economia azul, como a Iniciativa Pesca Costeira, que se centra no desenvolvimento de cadeias de valor da pesca, incluindo as comunidades piscatórias na co-gestão dos recursos. Este projecto está também a apoiar o governo na formulação da estratégia de género para o sector das pescas, podemos também mencionar o problema da cadeia de valor do atum e o projecto de formação em empreendedorismo na economia azul, apoiado pela Cooperação Espanhola. Outro projecto fundamental para o sector da economia azul é o projecto Hand in Hand, que visa contribuir para a melhoria da governação, da cadeia de valor da pesca visando os mercados nacionais e a criação de empregos azuis dignos, tudo em benefício prioritário das mulheres e dos jovens sem qualificações. Projectos de emergência destinados a reforçar as capacidades de produção das associações de produtores e das famílias mais vulneráveis afectadas pelos efeitos da COVID-19, da seca e do conflito russo-ucraniano, atingindo cerca de 1.400 famílias em 4 municípios com fundos da Bélgica, FAO e da Coreia do Sul. Outros projectos da FAO têm apoiado o governo na luta contra pragas como a lagarta do cartucho-do-milho precisam ter continuidade e também os projectos de mobilização de água para a agricultura.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1138 de 20 de Setembro de 2023.