Na sua análise, e falando na qualidade de “cidadão interessado que procura compreender o mundo”, Durão Barroso começou por destacar um lugar comum que importa repetir: o mundo “está muito polarizado, dividido, fragmentado, volátil, imprevisível e até perigoso”. Esta realidade é resultado de tendências de longo prazo que se agravaram nos últimos anos.
Na origem desta instabilidade, identificou três factores principais: a competição global entre as duas maiores potências (EUA e China); a pandemia da Covid-19, que expôs "a necessidade de repatriar ou de reaproximar as cadeias de abastecimento" e a Guerra da Ucrânia, que entende ser um ponto de viragem histórico. "Nada será o mesmo no mundo depois dessa invasão", afirmou.
Crises
O conferencista descreveu a guerra como uma tragédia que não afecta apenas a Ucrânia e a Rússia, mas também a Europa e o mundo, criando uma “crise global”.
“Queiramos, ou não, as crises na Europa têm um efeito global”, lembrou.
Há, neste momento, tropas norte-coreanas no centro da Europa, uma certa conivência da China para com a Rússia e houve já “transferência de armas do Irão para a Rússia”. Os países da NATO estão também todos implicados nesta guerra, que tem sido utilizada para a "mobilização do ressentimento contra o antigamente chamado Ocidente".
Entretanto, uma das "maiores vítimas desta guerra é o direito internacional", tanto na questão da invasão da Ucrânia pela Rússia, como em outras situações. Como exemplo, aponta a situação no Médio Oriente, com as Nações Unidas a "assistirem impávidas" devido ao bloqueio dos membros permanentes do Conselho de Segurança.
Assim, à crise do Direito Internacional junta-se a crise do multilateralismo. E esta,adverte, é particularmente grave para países pequenos e médios.
Estratégia para países pequenos
Ora, como cita, “na Europa, todos os países são pequenos. O problema é que alguns ainda não se deram conta disso”, pelo que, a seu ver, a Europa precisa da escala, que é dada pela integração europeia, permitindo que estes países mantenham influência no contexto global.
Articulada, e juntando todas as dimensões do poder, incluindo o soft power, aEuropa constitui, porém, o terceiro poder mundial, atrás dos EUA, “que continuam a ser a maior potência mundial” e China, “um grande challenger”. Neste contexto, sublinhou ainda o papel estratégico da Europa, que representa “o poder mais equilibrado, mais central”.
Partindo desta realidade, e com base nasua experiência de 22 anos na União Europeia e também das participações no G20, o ex-presidente da Comissão defendeu a necessidade dos pequenos países, como Cabo Verde, de "jogarem com as suas alianças e amizades". Nesse âmbito destacou, em particular, a parceria estabelecida entre Cabo Verde e a UE e a importância de uma cumplicidade “entre a Europa e a África".
Para o ex-presidente da Comissão Europeia, Cabo Verde tem conseguido ter “consistência e coerência no seu posicionamento”, junto com uma “notável resiliência”, qualidades que geram "credibilidade e confiança" - um "capital que está em grande falta no mundo".
O factor Trump
Voltando às causas de o mundo estar como está, Durão Barroso mencionou a reeleição de Donald Trump, reconhecendo-o como um “great disruptor”.
“Também no futuro vai haver uma história das democracias antes e depois de Trump”, observou, acrescentando que “Trump mudou aquilo que chamo a gramática de aceitabilidade do discurso político”, dizendo o que não era dito na esfera pública.
Apesar dos comportamentos "pouco diplomáticos", Trump teve "um sucesso político notável" e influenciou a forma de fazer política globalmente, mesmo entre críticos.
Mais uma vez, nada será como dantes.
Cada vida
Por fim, insistindo na questão do multilateralismo e o desenvolvimento, o conferencista criticou a retórica do “Sul Global” como conceito mobilizador, argumentando que este agrupa realidades demasiado diversas: “Não me parece que possamos colocar no mesmo capítulo países tão distintos.”
O risco, alertou, é a criação de uma “mobilização do ressentimento” contra o chamado Norte Global, o que considera um equívoco. “Se vamos para um mundo mais fracturado entre Norte e Sul, não resolvemos nenhum dos nossos problemas, incluindo o problema-chave, que é o do desenvolvimento.”
Na sua visão, o foco da cooperação internacional deveria ser o desenvolvimento humano. Relatou, a este propósito, a sua experiência recente na GAVI (Aliança Global para Vacinas), lamentando o recuo dos Estados Unidos na ajuda à vacinação global.
Na mensagem final, Durão Barroso sublinhou a necessidade de superar visões estatísticas da humanidade, defendendo uma abordagem mais centrada na pessoa: “Quando falamos de humanidade, não podemos estar a pensar na humanidade como categoria abstracta. Temos de pensar em cada homem, cada mulher, cada criança.”
Cada criança que morre em África por falta de vacinas representa, nas suas palavras, uma ferida para toda a humanidade, pelo que apelou a uma união global em torno desta prioridade.
O ex-líder europeu terminou elogiando o papel que Cabo Verde pode ter "dando o seu exemplo de democracia e de país independente capaz de defender estes valores".
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Uma “África mais unida, mais institucionalizada”
À margem da conferência, entrevistado pelos jornalistas, Durão Barroso defendeu que África poderia ter um peso maior no cenário internacional se conseguisse maior unidade e institucionalização. Para o antigo presidente da Comissão Europeia, a União Africana continua excessivamente dependente dos interesses nacionais – ou mesmo presidenciais – dos seus membros, funcionando como uma organização “intergovernamental”, sem capacidade real de afirmação como bloco. Por isso, sublinhou, é urgente “uma África mais unida, mais institucionalizada”. Uma África mais forte, disse ainda, estaria em melhores condições para dialogar e cooperar com a Europa — que, afirmou, “deve dar maior prioridade à África”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.