A adaptação de crianças imigrantes ao sistema educativo cabo-verdiano continua a ser um desafio complexo e multifacetado, conforme analisou o presidente da Plataforma das Unidades Africanas Residentes em Cabo Verde e professor de língua portuguesa, José Ramos Viana. A ausência de políticas educacionais adequadas e o excesso de burocracia são apontados como os principais entraves. Segundo o presidente há questões urgentes, desde a barreira linguística até à burocracia excessiva que são os maiores desafios enfrentados pelas crianças e as suas famílias.
“Quando uma criança chega a Cabo Verde sem falar português ou crioulo, ela está automaticamente isolada. Não consegue comunicar-se com os colegas, não compreende as instruções dos professores e, o mais grave, não consegue acompanhar as matérias. Imagine uma criança que fale apenas francês ou uma língua africana a tentar adaptar-se a um sistema educativo que não lhe dá qualquer apoio linguístico. O resultado é que muitas acabam por desistir ou apresentam um rendimento escolar muito baixo. Este é o primeiro sinal de que algo precisa mudar.”
Falta de políticas públicas definidas
José Ramos Viana criticou a falta de uma estratégia clara por parte do Ministério da Educação para apoiar as crianças imigrantes, afirmando que a integração linguística deveria ser tratada como um direito fundamental, e não como uma opção. Na sua visão, a ausência de políticas específicas e a falta de recursos adequados criam um ambiente hostil, deixando essas crianças desamparadas e desorientadas.
Para o presidente da PUARCV, o Ministério da Educação deveria implementar medidas concretas, como aulas de reforço linguístico, para assegurar que todas as crianças tenham oportunidades iguais de sucesso académico. Além disso, destacou que a burocracia no processo de validação de documentos escolares continua a ser um obstáculo significativo na vida das famílias imigrantes, dificultando a integração escolar dos seus filhos.
“Estamos a complicar desnecessariamente a vida destas famílias. É inacreditável que crianças fiquem fora da escola durante anos porque os documentos não foram autenticados na embaixada do país de origem. Já acompanhei casos em que os pais, sem recursos, não conseguiam cumprir com estas exigências. Resultado? Crianças fora da escola, sem qualquer apoio. Precisamos de um sistema mais humano e menos burocrático. O foco deve ser na criança, na sua educação, e não nos papéis.”
José Ramos Viana alertou ainda para os danos emocionais causados pelo afastamento escolar. “Estas crianças não só enfrentam barreiras académicas, mas também psicológicas. Ver os colegas a irem à escola enquanto elas estão em casa gera um sentimento profundo de exclusão. O impacto psicológico é devastador. Precisamos de apoio psicológico para estas crianças, algo que não existe na nossa realidade actualmente. A escola deveria ser um espaço de inclusão, mas para muitas delas é apenas uma porta fechada.”
Este responsável defende que a solução passa pela implementação de políticas públicas inclusivas. “Educação inclusiva não significa apenas aceitar crianças imigrantes. Significa criar condições para que elas aprendam, se sintam seguras e possam crescer. Isso inclui apoio linguístico, acompanhamento psicológico e um currículo que respeite e valorize a diversidade cultural. Se não fizermos isso, continuaremos a deixar essas crianças para trás. E se elas ficam para trás, toda a sociedade perde.”
José Ramos Viana defende que a integração escolar de crianças imigrantes é uma questão educativa, social e económica, apelando à acção imediata do governo para garantir uma educação inclusiva e sem barreiras no país.
A realidade das escolas
Em conversa com várias famílias imigrantes oriundas de países da costa africana, emergem relatos preocupantes de bullying nas escolas, com foco nos alunos imigrantes. Segundo essas famílias, o problema não se limita aos colegas, mas inclui também atitudes de exclusão por parte de alguns professores.
“Chamar uma criança de ‘Mandjáko’, quando pertence a outra etnia, não é apenas uma palavra, mas um acto que provoca um profundo desarranjo social e moral. Essas crianças carregam essa mágoa, que pode perdurar por toda a vida, afectando a sua capacidade de interação, o entusiasmo para participar em actividades escolares e, muitas vezes, conduzindo ao isolamento e à depressão”, considera Pedro, um imigrante do Senegal.
Catarina (nome fictício), uma adolescente de 17 anos natural do Mali, hoje sente-se acolhida na sua escola e pelos colegas, mas nem sempre foi assim. Ao recordar a sua chegada a Cabo Verde para estudar, relata as sérias dificuldades de adaptação enfrentadas, agravadas pela barreira linguística e pelo preconceito vivido no ambiente escolar.
“Comecei a estudar aqui no quinto ano do ensino básico. No início, foi muito difícil porque não conseguia comunicar com os colegas nem entender os professores, o que me deixava a maior parte do tempo em silêncio. Apesar da aproximação de alguns colegas, ouvia frequentemente insultos e era chamada por nomes que me magoavam. Até hoje, não gosto que me chamem de ‘Mandjaka’ ou ‘Amiga’. Pode parecer inofensivo, mas carrega um peso de preconceito”, desabafa.
Além disso, Catarina sentiu a falta de acompanhamento por parte de alguns educadores: “Percebia que muitos estavam mais preocupados em cumprir o protocolo do que em acompanhar a nossa aprendizagem. Isso foi o mais complicado.” Para superar as dificuldades, começou a frequentar aulas de reforço, mas o primeiro ano foi um desafio: “Mesmo com o reforço, não consegui ter sucesso escolar no primeiro ano”, lamenta.
Necessidade urgente
Para José Ramos Viana, o apoio psicossocial é essencial para garantir uma integração plena e eficaz no ambiente escolar. O líder associativo defende uma abordagem integrativa, onde a escola, a família e a comunidade trabalhem em conjunto para acompanhar o percurso académico dos alunos.
“É fundamental que as escolas disponham de departamentos específicos para apoio psicossocial, não apenas para os alunos imigrantes, mas também para as nossas próprias crianças. Este acompanhamento deve envolver associações comunitárias, professores e dirigentes do Ministério da Educação, em colaboração constante. Sem essa articulação, continuaremos a expor as crianças a situações de incerteza e vulnerabilidade. Quando o ambiente familiar não está integrado, a criança também não estará. Por mais esforços que a escola faça, sem recursos adequados o apoio torna-se limitado. O Ministério da Educação precisa estar atento a esta realidade, porque a presença de uma comunidade imigrante crescente em Cabo Verde está a alterar os paradigmas, exigindo revisões nos currículos e nas metodologias de ensino.”
O líder da PUARCV sugere que as escolas devem promover a diversidade cultural e linguística como forma de inclusão. “Precisamos ensinar às nossas crianças que há várias línguas e culturas, e que todas são igualmente importantes. O português e o crioulo são essenciais, mas as outras línguas também merecem respeito. Criar um ambiente mais acolhedor nas escolas, onde actividades incentivem a interacção entre alunos de diferentes origens, é fundamental. Se não criarmos esse ambiente, o aluno não vai aprender, vai sentir-se excluído e o seu desempenho académico será afectado.”
José Viana acredita que a transformação do sistema educativo cabo-verdiano passa por uma abordagem integrada e inclusiva. “O Ministério da Educação precisa agir. Precisamos de metodologias apropriadas para o ensino da língua e de um compromisso real com a inclusão. Só assim poderemos garantir que todas as crianças, independentemente da sua origem, tenham um percurso educativo saudável e bem-sucedido.”
Inclusão Educativa – Ministério da Educação
Cabo Verde tem implementado políticas inclusivas que garantem igualdade de acesso à educação para todas as crianças, incluindo filhos de migrantes. De acordo com Maria Helena Andrade, Directora dos Serviços de Gestão Pedagógica, Avaliação e Inclusão Educativa da Direção Nacional da Educação, Cabo Verde adota políticas educativas inclusivas, assegurando o direito à educação sem distinção da origem. Segundo esta responsável, o sistema educativo nacional não distingue entre estudantes nativos e estrangeiros, assegurando que todos são acolhidos com equidade. A Constituição da República e a Lei de Bases do Sistema Educativo garantem que todos, incluindo filhos de imigrantes, tenham acesso igualitário à escola.
“Na educação não há essa diferenciação. Todos têm o direito à educação, consagrado na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo, que estabelece que o sistema é aberto a todos os indivíduos, independentemente da idade, sexo, nível socioeconómico ou cultural, crença religiosa ou convicções filosóficas”, afirma.
Contextos linguísticos diferentes
A Directora dos Serviços de Gestão Pedagógica, Avaliação e Inclusão Educativa informa que para alunos oriundos de contextos linguísticos diferentes, como países francófonos ou anglófonos, as escolas criam estratégias específicas.
“Embora não haja um currículo especial para esses alunos, há reforço educativo em língua portuguesa para que possam acompanhar os conteúdos escolares. Esse processo é desenvolvido em articulação com as famílias, que também desempenham um papel essencial no sucesso dos alunos”, explica.
Além disso, as escolas oferecem suporte psicológico e promovem a inclusão e a cidadania por meio de espaços dedicados a temas como discriminação e racismo. Esses esforços são complementados por programas de orientação vocacional e a formação contínua de professores para fomentar a tolerância e o respeito às diferenças. Maria Helena Andrade destaca que o processo de equivalência, essencial para integrar alunos estrangeiros no sistema educativo cabo-verdiano, não deve ser confundido com burocracia excessiva.
“São procedimentos necessários para ajustar o nível de escolaridade ao perfil do aluno e garantir o rigor e a transparência no processo. Para integrar alunos que não dominam o português ou o crioulo, as escolas criam condições específicas. Além disso, o processo de equivalência escolar, que valida os estudos realizados fora, é essencial para o correcto posicionamento do aluno no sistema educativo cabo-verdiano”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.