“O modelo da aldeia global que criámos falhou”

PorAndré Amaral,21 dez 2024 8:29

Nuno Calvão, Vice-Reitor da Universidade de Coimbra
Nuno Calvão, Vice-Reitor da Universidade de Coimbra

Nuno Calvão, Vice-Reitor da Universidade de Coimbra, esteve na Praia, onde apresentou a conferência ‘Democracia: Riscos e Desafios no Mundo Atual’. Ao Expresso das Ilhas, este professor universitário defende que as democracias estão em risco e que as desigualdades socioeconómicas aumentaram a nível mundial.

O crescimento dos radicalismos e extremismos um pouco por todo o mundo ocidental mostra que os cidadãos “deixaram de ter resposta” por parte dos partidos tradicionais, colocando em risco sociedades e projectos democráticos como os EUA e a União Europeia.

Ouvindo a sua comunicação durante a conferência, podemos afirmar que a democracia, a nível internacional, está em risco. Como é que chegámos a esta situação?

O mundo está perigoso, não temos dúvidas disso. Temos dois conflitos com potencial destrutivo elevado [Ucrânia e Médio Oriente]. Temos novamente uma guerra que já não é fria, mas praticamente aberta e declarada, e, como aprendemos nos livros de História, percebemos que, a qualquer momento, pode haver o carregar de um botão, um episódio que desencadeie uma terceira guerra mundial. Há um problema sério no Médio Oriente, com todo aquele mosaico que alavanca alianças geoestratégicas. Tivemos uma impensável invasão de um país soberano, com um conflito que está numa escalada crescente. O que me preocupa não é apenas esta situação no mundo, mas as causas que nos conduziram até aqui. Há problemas estruturais que nos colocaram nesta posição e que ameaçam projectos de paz e prosperidade, como a União Europeia, e os regimes democráticos. O mundo das últimas décadas foi construído à volta de uma ideia de globalização que trouxe benefícios significativos para a humanidade. Muita gente melhorou a sua qualidade de vida, com melhores índices de literacia, etc. Mas, na verdade, o modelo da aldeia global que criámos falhou. Mesmo reconhecendo os aspectos positivos e os números que o comprovam, o mundo global não foi suficiente. As desigualdades económico-sociais não diminuíram; pelo contrário, aumentaram. O fosso entre ricos e pobres é cada vez maior. A pobreza extrema aumentou. Temos também problemas graves de xenofobia e racismo, que são inaceitáveis. Além disso, em diversas partes do mundo, a corrupção aumenta a desconfiança entre eleitores e eleitos, e cresce a desconfiança na política. Esse caldo de insatisfação gera revolta, porque a maioria, mesmo que silenciosa, já não tem esperança no futuro. Revolta-se porque já nem sequer pode, como os nossos pais, pensar que os filhos terão uma melhor qualidade de vida. Hoje, não há esperança de que os filhos terão uma vida melhor. Não há confiança de que os jovens que começam a trabalhar possam garantir as suas pensões de reforma, enquanto são obrigados a descontar tanto para que os seus pais as tenham. Com esta desesperança vem a revolta. Como esta não foi captada pelos partidos moderados, estes sentimentos de medo e desesperança começaram a ser explorados de forma rasteira por populistas. Estes vendem soluções fáceis e ilusões, convertendo os populismos em projectos extremistas que condicionam a liberdade e colocam em causa os ideais democráticos de governo.

Nós estamos a assistir, como disse, ao desaparecimento de partidos tradicionais, como o caso do Partido Socialista em França, e à ascensão da direita radical e da extrema-direita…

É uma derrota dos moderados e, como civilização, só podemos estar profundamente tristes, porque não enfrentámos estas questões com seriedade. Deixámo-nos sequestrar pelo politicamente correcto. As preocupações reais das pessoas — como a diminuição das desigualdades, o acesso ao emprego, à saúde, à justiça eficiente e a sistemas de segurança social sustentáveis — foram ignoradas. Os partidos convencionais alienaram estas bandeiras, que foram ocupadas por populistas e extremistas. Isto diminuiu o espaço da moderação e aumentou a polarização ideológica, fragmentando a coesão social. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, essa polarização é evidente. Cabo Verde deve evitar que isso aconteça, pois ainda continua a ser um exemplo de progresso em África e no mundo.

Como se explica que em países como os Estados Unidos, onde a economia está a crescer e o desemprego é extremamente baixo, se alinhem com políticas de um candidato como Donald Trump?

É verdade, mas o voto popular não pode ser ignorado. Não nos revemos no radicalismo de Donald Trump nem no seu estilo, mas ninguém acredita que todos os norte-americanos que votaram nele sejam radicais. Há muitos moderados que, simplesmente, encontraram nele uma resposta às suas preocupações. Questões como a regulação da imigração ou o acesso a cuidados de saúde são prioridades legítimas que os partidos convencionais negligenciaram. As pessoas querem acesso garantido a pensões de reforma, como justa compensação por uma vida de trabalho. Querem ter esperança no elevador social, que permita aos filhos ascenderem pelo mérito. Essas preocupações foram abandonadas por soluções moderadas, deixando espaço livre para o populismo, que é perigoso para a democracia.

Temos tecnocracias mascaradas de democracias ou democracias tomadas por tecnocratas?

Temos democracias que acabaram por desprestigiar os políticos. Há a ideia de que são sempre corruptos e incompetentes, o que criou uma grande dissociação entre eleitores e eleitos. Os partidos não se preocuparam com a qualidade dos seus políticos, e os eleitores afastaram-se. Para colmatar esta falta, os partidos passaram a convocar independentes e burocratas para ocuparem funções de poder, desrespeitando o voto popular. Isso só agravou a distância entre eleitos e eleitores.

De uma ponta a outra da Europa, temos partidos de direita radical ou de extrema-direita em ascensão. O que é que isto pode trazer para a Europa enquanto projeto de união?

Como já disse, a União Europeia está em risco. Projectos de paz e prosperidade, baseados no respeito pelo Estado de Direito e na separação de poderes, estão sob ameaça. Há democracias, como na Hungria, que são inconciliáveis com o ideário liberal. O iliberalismo está a corroer o que antes era exemplo de respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades individuais.

As migrações foram uma bandeira aproveitada por estes partidos.

Isso aconteceu porque os partidos moderados não souberam interpretar os medos das populações. Não podemos simplesmente abrir as portas sem critério, mas também não podemos condenar aqueles que chegam à Europa ou aos EUA a uma vida de miséria. Precisamos de políticas de acolhimento realistas, que respeitem a dignidade humana e as capacidades de cada país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024. 

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Autoria:André Amaral,21 dez 2024 8:29

Editado pormaria Fortes  em  21 dez 2024 9:07

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