Não há democracia sem parlamentos

PorJorge Montezinho,19 jan 2019 9:43

Jorge Lacão
Jorge Lacão

​Jorge Lacão, deputado e Vice-Presidente da Assembleia da República de Portugal, veio a Cabo Verde para participar na VIII Assembleia Parlamentar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Político experiente, o dirigente socialista foi Ministro dos Assuntos Parlamentares no XVIII Governo e Secretário de Estado no XVII Governo, falou com o Expresso das Ilhas sobre os desafios que a democracia enfrenta e dos desvios populistas dentro dos países da CPLP.

Está em Cabo Verde para participar na VIII Assembleia Parlamentar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (AP-CPLP), numa altura em que os parlamentos nacionais de alguns dos países que fazem parte da comunidade estão a ser alvo de ataques populistas. A CPLP pode ser um bom exemplo?

Eu desejaria muito que o fosse, e creio que estamos profundamente empenhados nisso, na medida em que há, entre os nossos parlamentares, uma consciência alargada de que verdadeiramente não há alternativas para o desenvolvimento dos nossos países que não passem pela estabilidade política. Mas a estabilidade política, por si, também se alcança e se garante através de uma sintonia com os respectivos povos. E a única verdadeira forma de fazer funcionar essa sintonia é através dos regimes democráticos. Todas as outras miragens que visam apresentar soluções salvíficas para a vida dos povos, mas que no fundo acabam em aventureirismos e também comprometem a dignidade e a credibilidade das instituições, essas hipóteses podem ter algum momento de aparente êxito, mas acabam inevitavelmente no malogro. E, precisamente por isso, creio que todo o trabalho que fizemos no quadro da CPLP e particularmente da Assembleia Parlamentar da CPLP com vista a consolidar as nossas democracias e as garantias dos direitos humanos e a aproximação num quadro de mobilidade entre os nossos povos é esse o caminho certo que a História nos abre e que nós temos verdadeiramente, a meu ver, a obrigação de trilhar.

Não querendo personalizar, mas quando fala de direitos humanos e de mobilidade, e tendo nós actualmente na presidência do Brasil um líder que abandonou o acordo global sobre migrações e que não é um defensor das minorias, que influência isso poderá ter no quadro da CPLP?

Como muitos outros de nós, eu estou também muito apreensivo em relação aos sinais mais recentes vindos da política brasileira. E naturalmente temos de procurar fazer aqui uma distinção: entre a divergência que pode decorrer de orientações políticas com as quais não poderemos concordar de um outro aspecto, que é fundamental, e que é mesmo o decisivo, que é o dos laços históricos que unem os povos. Uma comunidade de países de língua portuguesa não é uma genuína comunidade sem ter uma ampla participação do Brasil nessa mesma comunidade. Por isso, pela nossa parte, sem esconder, como referi, as preocupações, ao mesmo tempo tudo faremos para continuar a poder trabalhar conjuntamente com os responsáveis e os representantes brasileiros no sentido de alcançar e concretizar os valores nos quais a CPLP se reconhece. Dito isto, também é preciso lembrar que em todo o caso o Brasil é uma democracia, há uma pluralidade política no seio do Congresso brasileiro e essa pluralidade política também se reflecte na Assembleia Parlamentar da CPLP.

Mas numa altura em que vemos vários países dentro da CPLP a avançarem em termos de direitos humanos, no combate à corrupção, na prestação de contas da governação, estar-se-ia à espera de um revés destes por parte do maior país da CPLP?

Há horizontes sombrios um pouco por toda a parte, infelizmente. Eles começaram de forma mais visível com a eleição do presidente Trump nos Estados Unidos, têm tido afloramentos significativamente preocupantes na Europa, e devo dizer-lhe que na Europa estamos perante um sério desafio que vai ter o seu desenlace no próximo mês de Maio com as eleições para o Parlamento Europeu e dessas eleições resultará saber se conseguimos uma Europa mais unida em torno da sua razão de ser institucional, ou se vamos ter um predomínio dos chamados eurocépticos o que muito comprometeria também o quadro da participação e integração dos países europeus num projecto comum. A Europa unida é, ela própria, um factor determinante de uma estabilidade mais alargada nesta sociedade global em que vivemos e por isso os factores de preocupação estão um pouco por todo o lado. Não se pode apontar o dedo apenas nesta ou naquela direcção, o que compete àqueles que têm uma genuína convicção democrática é não prescindir dos seus valores. E deixe-me sublinhar a minha grande satisfação ao estar aqui em Cabo Verde e poder testemunhar a forma tão significativa como as instituições democráticas cabo-verdianas, simbolizadas no presidente da Assembleia Nacional e no Presidente da República, estão empenhadas na valorização da CPLP, na união dos nossos povos, na mobilidade e na projecção politica, cultural, económica e social deste projecto comum.

Falou das eleições europeias e do risco que corremos de quase ver o desmoronamento das instituições democráticas. Não foi também a própria democracia que deu o flanco? Quando defendemos a liberdade de expressão não estamos a dá-la também a quem é contra a democracia?

É um problema difícil, esse que me coloca. Sem liberdade de reunião, sem liberdade de participação, sem liberdade de expressão não há, verdadeiramente, sociedade aberta. Infelizmente, não podemos deixar de reconhecer, que muitas vezes ao nível dos órgãos de comunicação social as dependências, por vezes também de natureza económica, condicionam a sua própria liberdade de orientação editorial e comprometem algum deste quadro de participação mais aberta. Temos de viver com as contradições da própria democracia e, como referi, dentro dessas contradições não prescindir dos nossos valores e dos nossos princípios.

Os analistas apontam a crise de 2008 como o início dos populismos. O facto é que a crise já foi há onze anos, por isso, justifica-se continuarmos a citar a crise económica como a porta de entrada dos populismos?

Mesmo que não justifiquemos inteiramente, não podemos deixar de fazer um esforço para compreender que a crise financeira de 2008 tornou mais evidente uma certa falência do chamado neoliberalismo económico. Se por um lado contribuiu para uma maior mobilidade de capitais numa escala planetária, a verdade é que, por outro lado, se acentuaram chocantes desigualdades no rendimento das pessoas. E são essas chocantes desigualdades que também precisam de uma resposta mais globalizada. É por isso que o multilateralismo, ao nível das várias instituições, nos vários quadrantes regionais deste mundo, são tão importantes que participemos activamente dentro dessas instituições multilaterais. Para quê? Precisamente para encontrarmos mecanismos que permitam a regulação do desconcerto financeiro que abriu as portas para um descontentamento transversal que é uma das causas do populismo a que nos estamos a referir.

E o que podemos fazer agora perante este cenário populista? Devemos combate-lo permanentemente ou esperar que ele imploda? Esperar que as pessoas percebam que o discurso populista esbarra numa coisa chamada realidade?

Devemos combatê-lo, mas entendo que combatê-lo não passa apenas por discursos de lamentação. Tem de passar, igualmente, por afirmações muito claras daquilo que importa fazer do lado das democracias para lhe fazer face. E portanto as democracias têm de se empenhar, como referi, nomeadamente através das organizações multilaterais que integram, para resolver de forma adequada os problemas que batem muito directamente no anseio das populações. Falei há pouco do aumento crescente das desigualdades nesta sociedade em profunda transformação, podia falar também daquilo que são as ansiedades da juventude, é uma questão muito na ordem do dia, particularmente em sociedades de crescimento rápido, como são as sociedades africanas, e nós temos de encontrar resposta para lhes dar um horizonte de esperança. Não foi por acaso que o Presidente da República de Cabo Verde, na intervenção que fez na Assembleia Parlamentar, referiu uma iniciativa sua para promover um grande encontro de juventude da CPLP e da CEDEAO, para que estes problemas possam ser abordados.

E qual será o papel dos políticos? Porque muitas vezes o que vemos é que também cavalgam estas ondas populistas para que a sua mensagem consiga passar. Não estarão a cometer erros que mais tardam irão voltar-se contra si próprios?

Os políticos precisam de promover a popularidade, é aliás umas das condições da sua subsistência política e eu próprio falo da experiência vivida. Mas realmente é preciso não confundir o que é trabalhar para ter o apoio popular do que é o recurso aos populismos, que muitas vezes da parte dos políticos em exercício activo de funções passa pela promessa fácil, pelas promessas que não se podem cumprir, e portanto pela provocação mais à frente de desilusões que depois são muito mais dificilmente reversíveis. Os políticos têm de ser objectivos, comedidos, prudentes, mas firmes.

E devem evitar atacar os próprios parlamentos, como muitas vezes assistimos.

Sobretudo não devemos fazer do Parlamento, na medida do possível, o bode expiatório de todas as frustrações, como tendencialmente acontece. O Parlamento é, pela natureza do seu funcionamento, na vida das sociedades democráticas o órgão de soberania mais exposto à opinião pública. É aquele que mais evidencia a forma aberta de funcionar e portanto é aquele que justamente mais permite a crítica à sua actividade. Naturalmente os políticos, mesmo em sede parlamentar, devem ser os mais responsáveis possível, conscientes de que a sua atitude é sempre um exemplo para aqueles que seguem de perto aquilo que fazem, mas não há democracia onde não houver parlamento, isso tenho por inteiramente adquirido.

O Parlamento, por outro lado, também deve ser cada vez mais transparente, prestador de contas, no controlo dos gastos públicos, porque também é isso que faz muitas vezes com que a opinião pública considere que os deputados não fazem nada.

Estou perfeitamente ciente disso. Falando da experiência da Assembleia da República portuguesa, estamos precisamente numa fase em que muitas questões estão a ser reequacionadas. Temos uma comissão – chamada comissão para a transparência – onde muitos dos aspectos do estatuto dos cargos políticos, das suas responsabilidades, do modo de exercício da sua actividade, estão a ser reequacionadas e vários dos regimes que, digamos, suportam a actividade política, incluindo o próprio regime remuneratório, estão a ser reflectidos com este sentido de que precisamos de aperfeiçoar o funcionamento das nossas instituições para com isso ganhar a aceitação e a confiança das pessoas.

Não devemos ter a democracia como um dado adquirido.

A democracia não é um dado adquirido. A história demonstra-nos que mesmo aqueles factores de progresso que, num certo momento, pensamos que estão definitivamente consolidados, infelizmente não é assim. A história não tem um sentido linear, a história tem avanços e tem recuos, tem contradições e é dentro dessas contradições que temos que nos saber mover para defender a matriz essencial, que passa pela defesa dos direitos humanos, passa pela convivência entre os povos, passa pelo desenvolvimento da paz e passa por acreditarmos que é através da reunião dos povos em instituições multilaterais que encontraremos respostas conjuntas para os problemas que temos.

Por falar nisso, a CPLP é uma instituição multilateral, a questão da mobilidade tem sido central, muitas vezes os populismos aparecem porque temos medo do desconhecido, portanto, a mobilidade será fundamental para nos conhecermos cada vez melhor e para o combater?

O desconhecido implica muitas vezes uma tendência para nos retrairmos e quando nos retraímos passamos a desconfiar do outro. Temos de fazer as coisas precisamente ao contrário. É promovendo as nossas culturas, a criatividade dos nossos escritores e artistas, que nós compreendemos que as nossas diferenças só nos enriquecem. E é desse enriquecimento que ganharemos a condição para o progresso mais sustentado para as nossas sociedades.

E como conhece todos estes países sabe que é mais o que nos une do que o que nos separa.

Independentemente das vicissitudes históricas que o passado regista, e incluindo essas próprias vicissitudes, temos agora este enorme legado que nos permite, em democracia, cultivar da melhor forma possível.

A mobilidade é um dos temas fortes da presidência cabo-verdiana da CPLP. Acredita que serão dados passos objectivos rumo a essa concretização?

Creio que esta Assembleia Parlamentar está a dar um impulso muito significativo aos objectivos de abrirmos cada vez mais a comunidade da CPLP ao conjunto dos cidadãos membros dos nossos países. Esta ambição é tanto mais relevante quanto teve o empenho tanto do presidente da Assembleia Nacional como do Presidente da República de Cabo Verde, que nas suas intervenções manifestaram um forte empenhamento durante o seu período na presidência da CPLP para que este objectivo seja alcançado. Naturalmente que há aspectos que têm se ser ponderados ao nível dos nossos executivos, porque se trata, primeiramente, de fazer o levantamento técnico das situações em que, nomeadamente, a política de vistos de cada país está a ser processada e de que modo se concretiza acordos bilaterais, que também já existem, em relação a vários dos nossos países. Mas o objectivo e a ambição é esta: criarmos um factor de mobilidade que tem um destino final, a de criarmos um estatuto de cidadania dos cidadãos lusófonos. E este estatuto irá ser da maior relevância quer para a mobilidade da juventude, quer para a mobilidade dos trabalhadores, quer para o intercâmbio ao nível das nossas universidades, dos nossos institutos de investigação científica e tudo isto se tornar um factor positivo ao nível das nossas comunidades.

Defende que a comunicação será fundamental, daí a sua ideia de um canal lusófono à escala global.

A CPLP não deve ser apenas uma comunidade de Estados, não deve ficar pelas relações diplomáticas entre os nossos países, deve ser sobretudo uma comunidade de povos. E por isso há valências como a cultura e a permuta de criatividade que pode ser partilhado por todos. Por isso defendo essa ideia de criarmos um canal de televisão que abarque o conjunto dos canais de televisão dos nossos países, cuja grelha possa ser partilhada por todos e que possamos ter uma emissão à escala planetária. Para o conjunto dos países lusófonos seria extraordinário.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Jorge Montezinho,19 jan 2019 9:43

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 out 2019 23:22

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