“Estamos num momento de profunda mudança”

PorSara Almeida,8 dez 2024 11:25

Francisco Barbosa Amado é o novo bastonário da Ordem dos Médicos
Francisco Barbosa Amado é o novo bastonário da Ordem dos Médicos

Sob o lema “Cuidar dos que cuidam”, a candidatura única do médico Francisco Barbosa Amado a bastonário da Ordem dos Médicos Cabo-verdianos (OMC) foi eleita no passado sábado, dia 30. Defendendo uma prática médica segura, digna e independente, o próximo bastonário promete uma Ordem voltada para a modernização da instituição, valorização dos profissionais e para a melhoria das condições em todas as regiões do país. Cuidar, incluir e partilhar, são os pilares estratégicos que regeram o programa e irão definir o mandato. A tomada de posse está agendada para 17 de Janeiro, dia do médico cabo-verdiano.

Francisco Barbosa Amado, bastonário eleito, avançou, em conversa com o Expresso das Ilhas, alguns dos desafios e prioridades do seu mandato, entre os quais se destaca a necessidade de unir a classe médica em torno de valores e objectivos comuns. Apesar da expressiva adesão à sua candidatura, reconhece que “não é um desafio fácil de alcançar” e afirma que a prioridade será mobilizar médicos de todas as ilhas e sectores, públicos e privados, bem como das cidades e meios rurais, para promover uma Ordem inclusiva, democrática e participativa.

“O nosso grande desafio é agregar todas as energias internas”, observa.

O lema da sua candidatura, “Cuidar dos que cuidam”, continuará a guiar o mandato, estruturado em três pilares: cuidar, incluir e partilhar. E uma especial atenção será dada aos jovens médicos, e aos que estão mais distantes dos centros, dando-lhes não só “voz”, mas também “ajudá-los a ter ferramentas para poderem fazer a sua actualização contínua”.

“Os colegas que ainda estão no início da profissão, precisam de apoio, atenção e ajuda, porque a profissão médica é uma profissão exigente no dia a dia, mas também exige uma formação contínua. Só assim vamos conseguir melhorar e prestar um serviço de saúde de qualidade”, sublinha.

Modernizar a Ordem

Os desafios elencados, na verdade são muitos e há várias questões a decorrer, a vários níveis.

“Estamos num momento de profunda mudança”, refere. Assim, um dos passos a dar no seu mandato é “mexer em instrumentos importantes da Ordem, como os estatutos, que têm de ser renovados; temos de melhorar o nosso regulamento eleitoral, temos o código de ética e de deontologia. Temos que modernizar.”

Para tal, pretende-se também o apoio do Ministério da Saúde uma vez que essas alterações dependem da aprovação do governo.

Entretanto, nessa modernização que se pretende levar a cabo, e que fará parte do plano para 2025, cuja elaboração está em curso e será socializado, pretende-se também melhorar a comunicação entre os médicos das diversas ilhas, usando as ferramentas digitais e mecanismos de comunicação e apoio.

Conselho Estratégico Nacional

A lista encabeçada por Barbosa Amado procurou, na sua própria composição, destacar o princípio de inclusão que rege o programa, e integrar membros de todo o Cabo Verde. “Há uma preocupação de ter a representação de todas as regiões”, sublinhou, apontando que se houve ilhas que não tiveram representação na lista nacional, a tiveram ao nível dos órgãos regionais.

Aliás, uma das metas para o seu mandato é, agora, criar um órgão, ainda não previsto nos Estatutos, apelidado de Conselho Estratégico Nacional, onde teriam assento os ex-bastonários e também representantes de todas as ilhas. “Um órgão abrangente”, resume. Conforme explica, este seria um órgão que irá definir “as grandes políticas que a Ordem deve seguir”, e será também uma forma de incluir e dar voz aos “colegas que estejam mais distantes”.

Especialização

Um aspecto importante para a classe, pelo qual a Ordem se tem batido, é a questão da especialização, um eixo que o médico vê como fundamental para o futuro da profissão. Assim, pretende-se estudar com as entidades da tutela, não só os programas de formação, como de especialização. Existe já um plano da Ordem para essa especialização, que inclusive elenca áreas prioritárias, sendo que o mesmo será agora discutido internamente.

“O nosso objectivo é fazer um debate amplo sobre esse plano com a classe”, observa, acrescentando que o mesmo espírito de discussão abrangente irá guiar as questões estratégicas para a classe, com vista a “criar consensos” que reforcem o papel da classe como “a consciência da saúde pública e da saúde no geral no país”.

Ao mesmo tempo, em outros dossier como a construção de um novo hospital central na Praia, uma necessidade identificada desde os anos 90, Barbosa Amado garante que a Ordem irá contribuir com “ideias, sugestões e propostas, para se poder iniciar esse projecto que a capital e o país precisam.”

Ganhos e desafios

Em jeito de conclusão, questionado sobre o sistema de saúde, no geral, Barbosa Amado reconhece avanços, mas alerta: “Se não tomarmos algumas medidas agora, poderemos daqui a alguns anos vir a ter problemas”. Esta é aliás uma visão que partilha com vários colegas com quem tem conversado.

“Há coisas que temos que corrigir. É isso que a Ordem quer: pensar a saúde, reflectir, mas também ajudar a apresentar soluções às autoridades para poderem serem implementadas”, conclui.

Quem é o novo bastonário

Nascido na ilha do Fogo, Barbosa Amado é um médico com uma longa trajectória no sector da saúde em Cabo Verde. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra e iniciou a sua carreira profissional no Hospital Agostinho Neto, onde, em 1994, assumiu a Presidência do Conselho de Administração do mesmo Hospital e liderou a introdução da telemedicina e impulsionou a criação da primeira especialização médica no país: Ginecologia e Obstetrícia.

No sector privado, destacou-se na área de endoscopias digestivas, tendo sido pioneiro na implementação de técnicas avançadas. Desde 2017, actua como médico credenciado da CDC (Centers for Disease Control and Prevention) dos Estados Unidos, ao serviço da Embaixada Americana na Cidade da Praia.

Barbosa Amado é membro fundador da Ordem dos Médicos de Cabo Verde, onde ocupou diversos cargos. No âmbito social, tem oferecido serviços médicos voluntários a várias organizações, reforçando seu compromisso com o serviço à comunidade.

Destaque:

“Cuidar dos que cuidam é o princípio que orienta esta candidatura e a minha trajectória na medicina” – in Programa da candidatura de Barbosa Amado

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Danielson Veiga – bastonário cessante da OMC

“Temos de mudar a mentalidade”

Com o segundo mandato a chegar ao fim, e já em momento de passagem de dossiers, o bastonário cessante da Ordem dos Médicos Cabo-verdianos (OMC), Danielson Veiga, faz um balanço positivo dos seus dois mandatos, marcados por avanços significativos para a classe e desafios ainda persistentes.

“Penso que a Ordem conseguiu criar uma nova dinâmica da classe médica no sistema nacional de saúde e também para a nossa população”, avalia Danielson Veiga, olhando para os últimos seis anos.

Para o bastonário cessante, um dos principais ganhos foi a abertura de novas oportunidades para a classe, “através de parcerias com outras Ordens, sobretudo a Ordem dos Médicos de Portugal e o Conselho Federal de Medicina do Brasil”.

Um outro dos marcos mencionados foi a transferência do reconhecimento das especialidades médicas da Agência Reguladora do Ensino Superior (ARES) para a própria Ordem dos Médicos. “Sempre foi do nosso interesse que essa responsabilidade fosse da Ordem, pois faz mais sentido que os próprios médicos façam a avaliação curricular e reconheçam as especialidades”, destaca.

Além disso, foram criados planos de formação especializada, com suporte de parcerias com Portugal e Brasil, aproveitando o hospital universitário em Cabo Verde.

“O nosso objectivo é tentar criar a mobilidade, atrair pessoas para ficarem em Cabo Verde e ajudarem o país no seu desenvolvimento”, explica.

Aliás, foi já durante os seus mandatos que o Hospital Central da Praia se tornou um hospital universitário. E embora reconheça que há ainda imensas carências para que este seja plenamente um hospital Universitário, considera que “foi um começo”, um primeiro passo importante. “Penso que tem trazido sucesso e apresentado condições para estágios”, afirmou, referindo-se ao papel do hospital nos estágios de alunos de medicina da Uni-CV e cuja formação é complementada em Coimbra.

Neste momento, está a ser elaborado um estatuto para os médicos docentes, numa colaboração entre Ordem, Uni-CV e Ministério da Saúde.

Desafios e pendentes

Um dos grandes desafios que Veiga antevê para o seu sucessor, é a implementação da formação médica especializada em Cabo Verde.

Pela positiva, neste desiderato, há a considerar a formação pioneira de 25 médicos em Medicina Familiar, que se juntarão, no inicio do próximo ano, aos três já existentes no país. O número ainda é insuficiente para cobrir os 32 centros de saúde do país, cada um necessitando de pelo menos dois médicos especializados, mas é já um avanço importante, garantindo uma assistência adequada e diagnósticos atempados nos cuidados primários, porta de entrada do paciente no sistema de saúde.

Um outro desafio tem a ver com a própria classe. “Os médicos devem ser mais unidos quando é uma causa comum”, considera Danielson Veiga.

Assim, destaca-se a necessidade de fortalecer a liderança dos médicos, incentivando-os a expor problemas com mais rapidez e união, especialmente quando se trata de causas comuns.

Entretanto, um documento na forja, que acredita merecer a atenção do novo bastonário é o Acto Médico, “um documento que regula a profissão médica”, definindo claramente quem é responsável por determinados actos e garantindo a qualidade da assistência médica. Embora o documento já tenha sido submetido à tutela várias vezes sem sucesso, está em processo de readaptação para uma nova submissão.

Outros pontos destacados são a importância de promover a meritocracia na classe médica, mas “também a promoção do perfil do médico na política, na sociedade, na investigação e na inovação”.

Ao mesmo tempo, importa fortalecer a confiança médico-paciente e melhorar as condições de trabalho, como reduzir a carga horária excessiva.

Por fim, o médico realça a importância de “promover a literacia e a educação na saúde para os utentes”, especialmente em momentos, como o actual, com surtos de doenças, como dengue, malária e COVID-19, apostando a prevenção, que é mais eficaz do que a abordagem terapêutica.

Outras questões

Mas há outras questões a salientar no cenário médico actual. Apesar da evolução do país desde a sua independência, o bastonário cessante lamenta que ainda se dependa fortemente da cooperação internacional. Veiga acredita que Cabo Verde, com a sua maturidade e desenvolvimento, deveria já estar mais avançado e não depender de recursos externos para a formação de profissionais de saúde, por exemplo.

Um dos principais desafios é a questão da formação e retenção de médicos no país. Desde 2016, Cabo Verde formou cerca de 73 médicos através do projecto Cabo Verde-Portugal, mas menos de 20% desses médicos estão empregados no país. Muitos, sem oportunidades de trabalho, estão a procurar vagas no estrangeiro. Esse cenário põe em risco a eficácia da formação médica nacional e compromete o desenvolvimento do sistema de saúde, uma vez que um médico que não exerce pode perder competências essenciais. A solução, segundo o bastonário, poderia passar por promover a cooperação internacional, enviando médicos formados para países em desenvolvimento como Moçambique e São Tomé, em vez de absorver apenas médicos estrangeiros.

Para o médico é também “retrógado” o facto do sistema de saúde contemplar apenas um seguro de saúde, limitando fortemente a escolha da população no acesso a opções adequadas para tratamentos médicos.

Assim, defende “uma visão mais ajustada a uma política de saúde mista, em que a participação privada também faz parte do Sistema de Saúde de uma forma mais sustentável”.

“Temos que mudar a mentalidade”, exorta.

Existe, há muito uma proposta de lei da parceria público-privada, que ainda não subiu ao parlamento. Eventualmente, isso acontecerá nos próximos três anos, durante o mandato do novo bastonário.

Novo bastonário reúne consensos

Em relação ao seu sucessor, Danielson Veiga recorda que é um profissional com longa ligação à Ordem, tendo sido membro-fundador e integrando equipas de diferentes mandatos, inclusive do seu, e participando activamente em várias acções, como os congressos internacionais realizados.

Veiga acredita que Amado está alinhado com os valores da classe e com as mudanças necessárias para o sistema de saúde. Aliás, “o próprio lema da candidatura aborda uma questão importante: “o cuidar de todos, os médicos, os utentes e também daquilo que é política e a legislação na saúde”, aponta.

Danielson Veiga mostra-se, pois, confiante de que, com o trabalho do seu sucessor, a classe médica se unirá em torno dos planos da Ordem, que visam trazer sucesso à classe e defender a saúde da população. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1201 de 04 de Dezembro de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,8 dez 2024 11:25

Editado porEdisângela Tavares  em  9 dez 2024 14:26

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