Para compreender melhor como funcionam as apostas online e a sua dimensão entre os cabo-verdianos, conversámos com Mário, um jovem de 31 anos. Mário, conforme conta, começou a apostar em 2023, apesar de já conhecer a plataforma bet365 desde 2020.
“Um amigo meu falou-me deste site em 2020, mas não liguei muito. Em 2023, um outro amigo voltou a mostrar o mesmo site e até me deixou fazer uma aposta no telemóvel dele. Ganhei e, por isso, criei a minha conta”, relata. Desde então, afirma que apenas utiliza esta plataforma.
Segundo explica, o processo de registo exige um cartão Visa com dinheiro e o envio de vários dados pessoais.
“Criamos uma conta no site, que pede todas as nossas informações, como nome, apelido e foto do CNI, entre outros. Depois é só apostar”, conta. As apostas começam nos 5 euros, mas cada utilizador arrisca o montante que quiser.
Mário garante que controla o hábito. “Eu não vou ficar viciado. Faço apostas, mas não deixo que se crie o vício. Tanto é que aposto às vezes aos fins-de-semana. Num mês costumo apostar quatro vezes, mas aposto mais na época da Liga dos Campeões”, diz.
Acrescenta que não investe grandes quantias. “O máximo que já gastei foram 100 euros. Já cheguei a ganhar, numa única aposta, mais de cem mil escudos, e já fiz num mês mais de 200 mil.”
Sempre que obtém um valor considerável, segue uma regra própria: retira o dinheiro para depositar numa conta poupança e deixa ficar cerca de 50 euros para novas apostas.
Para Mário, o equilíbrio entre o montante investido e a frequência das apostas é o que lhe permite, segundo diz, evitar perdas significativas.
O fenómeno, admite, está longe de ser isolado. “Conheço muitas pessoas que estão a fazer apostas, tanto meninas como rapazes. O meu irmão costuma apostar e ganha muito dinheiro. Quanto mais a pessoa aposta, mais ganha”, afirma.
Aliás, refere, existem grupos onde os utilizadores partilham previsões e sugestões entre si.
Sobre as modalidades de apostas, explica que as opções são variadas. Tanto se pode apostar em vitórias, golos, quem leva cartão, cantos como desempenho individual dos jogadores.
“Eu aposto mais nos resultados justos. Mas o que dá mais dinheiro são as apostas de quem vai levar cartão, porque é algo mais imprevisível.”
Mário revela ainda que já há quem viva à base disso, sem trabalhar. “Conheço até quem deixou de trabalhar porque com as apostas ganha mais. Para alguns é uma renda extra e para outros é uma fonte de rendimento, porque paga todas as contas, inclusive a mensalidade do jardim do filho com o dinheiro que ganha nas apostas.”
“Um amigo meu, num mês, fez 600 contos. Porque ele faz apostas altas”, comenta. Outro mecanismo também acaba por atrair os utilizadores, segundo Mário: “As equipas em que apostares oferecem-te dinheiro para desistires do valor que ganhares. E quanto mais dinheiro fizeres, mais eles pagam para desistires”, detalha.
Mário, assim como os seus amigos, aposta em campeonatos de várias regiões — Europa, América Latina e nas selecções africanas. O levantamento dos ganhos, garante, é simples.
“Depois de ganhar uma aposta, meia hora ou, no máximo, uma hora, o dinheiro entra no Visa; depois faço a transferência para a minha conta corrente”, conta.
20% das transações com cartões Visa correspondem a apostas
Segundo o SISP, em 2024 foi registado um total de aproximadamente 1.107.000 transações realizadas com cartões Visa emitidos pelos bancos nacionais. Destas, cerca de 20% corresponderam a jogos de fortuna e azar, designados como bets.
Em termos de montante movimentado, estas transações totalizaram 432 mil contos, representando 7% do valor global processado no período.

Sobre a existência de mecanismos de controlo ou limitação de transações ligadas a plataformas de apostas, o SISP afirma que, enquanto entidade processadora, “não impõe limites nem restrições”, sublinhando que, caso existam, são definidos pelos bancos emissores dos cartões utilizados.
Crise económica e esperança de ganhos rápidos alimentam a procura
O crescimento das apostas desportivas e dos jogos online em Cabo Verde acompanha a tendência mundial e tem vindo a alterar hábitos de consumo, sobretudo entre os mais jovens, segundo José Carlos Teixeira, professor de Finanças no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL), que considera que o fenómeno já assumiu expressão nacional e que exige atenção redobrada das autoridades, das famílias e dos próprios utilizadores.
Conforme o académico, o país tem assistido a um aumento expressivo do número de apostadores e de plataformas disponíveis, especialmente online, consequência directa da globalização da economia.
“Dados recentes indicam crescimento acentuado em jogos tradicionais (como os Jogos da Cruz Vermelha de Cabo Verde) e, mais recentemente, em apostas electrónicas e desportivas, impulsionados pela digitalização, acesso a smartphones e campanhas de marketing nas redes sociais (que chegam facilmente aos jovens)”, aponta.
A conjuntura socioeconómica do país surge como um dos principais motores deste crescimento.
“O desemprego jovem, o subemprego e o baixo rendimento familiar empurram muitos cabo-verdianos para as apostas como meio de esperança de ganhos rápidos”, afirma o professor. A influência de conteúdos que exibem aparentes sucessos de apostadores e a facilidade de acesso digital reforçam o fenómeno.
Embora reconheça que exista também uma dimensão lúdica, José Teixeira sublinha que os factores económicos são predominantes e que muitos jovens procuram nas apostas uma alternativa de rendimento.
No entanto, adverte que essa percepção pode ser enganadora. “A maioria dos apostadores tende a perder dinheiro a médio e longo prazo, porque é necessário apostar muitas vezes para acertar algumas.”
Para o especialista, este comportamento não deve ser encarado como solução sustentável para problemas económicos ou de inclusão financeira, lembrando que se trata de jogos de fortuna ou azar.
Impacto económico
O académico aponta que o impacto das apostas na economia nacional é “duplo”. Por um lado, existem ganhos fiscais, mas apenas quando os operadores estão licenciados no país. Por outro, alerta que muitos operadores actuam a partir do exterior, o que reduz a arrecadação fiscal e potencia a saída de capital.
Além disso, explica que uma parte significativa das operações não passa pelo circuito bancário nacional, reduzindo o efeito multiplicador interno do dinheiro apostado e dos prémios pagos.
Por isso, considera provável que esteja a ocorrer mais perda de capitais para o exterior do que ganhos fiscais para Cabo Verde.
“Várias plataformas actuam com sede e meios de pagamento no exterior, o que contribui para a transferência de dinheiro para fora do país e dificulta o rastreamento fiscal local. Tal situação representa risco real de fuga de divisas e perda de capacidade de poupança nacional”, explica.
“O mais comum é que as apostas gerem impactos negativos, sobretudo entre jovens e trabalhadores informais, que, devido à irregularidade dos rendimentos, arriscam valores elevados na esperança de obterem sorte”, observa.
As pequenas apostas frequentes, acrescenta José Teixeira, deterioram progressivamente a capacidade de poupança e de organização financeira. Embora legalmente enquadradas como entretenimento, este tipo de consumo, quando recorrente, pode representar uma drenagem financeira significativa, sobretudo em contextos de baixo rendimento.
Ausência de licenças
Contactada pelo jornal, a Inspecção-Geral de Jogos (IGJ) confirma que, apesar da crescente adesão dos cabo-verdianos às plataformas internacionais, que não são ilegais, nenhuma entidade está autorizada a operar no país.
“Não há, até ao momento, nenhuma licença emitida pela IGJ. Não existem plataformas licenciadas”, afirma a instituição.
Segundo a entidade reguladora, o jogo online permanece numa zona cinzenta. “Carece ainda de alguma actualização da regulamentação e, só depois disso e da decisão do Governo, é que serão dados passos firmes rumo à sua implementação.”
A IGJ afirma que, quando o quadro legal estiver definido, a fiscalização seguirá mecanismos idênticos aos que se praticam nas diferentes jurisdições internacionais, sublinhando que Cabo Verde integra a Associação Internacional das Reguladoras do Jogo (IAGR), o que, diz, lhe permitirá aplicar regras alinhadas com as melhores práticas internacionais.
A instituição reconhece ainda que, embora não seja o caso das apostas desportivas, a proliferação de práticas ilegais constitui um desafio.
“É uma questão preocupante, mas é um problema que envolverá outras entidades e, seguramente, medidas serão tomadas para mitigar o seu efeito”, assegura.
BCV não regula plataformas de apostas
O Banco de Cabo Verde (BCV) esclareceu que não possui qualquer competência, directa ou indirecta, sobre a regulação ou supervisão das plataformas de apostas que operam no país.
De acordo com a instituição, o seu mandato, definido pela Lei Orgânica e pela Lei de Bases do Sistema Financeiro, limita-se à regulação e supervisão das actividades e instituições financeiras, não abrangendo o sector dos jogos.
No que respeita aos pagamentos efectuados através dessas plataformas, o BCV explica que estes recorrem a instrumentos digitais autorizados, como cartões emitidos pelos bancos comerciais. As operações são processadas pela rede Vinti4, gerida pela Sociedade Interbancária e Sistemas de Pagamentos, S.A., entidade que se encontra sujeita à superintendência e fiscalização do banco central.
Sobre a identificação de eventuais transações suspeitas relacionadas com apostas online, o BCV esclarece que essa não é uma competência da instituição. Sublinha ainda que as plataformas de apostas, enquanto entidades não financeiras, devem implementar mecanismos próprios de identificação de operações potencialmente suspeitas.
Questionado sobre o envio de fundos para plataformas não licenciadas, o BCV afirma que todas as operações devem ser realizadas através de prestadores de serviços de pagamento autorizados. Caso uma plataforma exerça actividades de pagamento sem autorização, o banco central actua enviando o processo para as autoridades judiciais competentes, por eventual exercício ilegal de actividade financeira.
Relativamente às recomendações dirigidas aos cidadãos que utilizam plataformas digitais para efectuar apostas, o BCV refere que, enquanto superintendente dos sistemas de pagamento e autoridade de supervisão comportamental do sector financeiro, pode apenas aconselhar a utilização segura de cartões e outros instrumentos de pagamento digitais, emitindo directrizes sobre os cuidados a ter na sua utilização.
Regulação precisa de acompanhar a globalização
Sobre o papel do Estado, José Teixeira afirma que deve prevalecer a função reguladora e fiscalizadora. “É necessário garantir protecção ao consumidor, combater a fraude e promover práticas transparentes.”
Embora não veja com bons olhos medidas demasiado restritivas, que poderiam empurrar o fenómeno para a clandestinidade, afirma que o equilíbrio regulamentar é essencial.
“A legislação cabo-verdiana já regula as apostas, incluindo requisitos de licenciamento, transparência e limitações de acesso (como idade mínima de 18 anos). No entanto, face à globalização e ao crescimento digital, há necessidade de constante actualização e reforço dos mecanismos de supervisão e fiscalização para acompanhar o sector, garantir a segurança e minimizar evasões fiscais e práticas ilícitas”, considera.
Entre esses riscos inclui-se o branqueamento de capitais. “A falta de rastreabilidade e a facilidade de transferências internacionais através de plataformas digitais podem tornar as apostas um canal facilitador”, alerta.
A longo prazo, José Teixeira prevê consequências sérias para a economia e para o comportamento financeiro das famílias. “Pode haver impacto negativo na poupança nacional, aumento do endividamento, instabilidade social e estímulo a comportamentos de risco.”
Nesse sentido, o investigador reforça a necessidade de regulação, fiscalização e promoção activa da literacia financeira.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.
homepage





