De acordo com os princípios gerais de direito vigentes na altura, as reuniões constitutiva e ordinária da Assembleia Nacional deveriam ter decorrido da seguinte maneira: a reunião constitutiva da Assembleia Nacional, após a verificação de poderes dos deputados, deveria ter a seguinte Ordem do Dia: a) Eleição do Presidente da Assembleia Nacional; b) Aprovação do Regimento da Assembleia Nacional; e c) Aprovação do Texto da Proclamação da Independência.
Depois de eleito o Presidente da Assembleia Nacional, a respectiva Resolução seria enviada para publicação no segundo Suplemento ao Boletim Oficial nº 26, de 4 de Julho, que seria a última publicação oficial da Administração Colonial em Cabo Verde.
Proclamada a Independência, a Assembleia Nacional reunir-se-ia, por direito próprio, na sua primeira sessão legislativa histórica, com a seguinte Ordem do Dia: a) Aprovação da Lei da Organização Politica do Estado; b) Eleição do Presidente da República; c) Eleição do Primeiro-ministro; e d) Aprovação da Lei que atribui a Amílcar Cabral o titulo de Fundador da Nacionalidade.
Aprovada a Lei da Organização Politica do Estado seria enviada para a publicação no primeiro Boletim Oficial da República. Publicada a Lei, seria eleito o Presidente da República pela Assembleia, que passaria então a designar-se Assembleia Nacional Popular, sendo enviada para publicação a respectiva Resolução.
Empossado o Presidente da República, este proporia à Assembleia Nacional Popular a eleição do Primeiro-ministro, sendo remetida para a publicação a competente Resolução que, uma vez feita, seria conferida posse ao eleito.
A Assembleia Nacional Popular aprovaria a lei sobre atribuição a Amílcar Cabral do título de Fundador da Nacionalidade, que seria enviado para publicação.
Este trabalho parlamentar deveria ter sido, obrigatoriamente, materializado no primeiro Boletim da República de Cabo Verde, com a data de 5 de Julho de 1975, contendo a Lei sobre a Organização Politica do Estado, e, em três suplementos, com a mesma data, a eleição do Presidente da República, a eleição do Primeiro-ministro, e a atribuição a Amílcar Cabral do título de Fundador da Nacionalidade. Mas não foi assim que as coisas se passaram.
Até à Independência
A queda do regime colonial fascista português, no dia 25 de Abril de 1974, aproximou Cabo Verde da Independência. Portugal adoptou providências legislativas para iniciar o processo de descolonização, o qual foi levado a cabo ao abrigo da Lei nº 7/74, de 27 de Julho, a “Lei da Descolonização”.
No seguimento, foi celebrado, entre o Governo Português e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), o Acordo de Argel, que não chegou a ser publicado no Diário do Governo e, consequentemente, no Boletim Oficial de Cabo Verde [O Acordo de Argel não foi transcrito no Boletim Oficial de Cabo Verde. Acabou por ser o Novo Jornal de Cabo Verde a publicá-lo].
O Acordo de Argel consagrava dois dos seus nove artigos a Cabo Verde [Art. 6.º O Governo Português reafirma o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência (…); Art. 7.º O Governo Português e o PAIGC consideram que o acesso de Cabo Verde à independência, no quadro geral da descolonização dos territórios africanos sob dominação portuguesa, constitui factor necessário para uma paz duradoura e uma cooperação sincera entre a República Portuguesa e a República da Guiné-Bissau].
Na sequência do Acordo de Argel, a 18 de Dezembro de 1974 assinou-se o Acordo de Lisboa sobre a Independência de Cabo Verde, sem que o PAIGC fosse expressamente reconhecido como único e legitimo representante dos povos da Guiné e Cabo Verde.
O Acordo de Independência não foi publicado no Diário do Governo de Portugal, não podendo, por este facto, sê-lo no Boletim Oficial da Colónia de Cabo Verde [dias mais tarde, a 26 de Dezembro de 1974, foi integralmente publicado no Novo Jornal de Cabo Verde. O original está depositado na Assembleia Nacional].
O processo da Independência
O Governo Português, a oitenta dias da data da proclamação da Independência, editou o Decreto-Lei n.º 203-A/75, de 15 de Abril (a Lei Eleitoral para a Assembleia Nacional de Cabo Verde) que entrou imediatamente em vigor no território de Cabo Verde, independentemente da publicação no respectivo Boletim Oficial de Cabo Verde [o que raras vezes acontecera na administração colonial em Cabo Verde, face à doutrina legal segundo a qual os diplomas publicados em Portugal só entrariam em vigor nas colónias após a sua transcrição no Boletim Oficial].
A Lei definia as operações que deviam conduzir à eleição dos deputados à Assembleia Nacional de Cabo Verde (AN), a ter lugar em 30 de Junho de 1975, por meio de sufrágio directo e universal e escrutínio secreto, e reforçava a missão da Assembleia Nacional de Cabo Verde que, dotada de poderes constituintes, devia elaborar e aprovar, por maioria simples, a primeira constituição do Estado de Cabo Verde, no prazo de noventa dias a contar do acesso deste Estado à plenitude dos direitos de soberania e independência, a 5 de Julho de 1975.
Ainda conferia à AN a competência para, na sua primeira reunião, imediatamente após a verificação de poderes dos seus membros, eleger, de entre os seus membros, o respectivo presidente.
As eleições para a AN tiveram lugar, como estipulado, no dia 30 de Junho, tendo a Comissão Eleitoral de Cabo Verde publicado, no terceiro Suplemento ao Boletim Oficial nº 26, de 4 de Julho, o mapa global da eleição, com o nome dos deputados eleitos por cada círculo.
O Acordo de Independência e o Estatuto Orgânico do Estado impunham a simultaneidade do acto da declaração da independência e o da investidura dos representantes eleitos a ter lugar na cidade da Praia a 5 de Julho de 1975.
A primeira sessão legislativa [sessão constitutiva] da AN, com 56 deputados, decorreu, contrariamente ao acordado, no dia 4 de Julho de 1975, pelas 16h30, no Salão Nobre da Câmara Municipal da Praia.
Iniciada a sessão foi constituída uma mesa provisória integrada por três elementos para a condução dos trabalhos que, de imediato, procedeu à investidura dos deputados eleitos.
Apesar da inexistência do regimento, a mesa provisória aceitou a proposta para a eleição da Mesa da AN, composta de um Presidente, dois Vice-Presidentes e dois Secretários [a lei eleitoral previa a eleição apenas do Presidente da Assembleia, sem referência à Mesa da Assembleia – a proposta para a constituição da mesa provisória foi feita pelo Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Maria Pereira, como narra a acta da Sessão, sem fazer referência à sua condição de deputado].
A Resolução sobre a composição da Mesa da AN, sem numeração e sem assinatura do Presidente da Assembleia Nacional Popular, foi publicada no Suplemento ao Boletim Oficial nº 1, de 7 de julho.
A eleição da Mesa da AN seria o primeiro acto da então jovem Assembleia Nacional, devendo a respectiva resolução ser publicada antes da proclamação da Independência Nacional. A resolução, no entanto, dava a entender que a eleição fora feita pela Assembleia Nacional Popular. Ou seja, a acta da reunião constitutiva chama à Assembleia Nacional de Assembleia Nacional Popular.
Eleita e instalada a Mesa da Assembleia Nacional, houve juramento solene dos deputados, prestada colectivamente [não se jurou fidelidade total aos objetivos do PAIGC]. Após o juramento, os deputados aprovaram a seguinte Ordem do Dia: a) Aprovação do Texto da Proclamação da Independência de Cabo Verde; b) Aprovação da Lei sobre Organização Politica do Estado (LOPE); c) Eleição do Presidente da República; d) Eleição do Primeiro-ministro; e e) Adopção da Lei que atribui ao “Camarada Amílcar Cabral o titulo de Fundador da Nacionalidade”.
Ora, apenas a alínea a) devia constar da Ordem do Dia da reunião constitutiva da Assembleia Nacional e as demais, apenas na primeira reunião ordinária após a Proclamação da Independência.
A elaboração dos documentos referidos nas alíneas a), b) e c) da Ordem do Dia não foi da responsabilidade dos deputados eleitos, mas sim do PAIGC, sendo que os mesmos foram distribuídos aos deputados, que deles tomaram conhecimento durante a própria sessão constitutiva da AN.
A Ordem do Dia que começou a ser tratada às 17h45 e terminou quando eram 20h40. Em menos de quatro horas, os deputados, sem a necessária formação jurídica, e, muitos, sem conhecimento da ciência e do direito constitucional, decidiram o regime e o sistema politico que deveriam vigorar e aceitaram o principio da Unidade Guine-Cabo Verde e da proeminência do PAIGC, elevado a força política dirigente da sociedade cabo-verdiana.
A LOPE
O projecto do estatuto orgânico sobre a organização política do Estado, com a denominação de Lei da Organização Politica do Estado (LOPE), um documento de carácter transitório, foi aprovado, provisoriamente, depois de breve discussão, por unanimidade, tendo sido, na sua esteira, e antes da publicação no boletim oficial da nova República, aprovados provisoriamente os demais assuntos da Ordem do Dia [A LOPE, com 23 artigos, devia vigorar até à primeira Constituição da República de Cabo Verde, ou seja, até 5 de Outubro de 1975. O prazo para a aprovação da Constituição, constante da Lei Eleitoral para a AN e retomado na LOPE, não foi cumprido, tendo sido largamente excedido – a provisoriedade da LOPE durado cinco anos, sete meses e sete dias (05-07-1975 a 12-02-1981), e dos países africanos de língua oficial portuguesa que se tornaram independentes, Cabo Verde foi o único que não aprovou a Constituição no ano da independência].
Nos termos da LOPE, foi instituído o regime de partido único, que vigorou durante 15 anos, ao consagrar, no seu artigo 1º, que a “Soberania do Povo de Cabo Verde é exercida no interesse das massas populares, as quais estão estreitamente ligadas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que é a força política dirigente na nossa Sociedade”, coartando assim a possibilidade da consagração jurídica de uma realidade política plural num País que vivera durante quase 50 anos sob um regime colonialista e fascista.
Proclamação da Independência
A declaração oficial da independência deveria, nos termos do nº 2 do artigo 35º do Estatuto Orgânico do Estado de Cabo Verde e do Acordo para a Independência de Cabo Verde, ter lugar em sessão da AN, após a verificação de poderes ou investidura dos deputados, impondo assim um sincronismo do acto da declaração da independência e o da investidura dos representantes eleitos, na cidade da Praia em 5 de Julho de 1975, mas que ocorreu no dia anterior.
A declaração da independência cujo texto foi aprovado na reunião constitutiva da AN deveria ser feita, após a investidura dos deputados, no local onde a Assembleia estaria reunida para essa mesma posse: no edifício da Câmara Municipal.
No entanto, ela teve lugar no Estádio da Várzea. A 5 de julho de 1975, por volta das 12h40, foi iniciada a cerimónia e às 13h15 foi hasteada a bandeira e tocado o hino nacional, marcando simbolicamente o nascimento do Estado de Cabo Verde. Não houve foi a coincidência entre a investidura dos deputados e a proclamação da Independência.
Além disso, a assinatura do instrumento solene da Declaração da Independência, pelo Primeiro-ministro do IV Governo Provisório de Portugal, General Vasco Gonçalves, em representação do Presidente da República português, e pelo Presidente da Assembleia Constituinte ou Assembleia Nacional de Cabo Verde, Abílio Duarte, devia ocorrer durante a sessão da AN na Câmara Municipal, e não no Estádio da Várzea. A publicação do Texto da Proclamação da Independia, no primeiro Boletim da República de Cabo Verde não faz referência ao acto normativo da AN que o aprovou.
No acto solene da proclamação da Independência, foram exibidos o Hino e a Bandeira da República, mas sem prévia aprovação pela AN, uma vez que os mesmos só viriam a ser aprovados em Abril de 1976, pela Assembleia Nacional Popular, reunida na segunda sessão ordinária, na cidade do Mindelo.
As Armas da República de Cabo Verde apostas no primeiro Boletim Oficial da nova República, que, contudo, não chegou a ser criado legalmente, não tinham amparo legal, porque só foram aprovadas ao mesmo tempo que o hino e a bandeira. E as forças armadas que desfilaram no Estádio da Várzea, que içaram a Bandeira Nacional e a saudaram, não eram as Forças Armada da República de Cabo Verde, pela razão singela de que não estavam instituídas legalmente.
Efeitos das omissões
Em resumo, o processo de suporte jurídico ao processo de Independência e ao surgimento das instituições republicanas não decorreu com a devida correcção jurídico-formal, nos dias 4 e 5 de Julho de 1975, o que se impunha num país de largas tradições administrativas.
A verificação de poderes dos deputados eleitos à AN teve lugar na véspera do dia legalmente marcado. A AN não foi dotada de um regimento, com todas as consequências.
A Independência não foi proclamada em sessão da AN, mas sim no Estádio Municipal da Várzea.
A Resolução da AN sobre a eleição do Presidente da Assembleia Nacional só veio a ser publicada no Suplemento ao Boletim Oficial nº 1, de 7 de Julho de 1975.
No acto solene da proclamação da Independência, foram exibidos o Hino e a Bandeira da República, sem prévia aprovação pela AN. As Armas da República também não tinham amparo legal. As forças armadas que desfilaram no Estádio da Várzea não estavam instituídas legalmente.
A AN só passaria denominar-se Assembleia Nacional Popular depois da publicação da LOPE, não podendo aprovar os actos constantes da Ordem do Dia. Os actos normativos praticados pela AN e pela Assembleia Nacional Popular, bem como pelo Presidente da República, contrariaram o princípio de que a eficácia de leis depende da sua publicação no Boletim Oficial.
A LOPE só veio a ser publicada no Boletim Oficial alguns dias depois, pelo que nenhum acto dela derivado deveria ter tido lugar: a eleição do Presidente da República, por proposta deste a eleição do Primeiro-ministro e a adopção da Lei que atribui a “Amílcar Cabral o título de Fundador da Nacionalidade”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.