Mas o que é, afinal, tráfico de pessoas? A história de C. serve para perceber a complexidade do conceito deste crime, que integra elementos legais muito próprios. Aconteceu muito antes da única condenação em Cabo Verde. Há mais de 40 anos, mas poderia ser hoje. Situações semelhantes ainda se repetem.
Quem nos conta o sucedido é J., que cresceu a ouvir o choro da mãe pela irmã, que nascera antes dele.
Era essa mãe ainda jovem, quando teve um relacionamento romântico com um imigrante guineense. Da relação nasceu uma menina, C.. Quando a criança tinha cerca de dois anos, o pai pediu à mãe que autorizasse a sua ida à Guiné-Bissau para conhecer os familiares. A mãe não queria. Rejeitou a ideia. Sucederam-se várias ameaças, inclusive a de que, se chegasse à Guiné sozinho, faria macumba para que nem a mãe ficasse com a menina.
As ameaças não paravam e, com medo, a própria avó materna convenceu-a a deixar ir a criança. Os documentos de viagem foram assinados, pai e filha viajaram e começou o calvário da mãe que durante décadas não voltaria a ver C.
Souberam que o homem, oriundo de uma zona perto de Casamansa, levara a criança para o Senegal onde lhe fez um novo registo, com novo nome e sem qualquer referência à sua origem cabo-verdiana. Depois, criou a menina num vilarejo muçulmano, isolado e violento, “sem direitos, sem nada.” C. nunca foi à escola, nem aprendeu outra língua que não o dialecto da zona, conta o irmão, desgostoso. Um dialecto que, conforme também relata, é usado por muito pouca gente.
Antes de chegar à maioridade, já o pai “a oferecera em casamento a um senhor muito mais velho”, ao qual exigiu que nunca permitisse contacto com a família de Cabo Verde. O marido cumpriu a promessa, mesmo após o pai falecer, conta J.
Enquanto isso, e durante todos esses anos, a mãe de J. e C. deslocava-se amiúde ao Senegal ou à Guiné em busca da filha. Foram tantas as viagens que J. perdeu a conta.
Enviava recados e cartas, mas nunca se conseguiu reunir com a filha.
Também C. se tornou mãe. Depois de alguns anos, o marido viajou para França, onde residiu algum tempo. Quando regressou, trazia uma outra esposa. “A minha irmã não aceitou e com isso caiu numa depressão bem profunda. Adoeceu”, lembra J.
Foi nessa altura que familiares paternos entraram em contacto com Cabo Verde.
A mãe de J. foi, mais uma vez, para Dakar e finalmente, ao fim de longos anos, encontrou-se com C. , agora mulher feita e muito debilitada.
Ao ver a filha a mirrar assim, trouxe-a para Cabo Verde onde durante um ano recebeu os cuidados médicos necessários. Melhorou, mas a mulher que agora voltara à terra de onde partira tão jovem já não era a mesma menina que daqui saíra. E como nem línguas em comum havia, a comunicação era muito difícil.
C. não se adaptou e, de forma cada vez mais agressiva, exigiu voltar. Mãe e filha embarcaram para uma última viagem juntas. Chegadas a Dakar, C. voltou para o vilarejo, onde a sua mãe estava jurada de morte. O próprio marido de C. tinha mandado o recado de que se a senhora “colocasse os pés no vilarejo não sairia dali viva”. A mãe voltou para Cabo Verde. Meses depois C. falecia. “Morreu de depressão”, refere o irmão.
Para J. o caso da irmã contempla diferentes crimes, incluindo tráfico de pessoas. E são histórias que ainda se repetem “ principalmente na Boa Vista”, denuncia.
O que é TP?
A trágica história de C. serve para alertar contra determinados fenómenos que acontecem na sociedade cabo-verdiana, mas também para clarificar o conceito de Tráfico de Pessoas. Aqui houve vários crimes. Mas é tráfico de pessoas? A resposta não é simples.
Para que se configure este crime têm de reunir-se três condições: acção, meio e finalidade. Todos estes elementos têm de estar presentes.
No caso de C., houve o transporte de uma criança, retirada do seu espaço habitual: confirma-se a acção. Isso aconteceu por meio de coacção, engano e abuso de autoridade: confirma-se o meio. Mas a finalidadeé dúbia.
É tráfico quando o fim é a exploração, seja sexual, laboral, mendicidade forçada, práticas de crimes ou remoção de órgãos. Adopção ou casamento forçado também podem ser considerados, mas a intenção tem de ser, claramente, a exploração, com vantagem económica.
"Juridicamente fala-se de um crime de intenção. Muitas vezes nem precisa acontecer a exploração. Se a intenção for para a exploração, já estamos perante um crime. O problema é provar essa intenção", explica o presidente interino do Observatório Nacional de Tráfico de Pessoas (ONTP), José Luís Vaz.
No caso de C., não fica confirmada a intenção de exploração com vista a lucro. Assim, "não podemos afirmar ou confirmar o crime de tráfico se não se consegue provar que o pai intencionalmente lucrou com este casamento", conclui.
O ONTP
Informar e esclarecer o conceito do tráfico de pessoas é, aliás, uma das funções do ONTP, que entrou formalmente em funcionamento há um ano, a 6 de Novembro de 2024, com o empossamento dos seus órgãos dirigentes.
"Este é um dos desafios e, concomitantemente, um dos propósitos do Observatório, para que as pessoas estejam em condições de, pelo menos, quando estiverem perante uma situação suspeita, fazer uma sinalização o mais correcta possível”, explica o presidente interino. Assim, evitam-se, por exemplo, julgamentos precipitados ou interpretações erradas dos factos.
Mas para falar de Tráfico de Pessoas e do Observatório, há que recuar um pouco. Não muito. Apenas 10 anos. "Na agenda jurídica e política de Cabo Verde, esta problemática enquanto crime é muito recente", nota Vaz.

José Luís Vaz - Presidente interino do ONTP
Há muito que havia alertas de que o arquipélago não estava, de todo, imune a este crime , mas foi apenas em 2015, que o Tráfico de pessoas foi criminalizado, com a introdução da tipificação no código penal.
Foi um primeiro passo. Porém,durante os três anos seguintes, a abordagem foi "meramente repressiva. Era preciso acontecer um caso, para se reagir. E isso, de todo, não dá o resultado que se pretende."
A mudança e consolidação veio em 2018, com a aprovação do primeiro Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas. Cabo Verde passou, então, a ter uma política estruturada, que não abandona a dimensão repressiva, “essencial e necessária, mas passa para uma abordagem também de prevenção”, conta.
Ora, essa abordagem de prevenção exige um outro nível de articulação e o Plano recomendava a criação de um Observatório. Nos anos subsequentes foi criada uma espécie de comissão que viria a ser depois a formalizar-se no actual ONTP, e que Vaz avalia como um grande ganho, por tudo o que tem vindo a ser feito e pela visibilidade que já vem dando à problemática.
Os casos
Nestes dez anos desde que o tráfico de pessoas foi criminalizado em Cabo Verde, o Ministério Público registou 19 casos por suspeita. Desses, 13 estão encerrados: 11 foram arquivados por falta de indícios e dois foram a julgamento. Dos levados a julgamento, um resultou em absolvição e outro em condenação.
Falando, primeiro, da absolvição. Em finais de 2018, três pessoas foram detidas no Sal: dois cidadãos asiáticos e uma cabo-verdiana, suspeitos de tráfico de pessoas para exploração laboral, numa operação que permitiu resgatar quatro vítimas (duas mulheres e dois homens). Os três foram acusados formalmente, o caso foi a julgamento, mas todos foram absolvidos por falta de indícios comprovados de tráfico de pessoas.
Quanto ao outro caso julgado, resultou em condenação: a única desde que o crime existe na legislação nacional. Em Outubro de 2022, foi detida no Sal uma mulher nigeriana pela prática de crimes de tráfico de pessoas para exploração sexual. Foi julgada e condenada a pena de prisão. Recorreu, mas o Tribunal da Relação manteve a condenação, embora com pena mais reduzida. A vítima era uma menina de 15 anos, também nigeriana, que teria sido aliciada com a promessa de um trabalho. A menor foi acolhida pelas autoridades cabo-verdianas competentes e, de acordo com o presidente interino do ONTP, já regressou ao país de origem.
Recentemente, em Setembro deste ano, na Praia, uma mulher estrangeira foi acusada de três crimes de tráfico de pessoas e dois de coacção, num caso despoletado por uma denúncia junto às autoridades. O ONTP tem acompanhado o processo e coordenou o resgate de uma vítima. Poderá haver mais, reconhece-se, mas o caso ainda está em investigação.
Além disso, “é muito prematuro afirmar que estamos perante um crime de tráfico de pessoas", ressalva José Luís Vaz, sublinhando a necessidade de prudência enquanto o processo não estiver concluído.
Assim, olhando para o historial de dez anos, a conclusão é clara: "Oficialmente, temos um caso de tráfico em Cabo Verde durante todo esse tempo", contabiliza o presidente do ONTP.
Subnotificação e prevenção
O número parece demasiado baixo. E provavelmente é. Há, aliás, vários sinais de que a realidade é outra.
Por exemplo, apesar de apenas ter havido uma condenação, relatórios do Ministério Público, entre 2015 e 2019 mostram que houve o repatriamento de pelo menos quatro vítimas (oito se não houve duplicação dos dados), no Sal e Boa Vista, com o apoio da OIM.
A isto soma-se a consciência da subnotificação, um problema que não é exclusivamente nacional. A nível mundial, a própria ONU reconhece essa situação e, nos seus relatórios anuais sobre tráfico de pessoas, refere-se sempre a "vítimas identificadas", não a vítimas totais. "Isso mostra que os números que constam nos relatórios não correspondem à realidade completa. Não conseguimos identificar todas as vítimas ou todos os casos de tráfico", comenta José Luís Vaz.
A complexidade do crime explica parte do problema. Tráfico de pessoas é, por natureza, transnacional, envolve redes organizadas, move-se entre jurisdições. As vítimas desaparecem, os traficantes fogem, as provas são difíceis de reunir. Mas em Cabo Verde há também "uma deficiência por parte dos actores, das autoridades, em fazer essa identificação em tempo útil", reconhece.
Em 2018, por exemplo, o relatório anual do Departamento de Estado norte-americano sobre tráfico de pessoas mostrava uma realidade mais complexa do que os números oficiais deixam ver. Embora salientasse que Cabo Verde fazia "esforços significativos" no combate ao tráfico, o documento alertava: o país ainda não cumpria integralmente os padrões mínimos para eliminar este crime.
O documento descrevia, aliás, um cenário preocupante: rapazes e raparigas, alguns estrangeiros, vítimas de tráfico sexual em várias ilhas. O turismo sexual infantil surgia como forma de exploração, com casos no Sal, Boa Vista, São Vicente, Fogo e Maio, incluindo raparigas de 12 anos em São Vicente exploradas sexualmente a troco de drogas.
Além disso, referia que as autoridades registavam um crescente número de mulheres da África Ocidental em prostituição forçada no Sal e Boa Vista.
A exploração laboral de menores, em trabalhos domésticos, mendigagem, venda ambulante, completava o quadro. O relatório considerava estas crianças especialmente vulneráveis ao tráfico de pessoas.
"O Observatório, pela sua natureza, trabalha com dados", ressalva José Luís Vaz. Porém, admite que "não podemos ser ingénuos em dizer que apenas temos um caso de tráfico. Nós temos, sim, factores de risco. Somos um país vulnerável, a nossa posição geoestratégica facilita que haja fluxo não só de pessoas com boas intenções, mas também para praticarem crimes."

A aposta, como já referido, tem de passar pela prevenção, e é trabalho do Observatório sensibilizar, formar, capacitar. "Quando se tem conhecimento e se faz uma identificação precoce, estamos a evitar que uma possível vítima vá para o estado de exploração", explica Vaz. "Já estamos a fazer uma prevenção."
Como se previne um crime que mal se consegue identificar? "Primeiro é ver os factores de risco", responde. "O crime de tráfico acontece por aproveitamento de certas condições", nomeadamente vulnerabilidades pessoais, sociais, institucionais.
Em Cabo Verde, esses factores existem: desigualdades sociais, desemprego, "a ambição de se emigrar" e as redes sociais, que são "uma porta que os traficantes usam, sobretudo, para aliciar jovens e adolescentes."
Entretanto, por enquanto, o Observatório não recebeu denúncias de cabo-verdianos vítimas de tráfico no estrangeiro, casos que, a acontecerem, teriam de ser tratados pelas autoridades locais e pelas representações diplomáticas de Cabo Verde.
Tráfico laboral
Com tão poucos casos confirmados, é difícil saber qual a finalidade do tráfico de pessoas mais comum em Cabo Verde.
As denúncias que têm chegado ao ONTP, que, note-se, podem ou não vir a configurar tráfico de pessoas, dividem-se em número praticamente igual entre suspeitas de exploração laboral e sexual.
Internacionalmente, no entanto, o tráfico para exploração laboral prevalece. "Quando há um caso de exploração laboral, sempre aparecem mais vítimas", explica José Luís Vaz. Os dados da congénere portuguesa - o Observatório do Tráfico de Seres Humanos - confirmam-no. De acordo com o relatório de 2023, 82,7% das vítimas sinalizadas em Portugal foi para fins de exploração laboral, nomeadamente no futebol, agricultura e pescas. Seguiram-se os casos de mendicidade forçada e, em terceiro lugar, exploração sexual. Houve também vítimas sinalizadas em adopção ilegal. Outros tipos, como escravidão, prática de actividades criminosas e casamento forçado, foram residuais.
No início de 2025, o Observatório cabo-verdiano fez uma missão a cinco ilhas para mapear vulnerabilidades. A conclusão: cada ilha tem riscos específicos, para diferentes tipos de exploração. Nas ilhas turísticas, onde grandes construções e grupos hoteleiros estão também em expansão acelerada, o perigo é duplo: tanto para exploração sexual como laboral.
Trabalhar sobre estes casos, obviamente, não é apenas tarefa de uma única entidade. Neste momento, o próprio ONTP, uma estrutura coordenadora, integra 16 membros de diferentes instituições ministeriais e sectoriais, e o fortalecimento da ainda frágil articulação entre estes membros é visto como fundamental para identificar os casos que possa haver.
“Há essa necessidade de nos consolidar e com o decorrer do tempo vamos percebendo o que é que falta afinar. Por exemplo, neste caso [da exploração laboral], a Inspecção ou a Direcção-Geral do trabalho também têm responsabilidade, ou um contributo a dar”, expõe José Luís Vaz. O mesmo acontece com a Alta Autoridade para a Imigração, com quem o ONTP tem previsto um projecto conjunto e várias acções, o que deverá aproximar ambas as instituições.
A sombra do turismo sexual
Entretanto, e apesar dos dados internacionais apontarem para a prevalência da exploração laboral, em Cabo Verde a percepção pública é outra: a de que o tráfico para fins sexuais é muito mais comum, especialmente nas ilhas turísticas.
Em 2018, o então Procurador-Geral da República, Óscar Tavares, confirmou à imprensa que estavam em andamento investigações sobre tráfico de pessoas para exploração sexual no Sal e na Boa Vista. Contudo, não avançou informações concretas sobre os casos. Nesse ano (2018/2019) houve um registo recorde de cinco novos casos no MP, mas passados anos, não se sabe qual foi o desenvolvimento judicial específico.
Há anos que, pelo menos no Sal, circulam relatos sobre redes de exploração sexual ligadas ao turismo. Há quem fale abertamente de turismo sexual na ilha, o que, por si, seria um factor de risco e uma porta de entrada para o tráfico de pessoas. A percepção pública é de que este é um problema real.
José Luís Vaz é cauteloso quando se aborda o tema. "Não podemos ser ingénuos e dizer que um país como Cabo Verde, que tem no turismo a sua força em termos de arrecadação, um país a florescer a nível do turismo, não esteja exposto a riscos. Mas uma coisa é o sensacionalismo, outra coisa é a realidade."
Como sublinha o presidente do ONTP "nem todas as transacções sexuais são tráfico", mas, reitera, "podem ser uma porta de entrada”.
“Um jovem que esteja neste meio facilmente pode ser aliciado para uma viagem que pode ser para fins de exploração (…) Temos que estar atentos e não desvalorizar."
Vaz acredita, no entanto, que as autoridades estão, sim, atentas. "Um Estado como Cabo Verde, que depende muito do turismo, não pode não estar sensível nem atento para travar uma situação que venha a pôr em risco esta fonte de rendimento."
Balanço e perspectivas
É neste contexto que o ONTP chega ao fim de um ano de funcionamento formal, sendo já possível fazer um balanço. José Luís Vaz considera-o positivo. Porém, reconhece que "podíamos estar noutro patamar" se não tivesse havido "alguns constrangimentos".
O maior deles foi a descontinuação do projecto "Observe-se CV", financiado pelos Estados Unidos, criado quando o ONTP se começava a estruturar. O projecto deveria dar "maior capacidade institucional ao Observatório" para recolha, tratamento e análise de dados. "Foi descontinuado por causa da nova administração dos Estados Unidos", lamenta Vaz. "Tivemos esse revés."
Apesar disso, o Observatório conseguiu criar uma estrutura funcional, estabelecer um manual de procedimentos operacionais, estabeleceram-se mecanismos de prevenção e de encaminhamento das vítimas e constituíram-se parcerias importantes: com os EUA, com agências da ONU, com Portugal através do Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH), com quem tem um memorando de cooperação, e com a CEDEAO, onde Cabo Verde é o ponto focal em matéria de tráfico de pessoas. A nível nacional, embora seja necessário reforçar parcerias, o Observatório trabalha já em articulação com várias instituições e tem promovido formações constantes.
E o futuro? O país não vive isolado. A nível mundial, o aumento tem sido acentuado. O último relatório da ONUDC (Global Report on Trafficking 2024), com dados de 2022, registou mais de 74 mil vítimas identificadas, um aumento de 25% face aos períodos anteriores.
Em Cabo Verde, o padrão parece ser também crescente. "Este ano já temos uma denúncia, o que mostra que as pessoas já começaram a identificar e a denunciar", observa o presidente interino.
Com o trabalho de sensibilização, Vaz acredita que " teremos mais casos." E não porque o crime esteja, de facto, a aumentar, mas porque Cabo Verde está finalmente a conseguir vê-lo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro de 2025.
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