Férias em frente do ecrã: Que impactos na saúde das crianças?

PorSheilla Ribeiro,19 jul 2025 9:50

Durante as férias escolares é comum que as crianças passem mais tempo a brincar. Entretanto, muitos pais trabalham nesse período e nem sempre conseguem levar os filhos a passear ou a brincar ao ar livre, ou não podem suportar os custos de uma colónia de férias. Como resultado, os mais pequenos acabam por passar o Verão diante da televisão ou ao telemóvel. Mas como a troca de brincadeiras ao ar livre por horas em frente aos ecrãs impacta a saúde das crianças?

Antes de responder a esta questão, vamos dar o exemplo de um caso concreto. Janete Reis é mãe de uma menina de sete anos. Ao Expresso das Ilhas, esta mãe admite que o tempo que a filha passa a ver televisão ou ao telefone durante as férias é uma preocupação.

“Geralmente a minha filha passa as férias em frente à TV e come constantemente. Sente fome a toda a hora quando não tem muito que fazer”, relata.

Janete trabalha por conta própria, razão pela qual raramente tira férias e quando o faz, viaja para fazer compras para abastecer o negócio. Assim, por vezes tenta proporcionar à filha alguns passeios, sobretudo nos finais de semana, mas quase sempre a pequena permanece em casa.

“Por ser uma preocupação já limitei muito o tempo que ela passa ao telefone. Mas, limitar a televisão fica mais difícil, sobretudo o YouTube porque se eu fechar a TV ela queixa-se de ficar aborrecida, fica sempre a reclamar e isso acaba por me deixar stressada. Por isso, cedo, mais do que devia”, reconhece.

Viver num apartamento e a ausência de outras crianças nos arredores também são factores que dificultam alternativas ao entretenimento digital, conforme a mãe.

“O pior é quando a mando brincar com bonecas e ela refuta que quer brincar com outras crianças. As vezes até a levo à casa da minha mãe aos finais de semana, mas não posso fazer isso sempre e ela acaba por ficar mais tempo no sofá”, acrescenta.

Janete afirma que já se notam os impactos físicos e no desempenho escolar desta rotina. “Por vezes a minha filha queixa-se de dores no pescoço e nos olhos. A nível do comportamento, não noto agressividade, mas ela imita muito o que vê, as danças, os hábitos alimentares menos saudáveis. Quer sempre comer hambúrguer, pizza e milkshake”, exemplifica.

Outra consequência directa é o aumento de peso. “Quanto mais tempo dentro de casa, mais ela come. Está sempre a procurar comida e sempre pede para fazer as receitas que vê outras crianças no YouTube reproduzir”, aponta.

A mãe lembra que nas férias do verão do ano passado a rotina da filha foi ficar em casa a assistir televisão e quando regressou à escola tinha regredido na leitura e na escrita.

“Posso dizer que 'desaprendeu'. Quando regressou ao segundo ano, não conseguia ler bem nem escrever. Até a professora se queixou da turma toda, porque ao que parece toda a turma ficou da mesma forma”, narra.

Para este ano, Janete está determinada a fazer diferente. “Não quero deixá-la sem estudar nas férias. O problema é que na zona onde moramos não há colónias de férias, pelo menos nenhuma perto e eu não posso deixar tudo por muito tempo. Mas prometi a mim mesma que vou arranjar tempo”, compromete-se.

Consequência 1: má postura

Segundo a fisioterapeuta Danilda Cardoso, a exposição prolongada a dispositivos electrónicos e a falta de actividade física estão a contribuir para um aumento de problemas posturais em crianças e adolescentes.

A especialista relata que há cada vez mais jovens com queixas de dores nas costas, dores no pescoço e ombros, resultantes de hábitos posturais inadequados.

“A cervicalgia, que é a dor no pescoço, tornou-se comum devido à postura incorrecta ao olhar constantemente para baixo. Também observamos casos de escoliose associados ao uso inadequado de cadeiras e mesas, sobretudo quando não há um suporte adequado para a coluna”, explica.

Danilda Cardoso acrescenta que entre os principais problemas identificados estão também a dor lombar, provocada por sentar-se de forma curvada ou sem apoio lombar, e a tensão nos ombros.

Embora não seja uma consequência directa da postura, a fadiga ocular também tem influência.

“O esforço excessivo para focar o ecrã pode levar a criança a inclinar-se demasiado para a frente, o que afecta a posição do corpo”, explana.

A fisioterapeuta reconhece que, embora ainda não haja um número elevado de crianças a procurar fisioterapia por estas razões, já se começa a observar alguns casos.

“Temos jovens a fazer pilates e fisioterapia devido a dores nas costas e má postura”, refere.

Conforme a especialista, além do desconforto imediato, o desenvolvimento estrutural das crianças pode ser comprometido.

“A falta de actividade física e a má postura podem levar a alterações na estrutura óssea e muscular”, sublinha.

Os sinais de alerta incluem dificuldade em realizar movimentos básicos como correr, pular ou agachar, desvios posturais visíveis (ombros caídos, cabeça inclinada para a frente ou curvaturas anormais da coluna), cansaço excessivo após actividades leves e desinteresse por actividades físicas.

Para prevenir estas situações, a fisioterapeuta defende que é fundamental o envolvimento dos pais e educadores.

“É importante incentivar pausas regulares, a prática de exercícios físicos e a adopção de posturas correctas ao utilizar dispositivos electrónicos. Isso contribui para o fortalecimento muscular, maior flexibilidade, mobilidade e consciência corporal”, recomenda.

Entre as actividades físicas benéficas para a saúde postural de crianças e adolescentes, Danilda Cardoso menciona a natação, dança, desportos como futebol, basquetebol e andebol, musculação, ioga, pilates e artes marciais.

No entanto, sublinha que estas práticas devem ser sempre realizadas com supervisão e orientação adequadas.

Consequência 2: alteração dos hábitos alimentares

Não é apenas a postura que sofre alterações. De acordo com a nutricionista Janete Évora, os hábitos alimentares das crianças também mudam e muitas vezes com impacto negativo a curto e longo prazo.

“As férias são sempre associadas à falta de rotina e essa desorganização faz com que as refeições aconteçam em horários variados, o que incentiva muito o petiscar constante ao longo do dia”, afirma.

A especialista ressalta que o consumo de frutas tende a diminuir nesse período, ao passo que aumenta a ingestão de refrigerantes, doces, fast food e outros alimentos industrializados, frequentemente presentes em festas e saídas em família.

“Há uma sensação de liberdade que mexe com a rotina alimentar e afecta os nossos circuitos cerebrais. As crianças passam de uma organização imposta pela escola para um certo caos diário”, explica.

Janete Évora reforça que o tempo excessivo em frente à televisão, telemóveis ou tablets também influencia negativamente as escolhas alimentares.

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“As crianças são alvos fáceis da publicidade de alimentos e bebidas ultraprocessadas, que dominam os anúncios nas plataformas digitais. Isso gera desejos frequentes por esses produtos e pressiona os pais a comprá-los”, esclarece.

Para além do consumo, a exposição à luz das telas interfere com o sono e desregula os hormónios da fome e da saciedade, o que favorece ainda mais os episódios de ingestão alimentar fora de hora.

“Mais tempo de ecrã traduz-se muitas vezes em mais petiscos e menos interação social nas refeições, com cada membro da família isolado no seu dispositivo” sublinha.

Com menos brincadeiras, menos movimento, associado à alimentação inadequada, o peso tende a aumentar. Segundo a nutricionista, o tédio e a ociosidade também levam ao consumo emocional de alimentos ricos em açúcar e gordura.

A médio prazo, explica, as crianças com excesso de peso têm maior probabilidade de desenvolver diabetes tipo 2, colesterol elevado, hipertensão, problemas ortopédicos e distúrbios emocionais.

“O excesso de peso na infância compromete a autoestima e a saúde mental. A longo prazo, aumenta o risco de doenças cardíacas, certos tipos de cancro e até problemas hormonais, como ovário poliquístico nas raparigas”, refere.

Janete Évora sugere aos pais reservarem um dia por semana para planearem as refeições e preparar frutas e lanches saudáveis com antecedência.

“Se estiverem já lavadas e cortadas, as crianças têm mais facilidade em consumi-las”, reforça.

Outra forma de envolvê-las é transformar a alimentação em momento de partilha. “Convidá-las a participar na escolha dos alimentos, no preparo das refeições ou até criar jogos com os menus da semana: ajuda a despertar o interesse. Elas sentem-se incluídas e tornam-se mais abertas à alimentação saudável”, garante.

A nutricionista reforça que se as crianças verem os pais a comer frutas também o farão. Da mesma forma, se os progenitores passam o dia agarrados ao telemóvel, também vão querer fazê-lo.

“É preciso assumir essa responsabilidade. Temos filhos, temos essa responsabilidade com eles e com o futuro deles. Limitar o tempo de ecrã não é uma brincadeira, é uma medida de saúde”, ressalta.

Desenvolvimento da linguagem, dificuldade de socialização, entre outros

Segundo o pediatra Heriberto Arencibia, a rotina sedentária pode trazer consequências desde a obesidade até perturbações no desenvolvimento físico e emocional.

“As principais consequências de uma rotina sedentária durante as férias são, fundamentalmente, a obesidade, que pode originar também transtornos vasculares do sistema nervoso e no desenvolvimento da criança”, indica.

“Com as férias, há uma quebra acentuada de actividades físicas, o que contribui para alterações vasculares, risco de hipertensão e até casos de diabetes associados à resistência insulínica”, explica.

Além disso, refere que estas crianças podem ter mais dificuldades de socialização com os seus pares.

Heriberto Arencibia revela ainda que têm sido observados alguns casos clínicos ligados a estas consequências do sedentarismo infantil. “Temos crianças que desenvolvem quadros de obesidade, o que afecta também o seu desenvolvimento físico e mental. Uma criança obesa pode enfrentar dificuldades em brincar com outras, e isso pode estimular sentimentos de tristeza, isolamento e até depressão”.

Quanto aos sinais de alerta, o pediatra aconselha os pais a estarem atentos a mudanças no comportamento alimentar e social dos filhos.

“Crianças que comem em excesso, especialmente alimentos ricos em carboidratos, rejeitam frutas e vegetais, e evitam o convívio com outras crianças”, diz.

O uso excessivo de dispositivos pode prejudicar o desenvolvimento da linguagem, dificultar a socialização e levar a hábitos alimentares menos saudáveis, conforme o médico.

Como alternativas saudáveis ao tempo passado diante dos ecrãs, o pediatra recomenda actividades recreativas simples, caminhadas em família, leitura de livros físicos e até banhos de mar.

“São formas de manter as crianças activas e afastadas do uso excessivo de tecnologias, promovendo o seu desenvolvimento de forma equilibrada”, considera.

Finalmente, sobre como impor limites no uso de tecnologias sem gerar conflitos, o especialista aconselha diálogo e afecto.

“Os pais devem falar com carinho, estabelecer regras claras e incentivar outras actividades. É importante que a criança compreenda os benefícios dessas escolhas e não sinta a restrição como uma punição”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,19 jul 2025 9:50

Editado porDulcina Mendes  em  19 jul 2025 23:22

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