Quais são os maiores desafios do ensino superior em Cabo Verde e como os superar? Este foi o mote para uma conversa com académicos e representantes do ensino superior privado. Joanita Rodrigues, reitora da Universidade Jean Piaget, destaca a dificuldade dos estudantes em pagar propinas, levando ao absentismo e abandono de cursos. Ao mesmo tempo, a emigração de estudantes para o exterior é uma preocupação, e um fenómeno complexo com impacto a vários níveis no país. Como soluções para uma maior sustentabilidade no ensino superior nacional a docente sublinha a necessidade de maior atribuição de bolsas de estudo bem como de proporcionar um acesso a financiamento mais equitativo a todas as instituições de ensino superior.
Quais são, para si, os grandes desafios das Universidades em Cabo Verde, em particular das privadas e na Universidade Jean Piaget?
No presente, desde há já alguns anos, e depois da pandemia de forma muito mais agudizada, o maior problema tem sido os estudantes conseguirem custear os seus estudos. Temos esse grande problema. Os estudantes querem estudar, matriculam-se nas universidades, particularmente, aqui na Universidade de Jean Piaget de Cabo Verde, mas depois, a meio percurso, há uma taxa significativa de absentismo, por conta de não conseguirem pagar as propinas do ano lectivo, alegando que as famílias não têm possibilidade, pese embora a nossa Universidade tenha um gabinete que trata desses assuntos. Temos intermediários, os estudantes vêm negociar, de certa forma, uma forma de pagamento que muitas vezes vai para além do período em que o aluno deveria estar na Universidade, mas este aqui tem sido um dos grandes desafios. Essa capacidade de manter a continuidade para sustentar o curso é uma dificuldade e temos sempre um nível de absentismo elevado que, às vezes, acaba por culminar no abandono de alguns alunos.
Os alunos não têm conseguido bolsas e acesso ao financiamento, designadamente a empréstimos?
O Governo, através da FICASE, tem uma política de atribuição de bolsas. Porém, as bolsas são, de certa forma, insuficientes. Por exemplo, na nossa Universidade, num universo de mil alunos, temos cento e tal, 200 bolsas, o que é muito irrisório para aquilo que é o desafio do ensino superior em Cabo Vered. Quanto aos empréstimos, sei que havia uma política bancária de concepção de empréstimos, mas para tal há que haver alguma capacidade das famílias, que vão custeando os juros até que o estudante se torne um profissional e comece a trabalhar para pagar a dívida ao banco. Nós temos feito muita coisa, temos recorrido a muitas instituições, mas no pós-pandemia, todas as instituições estão com dificuldades. Isso tem prejudicado essa capacidade de financiar estudos.
Tem piorado desde a pandemia, mas antes não havia esse problema?
Já havia, e piorou com a pandemia. E durante na pandemia, um fenómeno que se deve ter presente, havia que seguir as directrizes do Ministério de Saúde, com as quais nós concordamos plenamente, porque estávamos numa situação específica, uma pandemia, e era preciso que todos estivéssemos envolvidos para combater em certa medida esse flagelo. Havia uma imposição, por exemplo, de termos turmas com um número reduzido de estudantes. Uma turma, antes com 40 alunos, durante a pandemia, depois de dois anos consecutivos, passou a ter somente metade dessa carga. Essa metade significa o quê para as universidades? A duplicação do custo daquele curso. Passamos a ter metade dos alunos, mas o aluno não passa a ter metade da aula. Tem a aula completa, e em vez de pagarmos a um professor, pagamos a dois professores por cada unidade curricular.
Há uma diminuição da procura pelo ensino superior, em geral, ou pelo ensino superior em Cabo Verde, com os estudantes a preferirem prosseguir a formação no estrangeiro?
Temos de ver todo o contexto em que estamos a navegar no ensino superior. Temos o surgimento de muitas instituições de ensino superior. Neste momento, temos mais de 10 instituições de ensino superior no país e há uma tendência de levar o ensino superior, como se fosse o ensino secundário ou o ensino básico, para todas as ilhas, para todos os concelhos. É um aspecto bastante complexo, porque há que haver massa crítica para devolver aquilo que se chama ensino superior. Internamente temos, pois, este problema, mas não é o mais grave. O maior problema está nas ofertas formativas para o exterior. Se repararmos, neste ano lectivo, 23/24, só para Portugal, houve oferta de duas mil vagas para os nossos estudantes. Não são para grandes universidades, mas institutos politécnicos do interior de Portugal, onde há uma diminuição da população. Está na página da embaixada. São dois mil estudantes, que poderão sair – digo poderão porque ainda são somente vagas.
Quando assim é, é muito mais difícil termos estudantes nas instituições de ensino aqui em Cabo Verde, porque sabemos, todos estão conscientes disso, que a maioria desses jovens que se candidatam para o ensino superior fora de Cabo Verde, principalmente onde eles têm possibilidade de trabalhar, não vão estudar. É mais uma forma de emigração. Candidatam-se, e pensam: ‘vou, se não for para estudar, ao menos estou na emigração’. Então, este é o aspecto que penso que é mais preocupante. E as universidades no país vão tendo essa redução cada vez mais significativa do número de estudantes. Só para ter uma ideia, este ano aqui na Universidade Jean Piaget, só temos um pouco mais de uma centena de estudantes novos e dentro desses, vão ficar à espera de ter uma bolsa. E se não tiverem bolsas de estudos, torna-se complicado. Podemos caminhar para, de certa forma, o fim das instituições de ensino superior em Cabo Verde e, por outro lado, ter dado um apoio para que as instituições de ensino superior estrangeiras possam continuar.
E como é que acha que este problema poderia ser resolvido? Que tipo de políticas públicas deveriam ser implementadas?
Eu penso da seguinte forma, mas é a minha opinião, até porque não tenho uma visão política para o país: resolver-se-ia, em grande medida, com a atribuição de bolsas a todos os estudantes que ficam no país. Se um estudante sabe que ficando aqui, vai conseguir uma bolsa para continuar os seus estudos [ficaria]. Mas também outras políticas haveriam de estar no mesmo sistema de desenvolvimento. E, depois, que os estudantes pudessem perspectivar na profissão que escolheram, um trabalho digno. Eu penso que seria por aqui. Num primeiro momento, como disse, numa visão, bastante despida da política, seria a atribuição de bolsas, mas para os estudantes que ficam no país. Eles teriam essa garantia, porque esse problema depois vai reflectir-se a vários níveis. Hoje nós estamos a vê-lo somente com a saída dos jovens que vão estudar lá fora, sabemos que a maioria não regressará a Cabo Verde e numa perspectiva do ensino superior, mas é uma questão que vai muito além disso. É um problema bastante complexo e penso que já merece algum debate muito sério e muito profundo sobre o futuro do ensino superior em Cabo Verde.
E em relação à investigação, que é vista como uma parte frágil do ensino superior. Qual é a sua visão sobre o estado da investigação em Cabo Verde?
A parente pobre. Há algumas iniciativas que têm sido feitas, há muitas ideias que têm germinado, muitas ideias com encontros, muitos debates sobre a questão da investigação, mas não vemos isso é traduzido [na prática]. Que percentagem, por exemplo, do Orçamento do Estado vai para o ensino superior? E dentro daquilo alocado ao ensino superior, qual é a percentagem que vai para a investigação? Nós dificilmente podemos falar de uma investigação aturada, madura, aqui em Cabo Verde. Não vemos uma política de investigação, porque investigação exige investimento - mas a investigação é que pode conduzir ao desenvolvimento de qualquer país no mundo. Então, não temos essa política de investigação, não há grandes projectos, concursos, onde as Universidades possam participar para poder continuar a investigação. As universidades têm feito alguma investigação, mas muito por sua conta. Na nossa Universidade, temos muito recorrido a parcerias externas é por aí que vamos fazendo investigação. Temos, na nossa universidade, um grupo de investigação que tem sido conhecido internacionalmente, que é o grupo de investigação em doenças tropicais... Enfim, o que conseguimos é sempre em parceria com outras instituições internacionais, com o Brasil, por exemplo, que recebe os nossos investigadores, para poderem aperfeiçoar e melhorar o nível académico no que toca à investigação. É dessa forma que nós temos conseguido fazer alguma coisa, com muito no esforço da universidade e dos seus investigadores.
Mas, em suma: não há ainda uma política forte para podermos falar de uma investigação em Cabo Verde.
Falou-se da criação da Fundação da Ciência e Tecnologia, mas não há dinheiro…
É isso que temos. Há ideias, como eu disse, boas ideias, porém, elas não vão avante porque não há um financiamento, por exemplo, para essa fundação, onde todos poderiam participar. Não há, e não havendo, ficamos sempre nessa pendência.
Em relação ao corpo docente, há alguns anos havia dificuldades em encontrar professores doutores, como é que está agora?
[É um problema que] ainda continua, porque há determinadas especialidades onde é difícil encontrarmos doutores na área. As áreas mais técnicas, por exemplo, e temos sempre essa dificuldade. A legislação sobre o ensino superior e a ARES, a Agência Reguladora, fazem a exigência, mas não temos muito por onde dar essas respostas. A área, por exemplo, de Direito: quantos doutores nós temos em Cabo Verde em Direito? Pode contar pelos dedos de uma mão, menos do que isto. Ou a área de Fisioterapia? - estou a dar alguns exemplos com os cursos que nós temos cá - Em Fisioterapia, não temos. Então, temos estado a recorrer aos professores de outros países, através dos protocolos que temos assinados com outras instituições de ensino superior do Brasil, Portugal… que é para nos apoiar com os professores que têm, mas mesmo nesses países não abundam professores.
Eles dão as aulas à distância ou vêm a Cabo Verde?
As duas coisas. Temos professores que convidamos, que vêm para cá, fazem uma temporada em Cabo Verde e temos também o ensino à distância, porque hoje com as tecnologias essa barreira espacial não se deve colocar. Quebraram-se essas fronteiras Temos, então, esses professores que podem colaborar connosco no ensino à distância, através do e-learn.
Outra questão é a implementação de sistemas internos de garantia de qualidade. Como é que tem funcionado este sistema de garantia de qualidade na Piaget? Está já instalado já?
Nós, se calhar, fomos a primeira universidade a criar o gabinete de avaliação de qualidade. Fui eu quem começou por coordenar este gabinete, tendo, para tal, frequentado algumas formações em Portugal, e também no Togo, onde trabalhámos com as normas para implementar. Continuamos a ter o nosso GAPE, que é o gabinete de avaliação de qualidade da universidade, e estamos a dar passos, com margem ainda. Está em processo de construção.
E quais são as questões a que vocês estão a dar mais atenção?
Temos o nosso observatório dos nossos cursos, de qualidade do ensino. Revemos os cursos para adaptá-los aos contextos e, por exemplo, neste momento fizemos a revisão dos nossos cursos de modo a que todos estejam alinhados com os objectivos do desenvolvimento sustentável. Também adaptámos muito os nossos cursos, de certa forma, às normas de qualidade para o ensino. Mas, como disse, a qualidade tem um custo e é um custo bastante elevado. É certo que entendemos que o maior custo é não termos qualidade, mas implementar um sistema de qualidade tem um custo bastante elevado...
Para finalizar e sintetizando, quais as medidas importantes para garantir a sustentabilidade das universidades? Reter os estudantes e atribuir mais bolsas?
Sim, por aí começa. Teríamos que ter estudantes com bolsa, porque os estudantes, as famílias, às vezes, não conseguem suportar as propinas. Neste momento, os estudantes que temos têm uma dívida com a universidade acima dos 50 mil contos, e é complicado vir a recuperá-los. Então, deveria haver uma política de atribuição de bolsa de estudos para podermos garantir o funcionamento. E só para se ter uma ideia [do funcionamento das bolsas], neste momento, nem sequer se lançou ainda o concurso para as bolsas de estudos para este ano lectivo 23/ 24. O ano lectivo já começou, e não há ainda o concurso. Depois do concurso, há todo o processo de selecção, e depois todo o processo à espera do Orçamento do Estado. Só mais tarde é que vão começar a assumir essas propinas dos estudantes, com as bolsas. E tem sido assim. No ano passado, só começaram a fazer essas transferências a partir do mês de Março, até lá a Universidade suporta tudo. E caso o estudante não seja seleccionado e não haja condições na família, eles acabam por desistir. Ma então, a atribuição da bolsa aos estudantes que estão aqui em Cabo Verde - por exemplo, este ano na Universidade Jean Piaget são cento e poucos estudantes - já daria para irmos fazendo mais um esforço para aguentar. Outra questão, para o próprio ensino superior, seria criar condições para que todas as universidades públicas e privadas pudessem ter acesso às fontes de financiamento. Porque às vezes os financiamentos vêm somente para o Estado e os privados que ficam de fora. Então, para não ficarmos de fora, que se criasse uma política de modo a que todos tivessem acesso às fontes de financiamento. Há financiamento externo, mas não vem para as universidades privadas. Ora, o sistema de ensino superior não é somente universidade pública, é Sistema de ensino superior. Está na altura de uma conversa muito franca e aberta sobre o ensino superior aqui em Cabo Verde.