INPS e profissionais das artes: Entre desafios e ganhos

PorDulcina Mendes,26 out 2025 12:05

A segurança social ainda é um desafio para muitos artistas cabo-verdianos, que, embora contribuam significativamente para a cultura nacional, muitas vezes ficam à margem dos sistemas de protecção formal. A ligação entre o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e os profissionais das artes tem ganhado visibilidade nos últimos anos, com iniciativas que visam integrar os artistas no regime contributivo e garantir direitos como pensão, assistência médica e subsídios de doença e maternidade. Apesar dos avanços, a maioria dos artistas continua a trabalhar de forma informal, sem contratos nem enquadramento legal, o que dificulta o acesso a direitos básicos de protecção social. O Expresso das Ilhas, esteve em conversa com alguns artistas, para perceber até que ponto o sistema pode, ou não, responder às suas necessidades.

O artista multidisciplinar Djam Neguin não está inscrito no INPS como contribuinte, porque viaja muito devido a compromissos artísticos internacionais, mas quando está em Cabo Verde, o tempo é sempre escasso e fragmentado.

“As demandas do sector cultural, que é marcado por ritmos irregulares e alta mobilidade, muitas vezes não se encaixam nos modelos administrativos clássicos. Isso acaba por adiar indefinidamente processos que requerem presença física e disponibilidade de tempo para tratar de burocracias”, conta.

Desafios

Em relação aos desafios que encontram para se manter regularizado no sistema, Djam Neguin disse que são muitos, e um deles é a falta de flexibilidade do sistema em relação às especificidades do trabalho artístico.

“Não existe, por exemplo, um modelo que acomode bem trabalhadores intermitentes, criadores independentes ou freelancers. Além disso, as exigências administrativas são pouco adaptadas a quem trabalha por projecto, sem um vínculo mensal fixo nem empregador definido”, indica.

Além disso, o artista refere que também identificou um problema de comunicação e acesso à informação que tem que ver com os procedimentos não explicados de forma clara ou acessível para pessoas com diferentes níveis de literacia administrativa e digital. “Há uma linguagem técnica, distante, que desencoraja o engajamento. Sugiro que pensem a comunicação”.

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Djam Neguin considera que o sistema actual de previdência social não está adaptado à realidade do trabalho artístico.

O sistema actual parece desenhado sobretudo para trabalhadores com vínculos laborais formais e contínuos, o que está bastante distante da realidade de muitos artistas, especialmente os que actuam de forma independente. O sector cultural é por natureza sazonal, fluido e muitas vezes informalizado”, assegura.

O artista multidisciplinar acrescentou que há uma enorme diversidade de formas de trabalho, de rendimento e de organização, e o sistema ainda não criou respostas específicas que reflitam essa complexidade. “Falta-lhe elasticidade, e isso contribui para uma exclusão prática de muitos trabalhadores da cultura”.

Por outro lado, conta que já sentiu falta do apoio do INPS em momentos de necessidade. “Houve momentos em que tive problemas de saúde durante ou depois de projectos intensos e, como não estou coberto pelo INPS, tive de recorrer a soluções de emergência, muitas vezes informais, ou arquei com todos os custos sozinho. Isso gera uma sensação de vulnerabilidade”.

Apesar de se sentir bem informado sobre os direitos e deveres enquanto trabalhador da cultura perante o INPS, Djam Neguin acha que falta ainda uma abordagem mais acessível e pedagógica.

“Muitas vezes, o atendimento é técnico demais, pouco sensível às realidades específicas do sector cultural. Acho que seria importante desenvolver materiais mais didáticos, interactivos ou mesmo campanhas visuais que falem directamente com a classe artística (se existem, não os conheço)”, assegura.

Mudança

Sobre o tipo de mudanças que gostaria de ver implementado no sistema para beneficiar os artistas, Djam Neguin aponta o surgimento de um regime contributivo especial adaptado à realidade dos artistas e trabalhadores culturais.

“Isso incluiria: contribuições flexíveis baseadas em rendimentos por projecto ou por períodos específicos (e não mensais fixos); regimes intermitentes que permitam pausas sem penalização; plataformas digitais intuitivas que facilitem o registo e a gestão da contribuição; campanhas de literacia previdenciária específicas para o sector cultural; benefícios sociais proporcionais à contribuição, mesmo que simbólica, como acesso a cuidados básicos de saúde ou subsídios emergenciais”, destaca.

Contribuição

Djam Neguin frisa que muitos artistas, mesmo com rendimentos baixos, estariam dispostos a contribuir de forma simbólica se sentissem que o sistema reconhece e respeita as suas condições.

“Um modelo interessante poderia ser uma contribuição trimestral com base na autodeclaração de rendimento, com escalões ajustáveis e sem sanções para pausas. Este modelo já existe em algumas economias culturais do Sul Global”, garante.

Além disso, sugeriu que o Estado poderia co-financiar parte das contribuições dos artistas reconhecidos como activos no sector, como uma forma de valorização do investimento público na cultura.

Luís Firmino

O músico Luís Firmino, natural de São Vicente, disse que ainda não está inscrito no INPS, porque veio recentemente viver em Cabo Verde, mas que está a tratar da sua inscrição no INPS. “Estou a tratar da minha inscrição nas finanças para depois estar inscrito no INPS”.

Para o artista mindelense, todos os músicos deveriam estar inscritos no INPS, para dar a sua continuação. “Acho que todos nós músicos devemos nos inscrever no INPS, para termos algum apoio do Estado, porque a nossa profissão é um pouco incerta. Para termos algum apoio e alguma segurança”.

Luís Firmino é da opinião que artistas são profissionais como outros. “Hoje em dia o músico é uma profissão, antigamente não era bem visto como profissão”.

“Estou inscrito na segurança social, em Portugal, mensalmente pago à segurança social, para um dia poder beneficiar da reforma e de algum apoio que o Estado Português oferecer. Estou de acordo que devemos estar assegurados”, sublinha.

Zuleica Barros

A cantora Zuleica Barros, de nome artístico Zulu Barros, disse que não está inscrita no INPS, porque como artista tinha que criar a sua própria empresa no regime REMPE, para depois proceder à inscrição. “Com empresa já criada, a inscrição será o próximo passo”.

Sobre os desafios que encontra para se manter regularizada, a cantora aponta que são diários. “Todos os pagamentos passam pelo e- Fatura, com descontos sob o artista consoante o regime no meu caso o REMPE (Regime Especial das Micro e Pequenas Empresas), que se sobrepõe ainda ao desconto que a firma contratante e empregadora terá de efetuar – o IVA e descontos contratuais. O artista fica neste ponto numa posição fragilizada. Sendo que o artista não é uma organização como as outras”.

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Em relação às mudanças que gostaria de ver implementadas no sistema para beneficiar os artistas, Zulu destaca que o artista sofre bastante das flutuações e não tem estabilidade.

“Pelo que acções mais tolerantes e adaptadas deveriam ser agilizadas neste aspecto. Tratam o artista como uma organização e o artista na maioria das vezes ultrapassa desafios enormes para se manter e ao mesmo tempo conseguir lidar com todas as obrigações”, aponta.

Por outro lado, considera ser necessário uma contribuição simbólica por parte dos artistas. “Considero viável e necessária. Para garantia de assistência hospitalar, direitos dos parentes directos, reforma e outros(...). Mas não é o mesmo modelo que empresas normais. Poder-se-ia, por exemplo, estabelecer prazos e/ou pacotes trimestrais de modo a acompanhar as flutuações e os períodos sazonais dos trabalhos artísticos.

Beto Diogo

Beto Diogo é um mestre-artesão com muitos anos de experiência na área de artesanato e com vários projectos desenvolvidos. Relata que está inscrito no INPS como contribuinte.

“Desde que pertencia às Aldeias SOS, tenho o meu regime contributivo e estou inscrito no INPS. O regime contributivo é uma garantia para o artista. Inclusive, quando a Covid veio, nos deu algum exemplo, e quando precisas de algum apoio quando estás doente, beneficiamos com algum medicamento”.

Beto Diogo conta que no seu caso teve problemas de saúde, mas que por ser contribuinte teve acesso aos tratamentos. “Tive um problema de saúde, e fui evacuado. Como estava inscrito no INPS, fui para Portugal, tudo com base no INPS”.

O artesão disse que tem uma microempresa, um atelier, por isso está na situação de REMPE. “Estar a descontar enquanto artista, para no futuro ter os benefícios, sobretudo no momento da reforma”.

Sobre o montante que é descontado, Beto Diogo assegura que é justo, porque ele é feito de acordo com o vencimento que cada um declara.

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Estatuto do Artista aprovada no Conselho de Ministros

O Ministro do Estado, da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social, Fernando Elísio Freire, assegurou, numa conferência de imprensa sobre o balanço da Reunião do Conselho de Ministros do dia 29 de Julho de 2025, que esta proposta formaliza “uma parte importante da nossa economia”, uma vez que “estabelece o regime aplicável à respectiva inscrição junto do Instituto Nacional de Previdência Social e correspondente regime de proteção social, bem como regime fiscal”.

“A Lei que estamos a propor ao Parlamento valoriza a arte e os artistas e é, sobretudo, o reconhecimento profissional do criador e produtor, porque permite o acesso à previdência social, ou seja, a inscrição no Instituto Nacional de Previdência Social e, consequentemente, assistência médica, assistência medicamentosa, bem como um relacionamento claro, previsível e definido com a autoridade fiscal”, relata o Ministro.

A proposta também “consagra a obrigatoriedade de as pessoas singulares ou colectivas apenas poderem contratar profissionais, criadores e produtores de arte e cultura que se encontrem devidamente inscritos” e os “enquadra” no regime jurídico especial das micro e pequenas empresas, “o que lhes vai promover ou proporcionar um ambiente favorável para a criação, formalização, desenvolvimento e competitividade”.

Estabelece um regime fiscal especial do profissional criador e produtor de arte e cultura, que é basicamente através da aplicação, de uma forma direccionada, do regime especial das micro e pequenas empresas.

E também prevê o reconhecimento do profissional através da declaração do artista e do cartão do artista, tendo em conta a sua valorização profissional.

“Na proposta de Lei, o Governo materializa uma das suas promessas, que era a de fazer o incentivo à importação de equipamentos musicais, aparelhos e acessórios, bem como de outros bens afectos exclusivamente à utilização e actividade profissional da arte e cultura, que são comprovadamente fabricados fora do território nacional, nomeadamente através da isenção do IVA e dos direitos aduaneiros”, disse o Ministro.

Depois deste passo, a proposta deverá ser apresentada em sede da Casa Parlamentar para um amplo debate e aprovação.

Segundo o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, o Estatuto do Artista é um instrumento importante e que irá permitir formalizar e dar maior dignidade para todos os que trabalham no sector da cultura.

“A lei será extremamente importante para a dignificação da classe artística com os seus direitos e deveres bem explanados. Para além da dignificação da classe, teremos também maior valorização. A partir do momento que estiver formalizado, o sector terá maior força e respeito”, afirmou o Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas em Abril deste ano, após a última socialização pública do documento.

De recordar que desde 2018 que o Ministério da Cultura vem promovendo uma discussão e debate em torno da criação de uma proposta de lei para a criação do Estatuto do Artista, a iniciar com conversas abertas, em diferentes espaços públicos para recolha de subsídios, de artistas, criadores, sociedade civil e entidades gestoras de direitos de autor e direitos conexos.

O Ministério da Cultura lembrou que em 2022, a proposta de lei, tanto nas redes sociais como nos espaços físicos geridos pela tutela, ao mesmo tempo iniciou conversas abertas para a apresentação pública da proposta de lei com a classe artística, entidades gestoras de direitos de autor e conexos e sociedade civil, nas ilhas de Santiago, São Vicente, Santo Antão, Sal, Boa Vista e com transmissão on-line.

A última socialização aconteceu em Maio deste ano, e foi destinado aos deputados, classe artística, entidades de gestão de direitos de autor e conexos, instituições públicas (INPS, Ministério Finanças, IGQPI).

A proposta de Lei aguarda ainda a data para ser encaminhada ao Parlamento. Conforme o Ministério da Cultura, provavelmente será apresentada na Casa Parlamentar, na sessão do mês de Novembro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1247 de 22 de Outubro de 2025.

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Autoria:Dulcina Mendes,26 out 2025 12:05

Editado porSheilla Ribeiro  em  28 out 2025 12:19

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