Em 2024, 93% da população dos países desenvolvidos tinha acesso à internet. Em contraste, nas economias de rendimento médio-alto, esse número descia para 81%; nos países de rendimento médio-baixo, apenas 54% da população estava ligada; e, nos países de baixo rendimento, o acesso não chegava a 27%.
Mas a mera conectividade não é suficiente. O consumo de dados, que indica a intensidade do uso digital, revela um fosso ainda maior. Em 2023, o tráfego médio per capita nos países ricos atingiu 1 400 GB, enquanto nas economias de rendimento médio-alto era de 400 GB, nas de médio-baixo 100 GB, e nos países mais pobres apenas 5 GB. Ou seja, o consumo de dados per capita nos países desenvolvidos era duzentas e oitenta vezes superior ao dos países mais pobres, o que praticamente inviabiliza a utilização plena de ferramentas digitais e de IA nesses contextos.
A cobertura móvel de nova geração evidencia a mesma disparidade: enquanto 84% da população dos países desenvolvidos tinha acesso a redes 5G, nos países de baixo rendimento esta cobertura era de apenas 4%. Mesmo com a expansão de constelações de satélites – que cresceu catorze vezes entre 2015 e 2023 – a acessibilidade continua restrita, mostrando que o avanço tecnológico não chega de forma equitativa aos mais pobres.
Capacidade computacional: a “nova electricidade” da IA é um luxo
O acesso a servidores, data centers e serviços de cloud é fundamental para o desenvolvimento de soluções baseadas em IA. O relatório do Banco Mundial compara esta capacidade a uma “nova electricidade”: essencial para o funcionamento de qualquer economia digital moderna, mas concentrada nas mãos de poucos.
Metade dos servidores seguros do mundo encontra-se nos Estados Unidos, 41% em outros países desenvolvidos e apenas 9% distribuídos pelo restante do planeta. O contraste é ainda mais chocante quando se considera o número de servidores por pessoa: nos EUA, há duzentas vezes mais servidores por habitante do que numa economia média de rendimento médio e vinte mil vezes mais do que em países de baixo rendimento.
A distribuição global da capacidade de data centers segue o mesmo padrão. Em 2025, 77% da capacidade estava nos países desenvolvidos, 18% em economias de rendimento médio-alto, 5% nas de médio-baixo e menos de 0,1% nos países mais pobres. A cloud computing, teoricamente mais acessível, também é fortemente dominada pelos países ricos: em 2023, 87% das exportações globais de serviços cloud provinham dos EUA, sendo que 84% destes serviços eram consumidos por países desenvolvidos. Para os países em desenvolvimento, o acesso a esta infraestrutura depende de fornecedores externos, muitas vezes caros e pouco adaptados às necessidades locais, o que limita a capacidade de inovação e competitividade.
Dados: o novo ouro digital concentra-se no Norte Global
Outro pilar essencial para o desenvolvimento da IA é o contexto – dados relevantes, de qualidade e representativos que permitam treinar modelos de IA adaptados a realidades locais. No entanto, o relatório revela que o mundo enfrenta um “deserto de dados” no Sul global.
Em 2024, 85% das startups dedicadas a dados de treino estavam nos países desenvolvidos. O investimento global em dados é dominado por poucos países: os EUA detêm 56% do total, a China 17%, a União Europeia 15%, enquanto a Índia e o Reino Unido possuem percentagens residuais. Além disso, mais de 50% dos grandes conjuntos de dados open-source estão apenas em inglês, excluindo vastas populações que falam línguas pouco representadas.
Enquanto 8% dos vídeos do YouTube estão em hindi e 3% em árabe, as línguas africanas, asiáticas e insulares continuam praticamente ausentes dos grandes datasets, tornando os modelos importados menos eficazes, enviesados ou mesmo prejudiciais em contextos nacionais. Esta limitação impede que governos, pequenas e médias empresas e instituições públicas dos países em desenvolvimento beneficiem das ferramentas emergentes de IA.
Competências digitais: o último e mais profundo fosso
O quarto pilar, as competências digitais, é apontado pelo relatório como um dos factores mais críticos para o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento tecnológico. Aqui, as desigualdades são particularmente alarmantes.

Competências digitais básicas estão presentes em 66% da população dos países desenvolvidos, 38% nos países de rendimento médio-alto, 21% nos de médio-baixo e menos de 5% nos países pobres. Quanto a competências intermédias, a diferença mantém-se: 57% nos países ricos, 26% nos de médio-alto, 13% nos de médio-baixo e apenas 3% nos países mais pobres. Para competências avançadas – que incluem IA e ciência de dados – menos de 10% da população dos países desenvolvidos as detém, contra 3,5% nos de médio-alto, 1,6% nos de médio-baixo e menos de 1% nos países pobres.
A fuga de talentos agrava ainda mais este cenário. Em países como a Nigéria, o Bangladesh ou o Líbano, a saída de especialistas para o estrangeiro supera em três a quatro vezes a entrada, limitando a capacidade de desenvolvimento local. Apesar disso, o relatório identifica uma tendência positiva: a procura de trabalhadores com competências em IA tem crescido mais rapidamente nos países de rendimento médio do que nos ricos, embora a oferta ainda não acompanhe a demanda.
Uma economia global cada vez mais assimétrica
O Banco Mundial alerta que a desigualdade digital não é apenas um reflexo das diferenças económicas actuais, mas sim um motor de desigualdades futuras. À medida que a IA se torna central em sectores como a produtividade, a educação, a saúde, a indústria e a administração pública, os países que não conseguirem investir nas quatro áreas – conectividade, capacidade computacional, contexto e competências – correm o risco de ficar presos em trajectórias de baixo crescimento, perder oportunidades de emprego qualificado, tornar sectores inteiros dependentes de automação externa e aumentar a dependência tecnológica do estrangeiro.
O relatório sublinha ainda o risco de “desprofissionalização prematura” nos países em desenvolvimento: à medida que a IA automatiza serviços avançados, o espaço para a criação de empregos qualificados nestes países pode diminuir antes mesmo de terem conseguido desenvolvê-los plenamente.
Apelo à acção: a urgência de combater o fosso digital
Segundo o documento do Banco Mundial, a conclusão é inequívoca: a revolução da IA exige acção imediata.
Sem investimentos estratégicos nas quatro áreas referidas anteriormente, a IA corre o risco de se tornar um instrumento de desigualdade em vez de prosperidade.
O Banco Mundial recomenda que os países – sobretudo os mais pobres – priorizem investimentos adaptados à sua realidade e ao seu grau de preparação digital. Conectividade universal, capacidade computacional acessível, dados locais e competências digitais são essenciais para garantir que todos possam beneficiar da economia digital.
O alerta é claro: a velocidade da transformação digital e da inteligência artificial não dá margem para esperar. A diferença entre os que podem participar na nova economia digital e os que ficam excluídos continuará a aumentar, a menos que se invista de forma estratégica e coordenada para reduzir este fosso tecnológico global.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1254 de 10 de Dezembro de 2025.
homepage








