UPAPIT: Quando o caminho é a terra

PorSara Almeida,18 mai 2025 8:26

Localizada na zona de Monte Vaca, perto do Estádio Nacional, na Praia, a UPAPIT – Unidade de Produção Agropecuária, Indústria e Turismo é hoje o resultado de um percurso iniciado em 2013, quando a firma Irmãos Correia adquiriu o espaço da empresa 11.11, nome que ainda rotula o grogue produzido no local. São cerca de 40 hectares de terra onde se cultiva, pastoreia e produz, num sistema circular que tem vindo a expandir-se. Água houvesse, e o empreendimento poderia crescer ainda mais. Da história da empresa às dificuldades, como a escassez de água, falta de mão de obra e os “ataques” das galinhas-do-mato; da produção de grogue aos 5 mil ovos diários, passando pelas apostas futuras. Uma visita que mostra que o campo merece um olhar atento. Afinal, sem o que a terra dá, pouco se sustenta. E como diz a gerência: “O caminho é a terra”.

Na UPAPIT, “nada se perde, tudo se transforma”, brinca António Pedro Correia, um dos três gerentes da empresa, propriedade dos Irmãos Correia. Os resíduos da agricultura alimentam os animais e o estrume fertiliza a terra, que dá o alimento e a matéria-prima. É a lei de Lavoisier a funcionar, num sistema de produção integrado e circular.

Mas para conhecer a UPAPIT é preciso recuar até antes de 2013, quando mudou de mãos. O espaço foi durante muito tempo explorado pela Tentativa, tendo sido posteriormente vendido à empresa 11.11. Em 2013, um dos proprietários da 11.11, João Higino, contactou a Irmãos Correia, que se mostrou interessada em adquirir a empresa. Acordo firmado, nascia a UPAPIT.

De 2013 a esta parte, aumentou a área (são já aproximadamente 4 mil m2), as plantações, as cabeças de gado e a produção. 12 anos de investimento e crescimento e vários projectos em vista.

Da cana ao copo

A UPAPIT tem uma vasta quantidade de produtos naturais e alguns transformados, mas há dois que são o seu core business: os ovos e o grogue.

Começando por este último. Antes de ser UPAPIT, já o espaço cultivava cana-de-açúcar para a produção do grogue 11.11. No entanto, nessa altura, a produção era terceirizada. Após 2013, deu-se início à expansão das plantações e à criação de condições para que todo o processo passasse a ser interno.

Hoje, o controlo é total. A cana é plantada e acompanhada por engenheiros, que usam equipamentos próprios para medir a maturação da planta.

O controlo vai, assim, da plantação à maturação, passando pelo trapiche e alambique, e até ao engarrafamento ou envelhecimento em barris de carvalho francês e americano. Tudo dentro da propriedade, com apoio técnico de especialistas, nomeadamente do engenheiro Elisângelo Monteiro, da EtaConsulting, garantindo a certificação e um circuito fechado do campo à garrafa.

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Nada de açúcar adicionado, nada de matéria-prima de fora. “Quem adiciona açúcar não pode chamar grogue. Legalmente devem chamar de aguardente, ou outro nome, mas grogue tem que ser somente de cana”, aponta António Pedro Correia.

A marca 11.11 chegou a ser rebaptizada como Monte Vaca, mas o mercado estranhou a mudança e a gerência recuou. É actualmente vendida no mercado nacional a cerca de 2000 escudos, no caso do grogue novo, e 4000, se for envelhecido.

Há também uma parcela que segue para os Estados Unidos, onde a empresa tem um parceiro. Não é um grogue acessível a toda a gente, reconhece o gerente, mas, de qualquer modo, “o custo dos factores de produção é alto” e a quantidade não chega para a procura.

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Também não conseguem produzir o suficiente para exportar para a Europa, apesar de todas as levas de grogue serem testadas pela ASAE, em Portugal, e aprovadas conforme as regras das bebidas espirituosas da União Europeia.

Mas também nas bebidas se inova. E em breve serão lançados dois licores da marca: o licor (ponche) de mel e o licor de maracujá.

Ai, se houvesse mais água…

Mas qual é principal entrave a uma maior produção de grogue, que dê vazão à procura existente e a potenciais mercados e clientes? A resposta é curta: “O problema é a água".

Apesar de terem dois furos activos — um que fornece 60 m³ por dia e outro que dá 24 m³, destinado essencialmente à pecuária —, o sistema de gota-a-gota e o transporte de água seis vezes ao dia de um outro furo situado na zona da Fazenda, as limitações hídricas continuam a ser o maior obstáculo à expansão.

Felizmente, a pouca água disponível, que tem vindo a diminuir, não apresenta sinais de intrusão salina.

Os serviços públicos não ajudam. Como conta António Pedro Correia, existe um furo a cerca de 5 metros da propriedade, com capacidade para extrair 70 m³ diários. A ANAS (Agência Nacional de Água e Saneamento) já disponibilizou o furo para os criadores da zona, mas falta a extracção. “Tenho um motor que posso colocar lá para extrair a água, mas a ANAS disse que tem de ser a Electra a tratar disso”. Já se passaram cinco meses e ainda estão à espera.

“Precisamos de mais água, encarecidamente”, afirma António Pedro Correia, sublinhando que não utilizam água da rede pública. A alternativa é “realizar um estudo para ver se conseguimos fazer mais furos aqui”.

Entretanto, para reduzir os custos dos factores de produção da indústria agropecuária, que são outro desafio, há planos na UPAPIT para avançar com energias renováveis. “Daqui a dois anos, se tudo correr bem, estaremos em condições de dar esse passo”, adianta António Pedro Correia, que gere a empresa juntamente com o pai, António Correia, e o tio, Orlando Dimas.

Outros desafios

Além da eterna questão da água, quem trabalha no sector primário enfrenta sempre outros desafios. As pragas são um deles, mas na UPAPIT, lagartas e gafanhotos, embora os haja sazonalmente, não são a principal praga. O seu combate, com apoio da INIDA é relativamente fácil comparado com o de outra praga que aflige os cultivos: as galinhas-do-mato.

Por estas bandas, são aos montes. “A maior praga, agora”, dizem em consonância o gerente e o coordenador do espaço, SamoraBarbosa, que nos acompanha.

“Já deixámos de produzir várias hortaliças por causa das galinhas-do-mato”, conta o coordenador.

Um outro é a mão de obra. Muitos emigraram, outros foram para outras empresas e, no geral, a maioria das pessoas foge do trabalho do duro sector primário. É um recurso, que, tal como a água, tende a escassear.

Acarinhar a terra

Actualmente, a empresa conta com 30 trabalhadores a tempo inteiro, incluindo cinco imigrantes. Um número insuficiente, principalmente em momentos sazonais como a época do corte da cana.

A visita ocorre precisamente num destes momentos. Até dia o 31 de Maio, manda a lei, a cana-de-açúcar deve estar toda cortada. Existe a possibilidade de um pedido de prorrogação, que se tenta evitar.

“Para isso, temos que contratar mais trabalhadores”, explica o gerente. Entretanto, para suprir as necessidades, contam com a interajuda de quem também está no ramo.

Nos campos de cana, encontramos Antonina Martins, amiga de António Correia e agricultora e proprietária agrícola na zona de Ribeira dos Picos (Santa Cruz), que veio com sete dos seus trabalhadores para apoiar a UPAPIT na colheita.

Também ela tem grandes plantações de cana e toda a sua vida foi dedicada à agricultura, seguindo os passos do pai e por amor a esta actividade, numa altura em que havia poucas mulheres. Hoje o cenário mudou.

“Há uns anos, só eu, Antonina, mas agora, em Santa Cruz, muitas mulheres trabalham na agricultura”, conta. “Precisam de trabalho, e não há trabalho noutras áreas e, além disso, os homens emigraram”, deixando o campo com um rosto mais feminino.

Lidera a equipa que se está a ocupar de um dos campos da UPAPIT, mas ainda há vários outros à espera do corte.

A conversa volta à falta de trabalhadores.

“Os jovens não querem saber da agricultura. Mas tudo começa na terra e temos de a acarinhar”, lamenta António Pedro Correia, apelo feito num país onde o envelhecimento rural e a migração têm deixado as lavouras mais silenciosas.

“Mesmo a indústria, se não tivermos terra e produção adequada, não se pode desenvolver”, alerta.

As políticas, contudo, não parecem alinhadas às necessidades do sector e dá alguns exemplos, que vão do elevado preço dos factores de produção, como a energia, às dificuldades de acesso à banca, bem como a burocracia e tempo exigidos para aceder a eventuais programas de apoio a empresas agro-pecuárias.

A mudança mais importante é, pois, a da mentalidade. “O caminho é a terra. A agricultura, a criação de gado, as pequenas indústrias de transformação. O turismo é importante, tem um retorno rápido, mas é perigoso, e a COVID mostrou isso”, observa.

E lastima que, apesar dos já longos anos de independência, o país continua dependente no essencial: “Não conseguimos produzir suficiente para comer.”
Por isso, insiste, há que voltar à terra e ao que ela nos dá.

Cinco mil ovos

Na UPAPIT, como o nome indica, não se faz só agricultura. Há muita cana, legumes, hortaliças e frutas, mas a pecuária é também um elemento central. Aliás, como já referido, a par com o grogue, os ovos são outro pilar da empresa.

Aqui, produzem-se cerca de cinco mil por dia, distribuídos por várias ilhas, ainda apenas para o mercado local, incluindo os principais supermercados da capital e alguns clientes no Fogo e Sal.

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É o suficiente para satisfazer esses mercados, mas não permite a entrada no sector turístico. Para tal, seria necessário um grande investimento e um modelo diferente de produção. É que se hoje as galinhas poedeiras estão no solo, numa abordagem que valoriza o bem-estar animal, a solução de escala passaria, eventualmente, pela produção em baterias. Um sistema que a Europa está a abandonar, precisamente por estar pouco alinhado com os direitos dos animais.

Neste momento, ponderam-se, pois, vários factores, com calma. Como diz António Correia, citando um amigo: “o menino não nasce a correr, é devagarinho”.

Além dos ovos, na pecuária, a UPAPIT tem alguns caprinos, poucos, e suínos, cujo negócio central é a venda de leitões.

A principal aposta é, contudo, a criação de bovinos. As quatro cabeças que encontrou aquando da aquisição da 11.11, em 2013, passaram para as actuais 80. As vacas são vendidas para o matadouro, onde se faz o desmanche e a revenda, e há também algum aproveitamento do leite.

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Agnalda Lopes, que trabalha na UPAPIT há quase dois anos. Aqui faz, com os produtos da unidade, aquilo que antes fazia em casa: “Desnato o leite, ponho a dormir, de manhã bato e tiro manteiga para cozinhar. O restante manda-se para Praia, para vender”, conta. Manteiga tradicional de terra, leite dormido e leite fresco. Antes, vendia ela própria esses produtos, de forma ambulante. Hoje dedica-se à “Casa do Leite” da UPAPIT.

Mas também nesta área se prepara um salto: produzir manteiga e queijo de forma industrial. Já foi adquirida a máquina de fazer manteiga e têm sido feitas experiências para avançar com o queijo de vaca ou mistura, curado e fresco.

Licença e marca para estes produtos derivados do leite já há: Monte Vaca.

Falta o T

A Unidade de Produção Agropecuária, Indústria e Turismo já faz muito do que o seu nome indica. Mas ainda falta o “T”, “a última fase.

No momento, prepara-se o espaço, para depois contactar as entidades certas e “entrar também no circuito turístico”, avança António Pedro Correia.

Comida não faltará: cuscuz, leite, fruta e tudo o que é produzido ali mesmo. “Os turistas, na ida para o Tarrafal, por exemplo, podem parar aqui, visitar, beber uma água de côco”, imagina.

Já se pensa num pequeno restaurante, alguns bancos pela propriedade, para descanso e pondera-se inclusive que os turistas possam participar da própria actividade agrícola ou pecuária.
Mais uma frente de uma empresa que, numa teimosia produtiva, insiste que, afinal, o caminho é mesmo a terra.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.

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Autoria:Sara Almeida,18 mai 2025 8:26

Editado porDulcina Mendes  em  18 mai 2025 11:59

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