O SOFA não é inconstitucional

PorAntónio Monteiro,29 jul 2018 7:15

Carlos Veiga
Carlos Veiga

Para o embaixador de Cabo Verde nos Estados Unidos o nosso país não tem recursos para segurar sozinho a defesa do seu território e do seu mar e por isso o governo fez bem em assinar o acordo SOFA com os Estados Unidos e que a derrogação da jurisdição a coberto da Convenção de Viena não fere nenhuma norma constitucional.

Apesar das muitas críticas, é o SOFA um bom acordo para Cabo Verde?

Claro que sim e não é nada de novo. Hoje em dia, nas relações internacionais, as questões de defesa e segurança são uma parte, para não dizer mais importante, mas uma parte importante de muitas dessas relações entre estados, entre membros de organizações internacionais, etc, porque hoje as questões de segurança têm um carácter mundial e exigem uma cooperação entre diversos estados independentemente da sua dimensão e do seu poderio. Creio que hoje em dia praticamente nenhum estado consegue segurar-se sozinho da sua defesa sem a cooperação de outros países. Nós definimos com os Estados Unidos – parece que esta definição está certa – que a área de defesa e segurança devia ser uma área a ser explorada. É uma área do interesse dos dois estados, mas sobretudo do interesse de Cabo Verde. Cabo Verde, como é evidente para toda a gente, não tem condições para segurar sozinho a defesa do seu território e do seu mar. Não tem recursos para isso e por isso tem que estar numa cadeia de segurança cooperativa. Quem melhor do que um país como os Estados Unidos que é um dos mais poderosos do mundo, que alberga a maior comunidade da diáspora cabo-verdiana e que nos considera seu aliado. Um aliado confiável e portanto está disponível para trabalhar connosco. Eu penso que devemos ter a consciência em Cabo Verde dos perigos que corremos. Uns já existentes outros latentes. Nós já temos problemas de tráfico de droga na nossa zona marítima, já temos problemas de pesca ilegal e de pirataria marítima nas nossas águas. Esses são reais, portanto criminalidade transfronteiriça organizada. Mas temos também perigos latentes. Nós sabemos que todo o terrorismo ligado ao Daesh e a outras ligações semelhantes está a ser derrotado no Iraque e na Síria e está a vir para a África Ocidental. Portanto nós temos que arranjar parceiros para a nossa defesa e segurança neste mundo global. Não é contra estados, é se calhar em relação a organizações não estatais que podem atacar em qualquer momento. Penso que temos que ter sempre presente o que aconteceu na Tunísia. Tunísia é um país maior que o nosso, mas pequeno, não mexe com ninguém, tido no mundo inteiro como um parceiro confiável cuja economia baseia-se no turismo. Por um ataque, em praias, por duas ou três pessoas, o seu turismo desapareceu e só agora é que reemerge. Se isso acontecer connosco na Boa Vista ou no Sal, aonde vamos. Hoje em dia, no quadro desta segurança cooperativa que marca as relações internacionais todas as instituições e todos os países que projectam tropas nos territórios de estados amigos que vão ajudar com o seu acordo, ou temporariamente em exercícios, ou mesmo em outras soluções, estabelecem o estatuto das suas forças. As Nações Unidas têm um modelo, a União Europeia tem um modelo do estatuto das suas forças e naturalmente que as grandes potências também têm: os Estados Unidos têm; a Rússia tem; o Reino Unidos tem, etc. Eles não põem os seus militares num território de um estado amigo sem que o estatuto das suas forças lhes deem garantia. E porquê? Pela mesma razão porque existe uma Convenção de Viena de Relações Diplomáticas que trata também do estatuto dos representantes dos estados no território de um outro estado. São estados soberanos, legalmente iguais no plano do direito internacional e portanto é necessário regular como é que os representantes de um estado que estão num outro estado são tratados. A Convenção de Viena estabelece o regime para o chefe de missão, mas estabelece também o regime para o pessoal técnico e administrativo das missões diplomáticas. Portanto, um simples administrativo de uma missão diplomática tem imunidades, entre elas a imunidade de jurisdição penal. Para o diplomata vai mais longe: a família tem; os empregados domésticos têm. Tudo aquilo que se relaciona com a vida do embaixador, ou chefe de missão, ou com o edifício da missão e com a residência oficial tem imunidade. Os militares, por igualdade de razão, ou se calhar, às vezes por maioria de razão, porque também representam a soberania dos estados, devem ter esse tratamento. É por isso que, na totalidade dos modelos de SOFAs que eu conheço que tratam do estatuto das forças se estabelece que se lhes aplique o regime previsto na Convenção de Viena de Relações Diplomáticas do pessoal técnico e administrativo de uma missão diplomática. É isso. Portanto, não se está a inventar nada. E Cabo Verde sabe isso bem, porque nós aderimos à Convenção de Viena logo a seguir à independência. E mais: a nossa lei interna também o prevê. O nosso Código do Processo Penal diz ‘os tribunais cabo-verdianos julgam todos os crimes cometidos em Cabo Verde, salvo convenção em contrário’. Uma convenção tem mais valor que uma lei ordinária. Tem que se submeter à Constituição, naturalmente. Mais, não é a primeira vez que Cabo Verde faz um SOFA. Cabo Verde tem um SOFA permanente com a Espanha, porque a Espanha participa com Cabo Verde na fiscalização conjunta das nossas águas territoriais. Portanto, isso não é a primeira vez que acontece.

Não é a primeira vez que Cabo Verde faz um SOFA. Cabo Verde tem um SOFA permanente com a Espanha, porque a Espanha participa com Cabo Verde na fiscalização conjunta das nossas águas territoriais.

Porque é que só agora se levanta esta questão?

É a questão, porque todos os textos são iguais. Leia os textos e verá que são absolutamente iguais. Portanto, para nós é bom. Não é o acordo de defesa e segurança, é o pressuposto para haver defesa e segurança. E é também para situações em que já temos exercícios, ou vamos ter exercícios com os Estados Unidos em termos de segurança nas nossas águas marítimas. Como precisamos, fizemos isso. Porque se nós dizemos que não queremos SOFA, estamos a dizer que não queremos ajuda de ninguém. Não há Capacetes Azuis que venham sem SOFA, não há militares da União Europeia que venham sem SOFA, tal como não há espanhóis que venham sem SOFA, nem há militares americanos que participem em exercícios militares connosco nas nossas águas, sem que tenhamos um SOFA previamente. Portanto, o SOFA é previamente necessário para avançarmos.

Não existe nenhuma inconstitucionalidade nessa derrogação da jurisdição?

Falando um pouco como jurista considero que não há inconstitucionalidade nenhuma nessa derrogação da jurisdição. Como disse, ela está derrogada na Convenção de Viena, ela está prevista como possível na nossa lei interna e Cabo Verde já teve e tem SOFAs em vigor com outras nações. Portanto, não vejo inconstitucionalidade. Eu acho que pela mesma razão por que se atribui ao pessoal administrativo e técnico de uma missão diplomática imunidades, deve-se também atribui-las aos militares desse outro estado, porque são representantes da soberania do estado que vêm para o nosso território. São representantes da soberania, portanto têm que ter um outro tratamento. De resto, todas as outras cláusulas que estão no SOFA estão em todos os SOFAs. Há um artigo 3º do acordo citado pelo Expresso das Ilhas, mas se for ao SOFA da Polónia encontra essa explicação, porque o número dois é uma explicação do número um. O número um é igual em todos. Se for ao Senegal, Senegal tem um SOFA e tem um acordo de defesa e segurança, assinado em 2016. Senegal tem uma base dos Estados Unidos no seu território, mas recebeu recentemente o presidente da China. E nós estamos a desbaratar um dos maiores trunfos que nós temos que é nossa localização geoestratégica. É isso que queremos? Se é isso que queremos muito bem. Eu cumpri a minha missão, acho que o governo fez muito bem porque, mas vale prevenirmos do que depois vir dizer ‘ah, se tivéssemos pensado melhor, não teria acontecido’.

O nosso Código do Processo Penal diz ‘os tribunais cabo-verdianos julgam todos os crimes cometidos em Cabo Verde, salvo convenção em contrário’. Uma convenção tem mais valor que uma lei ordinária. Tem que se submeter à Constituição, naturalmente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 869 de 25 de Julho de 2018.

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Autoria:António Monteiro,29 jul 2018 7:15

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  30 jul 2018 11:34

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