“Uma boa gestão da migração requer uma boa governação global”

PorSara Almeida,5 mai 2024 8:36

A migração é um fenómeno tão antigo como a própria humanidade. “Sempre existiu, sempre existirá” e todas as sociedades que a acolheram beneficiaram dela. Sarah Boukri, especialista em migrações e cientista política, desmonta várias ideias à volta da migração, inclusive a narrativa vigente de uma actual “crise migratória”, e defende a necessidade de uma boa gestão global e cooperação internacional para lidar com o dossier. A especialista critica ainda a excessiva aposta em políticas securitárias e na externalização de fronteiras, e, portanto, de responsabilidades, que tem vindo a ser prática nomeadamente nos países europeus argumentando a sua ineficiência. Sempre colocando a tónica no migrante como ser humano, defende uma abordagem que não apenas proteja os direitos dos migrantes, mas também reconheça suas contribuições para as sociedades de acolhimento. E lembra “quem quiser migrar, migrará”, independentemente dos perigos.

Fala-se da necessidade da boa governança na questão da migração. Como é que se interligam estes conceitos?

A migração e a boa governação estão ligadas porque para uma boa gestão do dossier da migração é absolutamente essencial uma boa governança. Boa governação a nível nacional, quando se trata de gerir a questão a nível nacional, mas, como sabemos, a migração envolve quase todos os países, quer se trate de um país de partida, de um país de trânsito ou de um país de acolhimento. Portanto, uma boa gestão da migração requer, igualmente, uma boa governação global. Precisamos de uma governação global da migração. Já há algo em curso, nesse sentido, o Pacto Global para a Migração para uma migração ordenada e regular [aprovado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de Dezembro de 2018], também chamado Pacto de Marraquexe. Pela primeira vez, os países concordaram que era necessário um quadro internacional, um quadro de governação global para a migração e para responder a todos os desafios colocados pela migração. Este pacto apresentou uma série de objectivos muito interessantes, mas podemos criticar o facto de não impor obrigações. Ou seja, é um pacto que depende da boa vontade dos países para a sua aplicação ou não. É um pacto que funciona, e o objectivo do programa que eu dirigi para as Nações Unidas era justamente ajudar os países a implementar as metas do Pacto. Cada uma das comissões das Nações Unidas levou a cabo programas para ajudar os países a implementar os objectivos do pacto.

Entretanto, vemos milhares de migrantes que arriscam a sua vida no Mediterrâneo, partindo da África para a Europa. Mas, sei que defende que falar de crise migratória é um erro. Porquê?

Sem dúvida. A expressão crise migratória surgiu quando houve o conflito na Síria e vimos o elevado número de refugiados sírios a chegar à Europa, porque estavam a fugir dos massacres e da guerra. Falou-se de uma crise migratória e desde então tem-se falado de crise migratória. Porque é que sou contra a utilização da palavra crise? Se consultarmos a definição de crise no dicionário, é um fenómeno que tem um princípio e um fim. Dizemos “tive uma crise”: uma crise de nervos ou uma crise de estômago... Tem um princípio e um fim. Ora, a migração sempre existiu e sempre existirá. Então, é verdade que a certa altura houve uma crise, porque houve um aumento súbito e significativo do fluxo migratório devido, como disse, ao problema na Síria, mas, desde então, as taxas de migração voltaram a níveis muito normais, por vezes até mais baixos do que antes da crise síria. Por isso, é completamente errado falar de uma crise. Depois, há a questão da presença e poder da informação, da desinformação e da crítica da informação. Compreendo como se sentem os cidadãos comuns quando vêem estas imagens terríveis de migrantes que chegam, geralmente de países africanos, mas é falso, porque quando olhamos os números, 80% da migração africana passa-se no interior de África, entre os próprios países africanos. Temos 20% de migrantes [para fora do continente] e 70% destes 20% são da migração regular. Pessoas que emigram por várias razões, seja por trabalho ou por reagrupamento familiar, sem problema. Portanto, há apenas uma proporção muito pequena da migração irregular, que está espalhada por todo o mundo. Não apenas na Europa.

Como analisa a forma como os países europeus estão a lidar com a migração?

Infelizmente, hoje vemos que a maioria dos países está a adoptar uma política securitária. Política de segurança significa reforçar o controlo das fronteiras e, por vezes, ultrapassar, ir além dessas fronteiras. Há até tentativas de externalizar a gestão da migração. Países como Marrocos, por exemplo, estão a ser convidados a impedir a chegada de migrantes para que depois não possam transitar para a Europa. A política de segurança é actualmente vista como a política mais adequada, mas podemos ver muito claramente que não impede ninguém de emigrar. Não é realmente um travão à migração. O verdadeiro problema actual é duplo. O primeiro, é que as vias para a migração regular são muito complicadas. Quando se tem o passaporte certo, temos praticamente o mundo inteiro aberto para nós; quando não se tem o passaporte certo, não é fácil ir para outro país. Mas, de um lado temos seres humanos e, do outro lado, seres humanos, também. É tudo a mesma coisa, mas há essa problemática. O segundo problema que se coloca é que, como já disse, pensamos que a política de segurança é a solução. Porém, estas pessoas estão a arriscar a sua vida e, portanto, não são as ameaças, são as vítimas. Tratamo-las como se fossem elas, esses migrantes, as ameaças. A verdadeira ameaça são as redes de tráfico de migrantes. A política de segurança tem de ser muito mais direccionada contra as redes de contrabando de migrantes, porque são estas redes que se aproveitam da vulnerabilidade dos migrantes, do seu desejo de ir para outros lugares, para lhes tirar dinheiro. E há muito tráfico por detrás do tráfico de migrantes: há muito tráfico de seres humanos, de prostituição, de droga, etc. Todo este tráfico, que gera milhares de milhões de euros, é um problema real. Não estamos a falar de pequenas somas, estamos a falar de milhares de milhões em lucros anuais. Por isso, o primeiro erro que se comete enquanto políticos é adoptar uma política de segurança contra os migrantes.

Em Cabo Verde, temos um acordo com a União Europeia, que entrou em vigor em 2022, para que todos os migrantes ilegais que vão para a Europa a partir de Cabo Verde, desde que a sua presença prévia no território de Cabo Verde seja comprovada, possam ser reenviados para cá…

Foi por isso que lhe falei há pouco sobre a externalização da gestão das fronteiras. Actualmente, a Europa já não considera as suas fronteiras geográficas como elas são. Hoje, procura todos os países fronteiriços para que impeçam a chegada de migrantes às fronteiras. É o caso de Marrocos, por exemplo, que é um país de trânsito. Primeiro era um país de partida, depois tornou-se um país de trânsito. E Marrocos é também um país de acolhimento, acolhe muitos, muitos migrantes. Portanto, esta externalização das fronteiras… voltamos ao tema da governação mundial. Ninguém é polícia de ninguém. Ninguém é guarda de fronteira de ninguém. Externalizar as fronteiras desta forma significa, de certa forma, não assumir as responsabilidades.

Sei que também argumenta que os países de acolhimento beneficiam mais da migração do que os emissores. Pode explicar esta constatação?

Isso não é uma novidade. Cada vez que se diz uma coisa dessas, fica-se com a impressão de que há algo de novo, mas as sociedades são construídas com base na migração. A Humanidade foi construída através da migração. As pessoas dizem que somos todos migrantes e de certa forma, sim, somos todos migrantes. Se olharmos para o nosso avô, o nosso bisavô, etc., todos eles foram definitivamente migrantes e foi assim que as sociedades humanas foram construídas. Posso até dizer que todas as sociedades, e voltamos à História, todas as civilizações que foram abertas, são civilizações que floresceram, prosperaram e duraram. Todas as civilizações que, a dada altura, decidiram fechar-se, desapareceram. Olhe-se o exemplo actual do Japão. De acordo com estudos demográficos, o Japão é um país que vai desaparecer, porque é um país que está fechado à imigração. As suas políticas são muito fechadas, por isso, demograficamente, não é um país viável.

Mas há receios em relação à imigração. A imigração pode, em alguma situação, tornar-se um perigo para uma sociedade de acolhimento?

Isso baseia-se em percepções que não têm suporte nas estatísticas. Quando se diz, por exemplo, que a taxa de criminalidade é mais elevada entre os imigrantes, falem-me de números. Isso não foi provado em nenhum país. Nenhum país. Não é verdade, é realmente uma questão de percepção, da imagem que passamos da imigração. Mas a migração quando é bem gerida, quando há boa governação, sempre foi benéfica. Por exemplo, as populações europeias são populações muito envelhecidas. Há uma verdadeira falta de mão de obra jovem nestes países, em vários sectores, por isso, estes países precisam de imigração, precisam da contribuição económica da migração. Então, por que precisamos da contribuição económica da imigração e, por outro lado, comunicamos de forma muito negativa sobre a imigração?

Um argumento usado é a eventual desvirtualização das matrizes culturais, por exemplo, com base na religião…

Isso é racismo.

Ataques extremistas, em alguns países, contribuíram para esse medo na população.

Essa é outra questão. Mais uma vez, voltamos à informação. Quando um migrante faz algo de mau, falamos sempre da sua origem. Os extremistas que podem ter cometido actos terroristas em França são franceses, nasceram em França, estudaram em escolas francesas, alguns deles nunca visitaram o seu país de origem. Talvez o pai tenha nascido em França, se calhar, é da segunda ou terceira geração, e vamos falar da sua origem. Por outro lado, quando vemos a selecção francesa que ganhou o Campeonato do Mundo, a maioria dos jogadores, para não dizer todos, são de origem imigrante, nunca mencionamos a sua origem. São franceses. Portanto, vê-se claramente a manipulação.

Aparentemente, por todo o mundo, a segunda geração torna-se mais ligada aos países de origens, que muitas vezes, como disse, nem conhecem, e mais radicalizada. É um problema de integração?

É um problema que não tem nada a ver com o país de origem, mas com as políticas de acolhimento do país de acolhimento. É verdade que podemos ver – e estamos a generalizar, porque nem todos – quando, por exemplo, tomamos o caso de Marrocos, há muitos, muitos, jovens franceses, ou italianos, ou espanhóis, etc., que são de origem marroquina e sentem a necessidade de regressar ao seu país de origem. Porque a nova geração já não aceita o que a primeira geração aceita. Não podemos esquecer que a primeira geração partiu para trabalhar. Eram trabalhadores com um certo nível intelectual, mas [na Europa] não precisávamos que trabalhassem em escritórios, ou que vestissem um fato e fossem trabalhar para as empresas, ou tivessem responsabilidades políticas ou algo do género. Precisávamos de operários nas fábricas para trabalhar. Por isso, viemos, trouxemos pessoas que foram trabalhar para as fábricas, e que deram um grande contributo, que ajudaram a construir esses países. Portanto, para eles, partiram numa missão. Viviam em casas pequenas, e nos seus países de origem construíram as suas casas pouco a pouco pois, no que lhes diz respeito, vão regressar. Havia políticas de reagrupamento familiar, as mulheres partiam, as crianças iam juntar-se a eles. E foi assim que acabámos por ter a 2ª, 3ª, 4ª gerações. Só que o rosto dos migrantes de hoje mudou. Já não são os seus pais ou os seus avós. Andaram na universidade. Têm mestrados, têm doutoramentos, trabalham em grandes empresas, ocupam cargos importantes. Têm responsabilidades políticas. Encontramo-los como membros de partidos políticos, deputados, alguns ministros. Portanto, esta imagem que a sociedade lhes dá já não é aceitável para eles, já não a querem. E quando há um ataque, há uma resposta, qualquer psicólogo o diz. Então, quando há um ataque, para onde é que se volta? Para as origens. Volta aos seus pontos de referência. Mas estas pessoas não se radicalizam. A radicalização é outra coisa e não tem nada a ver com religião. Há franceses [de ascendência francesa], que escolheram ser extremistas e não nasceram nessa religião, radicalizaram-se. A radicalização é, pois, um processo diferente. Não podemos colocar a radicalização e a imigração no mesmo sítio, são duas coisas diferentes.

Mas falando de países pequenos e vulneráveis. Embora Cabo Verde não seja tradicionalmente um país de acolhimento (o saldo de emigração e imigração é muito negativo), alega-se que, pelas suas fragilidades, não tem capacidade de acolher muitos migrantes. Acha que há países que deviam ser mais cautelosos, ou isso não faz sentido?

É uma questão muito delicada. Trata-se de questões ligadas à soberania nacional de cada país e à sua própria forma de lidar com a questão. Querer fazê-lo e ter a capacidade de o fazer são duas coisas diferentes. Eu prefiro um país que diga: estou aberto, mas preciso de estruturas adaptadas para poder acolher os migrantes quando vêm, para os integrar, oferecer-lhes trabalho, alojamento e ainda permitir-lhes viver as suas vidas em paz no país. Não é esse o problema. Aquilo que defendo que se deve combater é esta visão que temos da migração. É isso que está errado. É a gestão baseada unicamente na defesa securitária no dossier da migração e tentar apresentar a migração como algo negativo. Não vemos todos os contributos positivos da migração. Como disse há pouco, estas pessoas receberam formação nos seus próprios países. E vêm para os outros países para lhes dar o benefício das suas competências. Os seus países não beneficiam. É por isso que digo que é uma perda para o país de origem.


Aqui temos o problema de fuga de cérebros…

É um verdadeiro desastre para os países africanos. Engenheiros, médicos, etc., que estão a partir. É uma perda para Cabo Verde. Cabo Verde pagou a universidade, pagou a todas estas pessoas para estudarem, as infra-estruturas, tudo isso, e depois aquele jovem sai. Quem é que beneficia? O país de acolhimento que não pagou um cêntimo para a formação deste jovem. Ele chega, está pronto, vai começar a trabalhar. E há uma outra questão. Diz-se que quando as pessoas chegam estão a competir com os locais, as pessoas do país de acolhimento. “Ficam com os nossos empregos, aproveitam-se dos benefícios sociais...”. Isso é totalmente falso. Se imaginarmos um país como um queijo, dividido em fatias, cada um leva a sua parte. Mas, quando chegam os imigrantes, estes não partilham a mesma fatia do queijo, porque o tamanho do queijo aumenta. Por isso, no final, todos têm a mesma parte. Por exemplo, a assistência social é suportada pelos impostos pagos pelos cidadãos. Estes imigrantes vêm, trabalham, pagam impostos, logo, há mais dinheiro. No fim de contas, ninguém está a tirar a parte de ninguém. Isso não é verdade.

Para finalizar. A resposta do reforço securitário não é a solução. Quais seriam as soluções?

Os objectivos do Pacto [de Maraquexe] são muito bons. Falo das estatísticas que temos, do reconhecimento das competências dos migrantes, da integração dos migrantes, de proteger todas as populações vulneráveis, sejam elas crianças ou mulheres, etc. Há vários objectivos que são muito, muito bons. Muitas pessoas, quando ouvem falar do pacto, dizem que é para limitar a migração. Não é. É um pacto que não foi concebido para encorajar ou desencorajar a migração. É um pacto que foi feito para proteger os migrantes, um pacto para uma migração segura, ordenada e regular. Trata-se de tornar a migração possível, porque sabemos muito bem que a migração não pode ser travada, é um fenómeno que sempre existiu. E todos precisam de trabalhar em conjunto – os países de partida, os países de trânsito ou os países de acolhimento – para proteger os migrantes. Para que esta aventura da migração não seja uma aventura mortal. Para que seja o mais segura possível para o migrante. Porque quem quer migrar, migrará. Podem erguer-se todas as barreiras que quiserem, mas eles migram. Não se pode impedir alguém que está desesperado, que antes de sair de casa quando se despede, não diz “até a vista” à família, diz “adeus”, porque já se mentalizou de que talvez nunca mais volte, talvez morra. Como é que se pára alguém que tem isso em mente? Não é possível.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1170 de 1 de Maio de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,5 mai 2024 8:36

Editado porDulcina Mendes  em  6 mai 2024 14:18

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