Murais sobre o ambiente colocaram localidade à boca do mar, na boca do mundo

PorSara Almeida,11 mai 2024 8:41

Há cerca de três anos, murais sobre o ambiente espalhados por Porto Mosquito ajudaram a dar visibilidade a esta comunidade piscatória, suas gentes e seus problemas. Esta iniciativa da ONG Lantuna, tornou a localidade mais atractiva, não apenas para os turistas, mas também para os próprios habitantes, que se orgulham das transformações nas suas casas e ruas. Porém, o objectivo principal, de divulgar os recursos naturais do Parque Natural da Baía do Inferno e do Monte Angra e sensibilizar para a sua conservação, foi apenas parcialmente conseguido. Persistem desafios na mudança dos comportamentos de pescadores, especialmente no que diz respeito à captura de espécies protegidas. “É preciso mais sensibilização, mais investimento”, diz a ONG. Mas uma coisa é certa, mesmo não mudando comportamentos enraizados, os murais servem como um lembrete constante do potencial da comunidade e da importância de proteger o seu ambiente único.

Mais de uma dezena de barcos repousam na baía de Porto Mosquito. São apenas uma pequena parte das embarcações de boca aberta, dos 79 armadores desta localidade piscatória onde o mar é lazer, trabalho e sustento da maior parte dos cerca de mil habitantes.

Assim foi no passado, e hoje, apesar de todas a dureza dessa vida, assim se mantém para os que não “embarcaram” [emigraram] para outras paragens, nacionais ou estrangeiras.

A localidade continua a ser um ponto central na distribuição de peixe para a Praia e até para a Assomada. “Vendemos para todo o lado”, diz Zuleica Pereira da Veiga, de 32 anos, peixeira, mulher de pescador e filha de gente do mar, a quem desde cedo seguiu os passos.

Actualmente, as coisas não estão muito bem.

“Estes dias, o peixe está mariado, tem pouco...”, lamenta. Mas a lide continua.

Do peixe que o seu marido apanha no bote próprio, uma parte é vendida a peixeiras de outras localidades que aqui vêm abastecer-se, e ela própria, por vezes, desloca-se aos centros urbanos para a venda a grosso ou a atacado.

Fazia falta uma máquina de gelo para melhor conservação do peixe. “Esse é o apoio de que mais precisávamos”, aponta. Na localidade já houve uma, mas estragou-se há tanto tempo que Zuleica nem se lembra em que ano (“talvez há 20 anos”, arrisca). Nunca mais ninguém a compôs.

“O nosso peixe é muito fresco, se tivéssemos gelo, seria ainda melhor do que agora”, diz.

Nesta localidade, há também muitas mulheres que se dedicam à recolha de areia, principalmente “na ribeira”. O negócio já não tem a dimensão de outrora, mas há sempre uma ou outra família que está a construir casa e que compra essa areia. Dizem continuar nesta actividade, enquanto as costas o permitem, porque não há outra alternativa e é preciso pôr comida na mesa.

Ainda há, pois, muito a fazer no sentido de melhorar a qualidade de vida desta comunidade. Mas, às vezes, pequenas iniciativas podem ter um impacto significativo e efeito multiplicador.

Murais

Em Porto Mosquito, ao longo do tempo, têm sido implementados projectos e iniciativas pontuais, mas poucos realmente mudam a vida dos seus moradores, mesmo quando contribuem para melhorar um pouco a vida na localidade.

Apesar de muitos projectos terem passado quase sem deixar rasto, as paredes das moradias na baía e ruas principais são testemunho de uma iniciativa que vem atraindo visitantes, melhorou a auto-estima da população e colocou a localidade nas “bocas do mundo”.

Na verdade, desde há alguns anos para cá, a aldeia parece ter ganhado uma nova projecção. Fala-se e ouve-se falar de Porto Mosquito, com muito mais frequência e parece haver uma redobrada atenção para com a comunidade.

Catarina Varela Gomes está na janela da casa onde mora e que já era da sua mãe, com uma amiga, Clara Varela. A velha casa, outrora deslavada, é hoje tela de uma pintura, que mostra um peixe de espécie autóctone sob um mar de azul intenso.

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Catarina, de 56 anos, que já apanhou areia, foi peixeira e até já chegou a ser pescadora, viveu toda a vida em Porto Mosquito, e não esconde o orgulho de ver a sua casa, hoje, tão “bonita”. Fica, aliás, muito contente quando quem vem de fora e olha, com gosto, as suas paredes.

A casa foi uma das seleccionadas para acolher um projecto da Lantuna, ONG dedicada à protecção do ambiente e da biodiversidade, bem como à promoção do desenvolvimento sustentável das comunidades.

Para falar deste projecto, que arrancou em Janeiro de 2021, é preciso voltar um pouco atrás, à criação da Lantuna, que comemora o seu décimo aniversário.

Porto Mosquito, como conta a directora executiva da Associação, Ana Veiga, foi, na verdade, a primeira comunidade onde a Lantuna começou a implementar actividades de conservação e sensibilização ambiental.

“Isso, porque nós começamos a trabalhar no que hoje é o Parque Natural da Baía do Inferno e de Monte Angra”, que na altura, não era uma área protegida e era pouco conhecida pelos santiaguenses”.

Ora essa área é muito próxima de Porto Mosquito e os pescadores costumam ir lá pescar e utilizar os seus recursos, pelo que trabalhar junto a esta comunidade se afigurou como um ponto importante do trabalho da ONG.

Foram então feitas várias acções de divulgação dos recursos naturais do parque, das espécies protegidas, bem como acções para sensibilizar os pescadores e a comunidade sobre a conservação das espécies protegidas, lembra a ambientalista.

E, numa dessas acções, com o financiamento do Ministério da Agricultura e Ambiente foi pintado um mural temático, na escola do ensino básico de Porto Mosquito.

“Os pescadores estiveram à volta da escola, discutimos a temática, deram a descrição como é que é feita a pesca do atum, e o artista plástico Hélder Cardoso fez esse mural”, lembra. A população gostou e a obra, pintada em 2018, “teve um impacto bastante positivo na comunidade”.

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Face ao sucesso desta pequena iniciativa, a Lantuna logo pensou fazer algo maior.

Desenhou um projecto e submeteu-o à Embaixada de França. Ora, “um dos requisitos dos projectos financiados pela Embaixada de França é que tem de haver uma ligação com a cultura francesa”, nota Ana Veiga.

Essa ligação, na verdade existia, mas também não era muito conhecida.

Cousteau

Em 1948, o famoso comandante Jacques-Yves Cousteau, oceanógrafo conhecido pelos seus documentários, esteve na Baía do Inferno para testar um equipamento.

O equipamento em questão era Batiscafo, um tipo de veículo subaquático não tripulado para explorar grandes profundidades nos oceanos, projectado por Auguste Piccard, que, aliás, também esteve nesse teste na Baía.

Assim, Cousteau, a quem foram dedicados alguns dos mais de 10 murais, garantiu o financiamento. E mais, a sua passagem pela Baía do Inferno e “eternização” nas casas de Porto Mosquito deu o mote a várias reportagens, nacionais e de órgãos estrangeiros, largamente difundidas.

Porto Mosquito saltava, assim, para a comunicação social e para a “boca do povo”.

A pintura de murais, que além de Cousteau, representam recursos naturais da zona, no entanto, não parou aí. Depois, “houve mais 4 ou 5 que foram também financiados pelo Ministério da Agricultura e Ambiente”.

Somam-se assim quase 20 murais, pintados pelo já referido Hélder Cardoso, por Tutu Sousa, Admirio Inocêncio, Tony Kaya Barbosa e Edson Garcia, todos eles artistas plásticos cabo-verdianos reconhecidos.

As casas

Pouco depois da pintura dos murais começar, em Maio 2021, Edmilson Gomes, Eddy, um jovem da comunidade juntou-se à Lantuna, onde tem vindo a trabalhar como técnico no parque da Baía do Inferno.

Eddy, que seguiu de perto, todo o processo, lembra-se que quem melhor aderiu ao projecto foram as pessoas mais velhas. Os mais jovens “têm planos, dizem que no futuro vão fazer isto ou aquilo, têm projectos para fazer a pintura do jeito que eles gostam. Normalmente são a pessoas mais velhas que aceitam fazer”, conta.

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Mas os mais novos também gostam do novo visual, Ludneia Gonçalves, de 17 anos, lamenta que a casa onde mora com a mãe (o pai está emigrado em Portugal) não tenha sido contemplada.

“Eles pintam as casa que ficam na estrada, porque os turistas vêm mais perto da estrada. A minha casa já fica distante a estrada, já não dá”, conta a jovem.

Turismo sustentável

A vertente turística, embora não seja a mais importante (como à frente veremos) é na realidade, o aspecto muito salientado pelos habitantes.

Agora, dentro de Porto Mosquito, além da paisagem natural, “há algo para os turistas recordarem”, dizem.

Há um lugar mais bonito para fotografarem, ao mesmo tempo que passam a conhecer as espécies que habitam a localidade, e as zonas circundantes.

“Quando os turistas vinham, iam sem nenhuma recordação. Agora, cada turista que vem, tira fotos, pede para tirar fotos… Ainda há pouco vieram uns turistas que estavam aqui a tirar fotos. eu acho que ficou muito interessante”, conta a Ludneia, que já abandonou a escola, e trabalha agora numa loja em Porto Mosquito.

E essa função de atractivo turístico tem funcionado e chamado gente.

Com casa à beira da “estrada” e mural pintado, Carla Semedo, vendedora de verduras, refere que, apesar de ainda não serem muitos, “agora vêm mais turistas”.

Da parte da Lantuna, Ana Veiga também nota um aumento dos turistas, nacionais e estrangeiros. Muitos deles, aproveitam a visita à Cidade Velha, património da Humanidade, que fica a poucos quilómetros, para darem um saltinho a Porto Mosquito e verem os murais, particularmente o de Cousteau, que foi mais mediatizado.

“Criou interesse para que as pessoas pudessem conhecer Porto Mosquito. Porto Mosquito tem sido uma comunidade cada vez mais “na boca do povo”, se posso assim dizer, com tantos projectos que têm sido implementados e divulgação das actividades. E alguns turistas têm visitado a comunidade para ver os murais.”

Porém, salvaguarda, ainda “há uma série de coisas que é necessário fazer para poder impulsionar mais o turismo na comunidade”.

Faltam, por exemplo, infra-estruturas como restaurantes e até casas de banho.

E também Eddy refere essa carência: “Agora os turistas vêm mais e estão mais satisfeitos, mas falta aqui um restaurante e uma pensão, para alojar turistas”, refere.

Enfim, a Lantuna, com os seus murais, fez uma parte, mas obviamente não tudo. “Demos um pontapé de saída. Acho que demos um grande contributo para colocar Porto Mosquito no mapa”, resume Ana Veiga.

Divulgar e conservar

Apesar do impacto turístico ter sido muito referido, este não é o maior objectivo.

Há, na verdade, duas vertentes, principais nestes murais que retratam (além do Cousteau), polvos, peixes, repteis terrestres e marítimos e outros.

O primeiro ponto, como explica Ana Veiga, é essa “divulgação dos recursos naturais” da área.

“Não apenas as espécies endémicas, mas também espécies de valor comercial que têm algum impacto no quotidiano da comunidade”.

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Há dez anos, quando a Lantuna começou o seu trabalho, e como já foi dito, a Baía do Inferno era totalmente desconhecida. Houve um trabalho intenso de divulgação, com fotografias, vídeos e outros suportes, e, paralelamente “foi feita, juntamente com outros parceiros, uma proposta para a atribuição do Estatuto Nacional de Conservação, que foi apresentada ao Ministério do Ambiente em 2020. Em 2021, a proposta foi aprovada em Conselho de Ministros”, conta.

Os murais vêm no mesmo sentido da divulgação levada a cabo. “Divulgar os recursos do parque abraçando a cultura local”, sintetiza.

Graças a todo esse trabalho, também Porto Mosquito, comunidade de que não se ouvia falar muito, passou a ser mais conhecido.

Mas a divulgação não é só para “fora”. O outro grande objectivo apontado é “sensibilizar a população para a conservação das espécies que são endémicas ou que estão em risco de extinção”.

E também Eddy reforça esse intuito: “Temos aqui osgas, lagartixas, ….”, diz, apontando os murais à volta. “Sensibilizamos para as espécies que encontramos no parque e sensibilizamos as pessoas para não as capturarem, não as destruírem, nem aos seus habitats.”

Resistência e Limitações

Os murais deram, pois, o seu contributo para a divulgação da aldeia, em termos turísticos. E em relação a este central objectivo de promover a conservação de recursos naturais?

Ainda hoje vemos muitos pescadores a pescar na Baía do Inferno, inclusive na zona de Fundão. Nunca ouviram dizer que era proibido, contam-nos. E na verdade, clarifica Ana Veiga, não é.

“Não é por ser uma área protegida que é proibido. A área protegida ainda não tem um plano de gestão e é este que dita o zoneamento, ou seja, as áreas que podem ser alvo de pesca e outras áreas que não. O governo não fez isso, e, portanto, os pescadores não estão a infringir”, explica.

A preocupação reside é na captura de espécies protegidas, nomeadamente tartarugas marinhas e algumas espécies de tubarões e raias. Algo que, apesar dos vários trabalhos de sensibilização, ainda requer um maior investimento.

“A mudança de comportamento não é algo fácil. Os pescadores têm uma grande resistência à mudança de comportamento, porque são espécies que passaram a vida toda a capturar e, às vezes, é uma espécie de tradição que vem passando de outras gerações”, observa.

Por exemplo, a carne de tartarugas marinha é bastante apreciada e apesar de toda a sensibilização e, inclusive, criminalização legal, “infelizmente ainda há muita captura”.

De qualquer modo, acredita que os murais tiveram algum impacto, sim. Terão contribuído para a sensibilização da camada mais jovem e visitantes, e, provavelmente, para um maior conhecimento sobre as espécies protegidas, junto aos mais velhos, incluindo os pescadores.

“Mas dizer que os murais os dissuadiram de capturar, não acredito nisso…”, lamenta.

Terá de se continuar a insistir em acções de sensibilização, mas também na fiscalização e medidas coerciva.

“Se não houver punição, há sempre aqueles que são resistentes à mudança e vão continuar a capturar as espécies protegidas”, advoga.

Seja como for a Lantuna continuará a fazer o seu trabalho, sempre envolvendo a comunidade, que Ana Veiga garante ter sempre “voz nas acções desenvolvidas nas próprias comunidades”.

“Sentimos que são como que parte da organização. Embora possa ser eu ou outro colaborador a dar cara em nome da Lantuna, as comunidades fazem parte da Lantuna”, conclui. 

A Lantuna também promoveu pintura de murais e acções de conservação e sensibilização com o mesmo fim em outros locais limítrofes do parque: Porto Rincão – outra localidade piscatória – e Serrana, em Entre Picos de Reda. Há também murais em Ribeira da Prata e em Trás-os-Montes.

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Outros projectos em Porto Mosquito

Junto à população de Porto Mosquito, localidade pobre e vulnerável, há ainda muito a fazer, e nem tudo o que já foi feito perdurou. Há vários outros projectos, de outras entidades, e em diferentes áreas em curso.

Por exemplo, em Abril passado, a localidade acolheu o Festival de Peixe, evento que é o culminar do projecto “Do Mar ao Prato”, promovido pela Associação de Defesa do Ambiente e Desenvolvimento (ADAD), e que formou cerca de 30 pescadores e peixeiras de Porto Mosquito e Cidade Velha. O projecto visou dotar os formandos de conhecimento para uma pesca sustentável e promover uma cadeia de valor no comércio do pescado.

Da parte da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, foi anunciado, também em Abril, que a autarquia pretende requalificar toda a muralha da baía, melhorando assim o potencial turístico da localidade. Ao mesmo tempo, a edilidade está a trabalhar com a população para aquisição de materiais para conservas, evitando o desperdício, bem como na atribuição de mais arcas e malas térmicas para as peixeiras.

Recentemente, a 7 de Maio, o Ministério do Mar anunciou a entrega de 43 embarcações de pesca artesanal fibradas - processo de reabilitação que confere maior durabilidade às mesmas e maior segurança aos homens do mar. Um trabalho orçado em 5.160.000$00, financiado integralmente pelo Ministério do Mar, através do Fundo Autónomo das Pescas.

Reportagem realizada no âmbito do programa Terra África, da CFI – Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1171 de 8 de Maio de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,11 mai 2024 8:41

Editado porClaudia Sofia Mota  em  22 nov 2024 23:26

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