Cabo-verdianos na América no fio da incerteza

PorSara Almeida,9 fev 2025 7:39

Foto retirada do site da ICE
Foto retirada do site da ICE Immigration and Customs Enforcement

O medo não precisa de algemas. O discurso agressivo e as medidas migratórias já tomadas pelo presidente americano Donald Trump têm gerado pânico nas comunidades cabo-verdianas, que vivem momentos de incerteza. Perante o clima actual, conhecer regras, direitos e procedimentos é a melhor defesa contra uma eventual deportação, pelo que é fundamental haver informação correcta, rápida e certeira. É isso que os emigrantes defendem, ao mesmo tempo que apelam ao reforço da união, a “palavra-chave” em tempos difíceis. Além disso, há a preocupação de que aqueles que possam vir a ser repatriados de lá sejam recebidos com dignidade aqui, em Cabo Verde.

Ivo, nome fictício, vive há quase dois anos em Fall River, Massachusetts, uma região com uma forte comunidade cabo-verdiana e onde a família próxima, incluindo mãe e irmãs, já se tinha estabelecido. Chegou com um visto de seis meses e, nesse meio ano, casou e conseguiu emprego numa empresa americana, onde também trabalham muitos conterrâneos. Tudo foi relativamente fácil e sem problemas. A vitória de Trump, porém, alertou-o de que nada estava certo na vida que está a construir por lá. Apresentou rapidamente os documentos para obter outros comprovativos que provam o seu matrimónio com uma cidadã americana e antecedem o pedido de cidadania. Hoje, mais do que nunca, há na comunidade o medo de ser indocumentado. A razão: Donald Trump.

Horas depois da tomada de posse, o novo presidente cumpriu as promessas de campanha e iniciou aquilo que a sua própria administração apelida de “a maior operação de deportação em massa da história”. Em menos de três dias, foram detidos 538 imigrantes e deportadas centenas de pessoas. O discurso e as ações criaram, pois, medo, fundado ou não, entre os imigrantes, e os cabo-verdianos não foram exceção.

Ivo, apesar de tudo, está tranquilo. “Não fiz nada de mal. Trabalho e desconto os meus impostos…”, justifica. Porém, reconhece, a sua tranquilidade contrasta com o ambiente que se vive na zona. Como conta, as pessoas não estão com medo: “estão em pânico!”

No trabalho, os próprios colegas que estão na mesma situação que ele limitam-se a deslocar-se entre o emprego e a casa, evitando até idas ao supermercado. Criticam-no quando ele diz que foi a qualquer outro lado mais movimentado.

É que, mesmo havendo informações na comunidade de que a Immigration and Customs Enforcement (Serviço de Imigração e Controlo Aduaneiro) – a temida ICE – está a trabalhar com uma lista de imigrantes que cometeram crimes, muitos têm medo de ser detidos numa operação geral.

As notícias espalham-se rapidamente e todos comentam o sucedido com um cabo-verdiano que terá sido detido numa operação que visava outros imigrantes, brasileiros. Essa detenção, relembra Ivo, não significa deportação automática. Se não houver envolvimento em crimes, como aparentemente não há no caso desse cidadão, a severidade da ilegalidade deverá ser aferida em tribunal. “Há vários tipos de ilegalidade, cada caso deve ser analisado individualmente”, recorda. Pode até tratar-se de desleixo na apresentação de documentos, o que, considera, poderá ser regularizado com relativa facilidade. Mas ninguém quer passar por uma detenção.

Calma!

Melany Vieira, activista e empresária, vive em Pawtucket (Rhode Island) há 11 anos e já tem cidadania americana. Não foi um processo fácil, mas, com vários familiares na emigração, sabia que assim seria quando decidiu atravessar o Atlântico.

“Emigração é emigração. Cada país tem as suas dificuldades, mas não deixa de ser emigração. Então, psicologicamente, estava preparada”.

No início, enfrentou vários obstáculos, até porque não tinha nesse país familiares próximos que pudessem entrar com uma “petição”. Foi inclusive denunciada por um membro da comunidade por alegada irregularidade. “Houve altos e baixos e momentos em que desanimei”, confessa. Mas tudo acabou por se resolver.

Tal como Ivo, também Melany considera que o pânico que a comunidade vive resulta não só de preocupações válidas, mas também de muitas informações negativas que são partilhadas e nem sempre são verdadeiras.

“Quem está na lista de deportação são as pessoas que, além de estarem na ilegalidade, também cometeram crimes”, aponta a ativista.

O medo, considera, vem também da forma de estar e falar de Trump. E lembra que, apesar de todas as críticas que se possam fazer ao seu modo de governação, é preciso respeitar. “Se a maioria dos americanos votou no Trump, é porque acredita nele e pensa como ele”.

Ao mesmo tempo, Melany apela também a uma assunção das responsabilidades individuais. Como conta, muitas pessoas que emigram para os EUA à procura de melhor vida “acomodam-se”.

“Começam a ganhar dinheiro e não se preocupam com a legalização. Eu acho que devemos ter um pouco mais de ambição na vida e trabalhar também para um futuro seguro. A nossa segurança é nossa responsabilidade. Não devemos colocá-la nas mãos de ninguém. O que está a acontecer é que a segurança de muitas pessoas está nas mãos do Trump”, e isso torna-as muito vulneráveis às vontades do presidente.

Informação

Na verdade, como aponta, por seu lado, Ivo, é tudo muito recente. Trump foi empossado há pouco tempo, e ainda não se vislumbram plenamente as consequências das suas políticas, mesmo que os seus anúncios já tenham gerado pânico.

Até ao momento das entrevistas, não era conhecido o caso de nenhum cabo-verdiano que tivesse sido deportado. Melany e Ivo garantem que, se já tivesse havido algum em Massachusetts, toda a comunidade do Estado já o saberia.

Na prática, não houve, pois, grandes mudanças até ao momento. Apenas o clima de medo criado é palpável.

“As pessoas estão com medo e a falta de informação não ajuda”, critica Ivo.

Há, inclusive, boatos e desinformação a circular, principalmente nas redes sociais, bem como informação pouco precisa e alarmista, às vezes em busca de cliques, ou feita de boa vontade, mas sem conhecimento sobre os temas.

“Esse tipo de solidariedade não é o que ajuda nesta altura. O que vai ajudar a nossa comunidade neste momento é ter informação correta, saber como agir”, aponta Melany.

Entre informação errada, menos correcta ou precisa, circulam vários vídeos, inclusive de advogados, a explicar questões de migração e como evitar a deportação. São dados conselhos como evitar sair de casa para não serem apanhados nas operações ou andar sempre com a certidão em caso de casamento com cidadãos americanos, entre outros conselhos úteis.

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A questão da informação é vista como incontornável e é muito destacada tanto por Ivo como por Melany. Esta última lembra que dificilmente a embaixada e o consulado irão, sozinhos, atender a todos os pedidos de informação ou chegar a todas as comunidades. Assim, é fundamental trabalhar com as comunidades e associações para melhorar a disseminação da informação.

De acordo com o embaixador de Cabo Verde em Washington, é precisamente isso que está a ser feito. Em entrevista à RCV, José Luís Livramento avançou que está a ser promovida uma task force, envolvendo associações, advogados pro bono, políticos e outros, de modo a encontrar as melhores maneiras de lidar com a disseminação de informação e com os casos concretos das comunidades.

A questão que se coloca é: “Afinal, com Trump, as coisas vão mesmo mudar?” Perguntamos a Ivo, que responde: “Vão mudar, não. Já estão a mudar.” Resta ver em que proporção.

O que mudou?

Na referida entrevista à RCV, o embaixador, que também reconhece o clima de medo vivido, aponta algumas mudanças.

Entre as mudanças, estão as ordens directas para que a ICE, mas também outras agências policiais, como a DEA, cujas competências Trump alargou nestas matérias, e outras entidades, sejam mais agressivas na identificação e nos processos de deportação de pessoas em situação irregular.

Além disso, tal como no primeiro mandato de Trump, e como conta José Livramento, a polícia intensificou acções em pontos “onde há maior probabilidade de encontrar pessoas nessa situação. Sítios com grandes aglomerados de pessoas, como supermercados ou locais de festa”.

“Isso está a acontecer”, garante o embaixador. Daí o conselho que tem circulado na comunidade: evitar os locais onde há mais probabilidade de serem apanhados numa rusga e identificados.

Um outro facto é que, embora a prioridade das autoridades americanas seja a deportação de quem cometeu crimes, o tipo de crimes abrangidos foi alargado. Anteriormente, eram visados crimes graves como terrorismo ou homicídio; agora, são contemplados também crimes menores, como roubo ou furto.

“Esse conceito de criminoso alargou-se e está a apanhar muita gente”, destacou o embaixador na referida entrevista.

Entretanto, outra questão que a imprensa americana tem referido é a de que o Congresso dos EUA, de maioria republicana, quer acabar com as chamadas “cidades santuário”, incluindo Boston. Em 2014, foi aprovado o Boston Trust Act, que impede a polícia local de manter imigrantes sob custódia exclusivamente para fins de deportação, a menos que exista um mandado criminal, e que agora se pretende reverter. A Câmara de Representantes já terá notificado a mayor Michelle Wu para testemunhar a 11 de Fevereiro numa audiência pública, alegando que as políticas das cidades santuário dificultam as detenções e comprometem a segurança pública.

Os 314

Mudanças estão em curso, mas, como se sabe, todos os anos há cidadãos que são repatriados dos EUA. No mandato anterior de Trump (2017 a 2021), mais de uma centena de cabo-verdianos foram deportados, de acordo com os relatórios anuais da ICE (Nota: não encontramos os números de 2017). Em 2018, por exemplo, foram 68, e o número foi descendo: em 2020, foram apenas 15. Durante os quatro anos da administração de Joe Biden, foram deportados 54 cidadãos, ou seja, menos de metade do que na administração anterior.

2021 foi o ano com mais deportações do mandato de Biden (29 deportados) e 2022, o com menos (4). No ano passado, houve 12 repatriamentos.

Feita a recapitulação, nas últimas semanas circulou nas redes sociais uma lista que acentuou o medo das deportações. De acordo com essa lista, 314 cabo-verdianos (não detidos) têm ordem de extradição.

Como relembra Melany, “não foi Trump que fez essa lista”. Trata-se de um documento que regista a existência, até 24 de novembro de 2024, de 1.445.549 estrangeiros que constam no registo de não detidos, com ordens finais de deportação. A data do documento, precisamente novembro de 2024, ou seja, várias semanas antes de Trump tomar posse.

Honduras, Guatemala e México, todos com mais de 250 mil cidadãos, lideram a lista, seguidos de El Salvador, país com 204 mil visados. Os restantes países têm menos de 50 mil cidadãos, sendo que o Brasil é o país lusófono com mais migrantes na lista: 38.677.

No caso de Cabo Verde, as autoridades e representantes diplomáticos já conheciam os números, embora não o documento em si. Na referida entrevista à RCV, o embaixador confirmou haver mais de 300 emigrantes cabo-verdianos nos EUA com ordem de deportação, salientando que este é um número que se vem acumulando com o tempo.

Deportados.

E Depois?

Ivo não vê razões para a sua deportação, mas também não entra em pânico perante essa eventualidade: “O pior que pode acontecer é enviarem-me para Cabo Verde”.

Nem todos pensam da mesma forma. Para alguns, a deportação é uma enorme vergonha, uma prova do seu falhanço. Esta vergonha é, aliás, um dos principais problemas quando se fala em deportação e que, como aponta Melany, é preciso desdramatizar.

“A emigração, infelizmente, não é um sucesso para todos. E a deportação, o insucesso, pode acontecer com qualquer um”.

Do lado dos que estão em Cabo Verde, também a postura para com quem, voluntária ou forçosamente, regressa ao país sem ter esse sucesso precisa de ser trabalhada.

“Temos uma mentalidade um pouco fechada. Temos tabus. Por exemplo, quando uma pessoa é deportada, ela é xingada. Então, o povo cabo-verdiano precisa de ser mais humilde, ter mais empatia para com estas pessoas que vão ser deportadas”.

E é preciso, principalmente ao nível do Governo de Cabo Verde, haver projectos de integração, defende a ativista.

Em Cabo Verde, já existem iniciativas com esse fim. Em declarações à RCV, o Primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, garantiu que o país está a acompanhar a questão dos deportados e está preparado para os receber. Conforme assegurou, o Governo irá alocar recursos adicionais para fins de integração, caso a quantidade de repatriamentos seja elevada.

“A melhor solução é estar organizado, preparado e ter um programa ajustado às contingências”, acrescentou.

Seja como for, em momentos incertos e complicados como estes, “união é a palavra-chave”, defende Melany Vieira. “Unir-se em solidariedade, principalmente com os deportados”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1210 de 5 de Fevereiro de 2025.

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Autoria:Sara Almeida,9 fev 2025 7:39

Editado porSara Almeida  em  9 fev 2025 16:56

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