Constitucionalidade do ALUPEC posta em causa

PorAndré Amaral,27 set 2025 8:22

O recente lançamento do manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana, destinado ao ensino secundário, trouxe de volta à discussão pública uma questão central: a constitucionalidade do Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano (ALUPEC) e a forma como o Estado regula a língua materna. As críticas não se limitam ao conteúdo pedagógico do manual, mas abrangem a legalidade da padronização da escrita do crioulo, envolvendo académicos, juristas e instituições públicas.

A controvérsia surge num contexto histórico já marcado por debates sobre identidade linguística e política educativa.

Desde a criação do ALUPEC, em 1998, como sistema gráfico oficial, a sociedade cabo-verdiana enfrenta o desafio de conciliar diversidade dialectal e unidade na escrita. O manual, recentemente disponibilizado, reacendeu antigas discussões e expôs novas preocupações jurídicas, científicas e sociais.

Inconstitucionalidade segundo Olavo Freire

O advogado Olavo Freire destaca que o ALUPEC pode apresentar inconstitucionalidade formal, por ter sido instituído através de um decreto-lei do poder executivo e não por deliberação da Assembleia Nacional.

Segundo o jurista, matérias de identidade nacional, como a língua, têm dignidade constitucional e deveriam ser legisladas pelo parlamento, garantindo um processo democrático e representativo. A adopção do ALUPEC por decreto-lei, argumenta Freire, configura um vício de procedimento legislativo, ainda que o conteúdo em si não seja inválido.

Além disso, Freire alerta para a inconstitucionalidade material, que diz respeito ao conteúdo da norma. Ele explica que qualquer lei ou acto administrativo que viole princípios constitucionais, como a protecção da diversidade linguística ou o direito à identidade cultural, pode ser considerado inconstitucional. A sua análise sugere que a padronização do crioulo sem ampla consulta e participação da sociedade pode ser entendida como uma violação do princípio da reserva de lei parlamentar e dos direitos culturais consagrados na Constituição.

O advogado sublinha que discutir o ALUPEC na Assembleia Nacional permitiria um debate mais aprofundado e plural, com a participação de diferentes partidos políticos, académicos e sociedade civil. Tal processo garantiria que qualquer decisão sobre a escrita do crioulo seja tomada com legitimidade e representatividade, reflectindo a importância do tema para a coesão social e preservação cultural.

Perspectiva académica

A linguista Dulce Lush, sublinhou em entrevista ao Expresso das Ilhas que o ALUPEC deve ser entendido apenas como uma proposta ortográfica, concebida no âmbito da investigação científica. Segundo afirmou, trata-se de uma ferramenta pensada para criar um sistema unificado de escrita, mas que não corresponde a uma norma definitiva nem deve ser confundida com políticas educativas já em prática.

Na sua perspectiva, o ALUPEC é um instrumento científico válido, mas carece de avaliação contínua e de revisão periódica, de forma a corrigir limitações e adaptar-se às necessidades de Cabo Verde. Lush reconheceu que a forma como a proposta foi aprovada e implementada levanta também questões de constitucionalidade, uma vez que o processo não contou com debate parlamentar aprofundado. Essa situação gera dúvidas quanto à sua legitimidade formal e material, colocando em evidência a necessidade de maior transparência e participação democrática.

Noutro plano, a académica abordou de forma crítica o “Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana”, introduzido no ensino secundário realçando que o documento foi elaborado por uma equipa constituída exclusivamente por linguistas, sem contributos de outras áreas essenciais como a pedagogia, a didáctica ou as ciências sociais. Essa limitação, apontou, compromete a qualidade e a aplicabilidade prática do manual.

Lush destacou ainda que a publicação apresenta uma norma pandialetal que, apesar de procurar representar as várias variantes do crioulo, não corresponde a nenhuma em particular. Essa opção, alertou, pode gerar dificuldades acrescidas na aprendizagem, já que os alunos deixam de se reconhecer na língua ensinada. Para a investigadora, essa distância entre o modelo do manual e a realidade linguística quotidiana pode afectar tanto a eficácia pedagógica como a valorização da língua materna.

Na sua análise, é fundamental que a política linguística cabo-verdiana seja construída de forma participativa e inclusiva, envolvendo linguistas, professores, especialistas de diferentes áreas e a sociedade em geral. Só assim será possível criar instrumentos eficazes, respeitadores da Constituição e capazes de responder às expectativas da comunidade escolar e da população em geral.

Para além da controvérsia pedagógica ou académica

O Bastonário da Ordem dos Advogados, Júlio Martins Júnior, destacou que a questão do manual não se resume a uma mera controvérsia pedagógica ou académica, mas envolve aspectos de legalidade e constitucionalidade que não podem ser ignorados.

A intervenção da Ordem resultou directamente de um pedido apresentado pelo Escritor e Poeta José Luís Tavares, que manifestou publicamente preocupações quanto à conformidade legal do Manual e do enquadramento do ALUPEC no sistema de ensino.

Segundo o Bastonário da Ordem dos Advogados, José Luís Tavares terá solicitado à Ordem que analisasse a situação do ponto de vista jurídico e, se necessário, recorresse a instrumentos legais para suspender a utilização do manual. O pedido foi considerado relevante pela OACV, uma vez que tocava em matérias de grande sensibilidade: pelo facto da nossa língua materna ser um elemento de soberania nacional, a necessidade da sua protecção, a preservação da identidade cultural e o respeito pelo princípio da legalidade em actos administrativos do Estado.

Em resposta, a Ordem mobilizou uma equipa de juristas para avaliar a questão, tendo concluído que existiam fundamentos suficientes para considerar que a aprovação e utilização do manual poderiam configurar ilegalidade, tanto por potenciais vícios formais — como a falta de competência legislativa do Governo para regulamentar a matéria através de decreto-lei —, como por possíveis vícios materiais, relacionados com a imposição de uma norma escrita que poderia colidir com a diversidade cultural e linguística protegida pela Constituição.

Júlio Martins Júnior salientou que a Ordem, no cumprimento da sua função em defesa do Estado de Direito Democrático, não poderia ignorar a solicitação recebida. Nesse sentido, decidiu preparar uma participação à Procuradoria-Geral da República, recomendando a suspensão imediata do manual e uma análise detalhada da sua legalidade. Esta iniciativa visou não apenas defender a constitucionalidade e a legalidade, mas também assegurar que qualquer política linguística em Cabo Verde fosse construída de forma participativa e transparente.

O Bastonário explicou ainda que a actuação da Ordem dos Advogados não deve ser vista como uma ingerência em matérias pedagógicas, mas sim como uma acção de defesa da segurança jurídica e da confiança pública. Para Júlio Martins Júnior, “quando a legalidade de um acto do Estado é questionada por cidadãos ou instituições, cabe à Ordem avaliar e, se necessário, intervir, garantindo que os princípios constitucionais sejam respeitados e que os direitos culturais da população não sejam postos em causa”.

Acção legal

O escritor José Luís Tavares, preocupado com a legalidade do Manual, solicitou apoio jurídico à Ordem dos Advogados, que preparou uma participação dirigida pelo Poeta à Procuradoria-Geral da República. O objectivo foi recomendar a suspensão imediata do manual e a revisão do seu conteúdo para garantir conformidade com a Constituição e legislação em vigor.

A medida incluiu a possibilidade de acções judiciais, caso não houvesse resposta administrativa célere, como a impugnação do acto de aprovação ministerial ou a solicitação de providência cautelar, protegendo o interesse público, a língua e a identidade cultural.

O Ministério Público emitiu parecer recomendando a supressão do manual do sistema de ensino, respondendo parcialmente às preocupações legais e pedagógicas. A acção do Estado, segundo observadores, demonstra a complexidade de gerir políticas linguísticas e educacionais em contextos de diversidade dialectal.

O lançamento do Manual e a polémica subsequente mostram que a protecção e promoção da língua cabo-verdiana não é apenas uma questão pedagógica, mas também constitucional e cultural. Entre críticas, defesas académicas e orientações jurídicas, o debate reafirma a centralidade do crioulo como património cultural e como fundamento da soberania nacional.

Especialistas concordam que é necessário um processo participativo, com ampla consulta social, articulação entre ministérios, acompanhamento científico e revisão periódica do ALUPEC, garantindo que o ensino reflicta a realidade linguística do país e respeite os direitos constitucionais.

O desafio permanece: conciliar diversidade dialectal com a necessidade de uma norma escrita funcional, assegurando a valorização e a diversidade da língua materna sem comprometer a coesão social e a legitimidade institucional.

Contexto histórico e político

A discussão sobre o ALUPEC e a padronização da escrita do crioulo não é recente. Desde a década de 1970, linguistas estudam formas de transcrever o crioulo de forma sistemática, reflectindo a diversidade fonética das variantes regionais. Nos anos 90, a necessidade de uma norma comum tornou-se premente, especialmente para a produção literária e a política educativa.

Em 1998, o governo aprovou formalmente o ALUPEC, estabelecendo um referencial gráfico oficial. No entanto, desde então, a implementação prática enfrentou resistências e controvérsias, muitas vezes ligadas à recepção social, à adequação pedagógica e à representatividade de variantes minoritárias.

A criação da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana, em 2022, pelo Decreto-Lei n.º 28/2022, visava adoptar uma abordagem descritiva, inclusiva e contrastiva, respeitando a diversidade linguística. O manual recente, contudo, introduz uma norma escrita que, segundo críticos, se afasta das convenções do ALUPEC e pode gerar confusão entre os alunos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

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Autoria:André Amaral,27 set 2025 8:22

Editado pormaria Fortes  em  27 set 2025 17:20

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