Foi em Nhagar (Assomada) que Jassira Monteiro nasceu. Os primeiros passos foram aí dados e por aí fez o seu percurso até terminar o secundário. Depois, foi e andou “um bocado pela Europa, entre França e Portugal” a concluir os seus estudos em Tradução/Interpretação. Ainda em Portugal trabalhou no Alto Comissariado para as Migrações e Minorias Étnicas (ACIME), entretanto extinto, onde era mediadora sócio-cultural.
“Entretanto há cerca de 10 anos regressei ao meu país de origem”, com um diploma, experiência no activismo social e dois filhos.
Aqui chegada, trabalhou no sector privado e em 2016 integrou a equipa do falecido presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina, Beto Alves. Durante os quatro anos seguintes, assumiu o Pelouro da Cultura, Género, Comunicação e Imagem. No fim do mandato, aquando da preparação para as eleições Autárquicas de 2020, Jassira assumiu pela primeira vez o cargo de presidente da CM, uma vez que por imperativo legal, Beto Alves, que concorria à sua própria sucessão, teve de suspender funções.
Entretanto, a lista desta candidatura, na qual Jassira ocupava o segundo lugar, venceu as eleições e por breves semanas ela regressou ao seu lugar de vereadora.
Depois, como se sabe, o presidente faleceu… E Jassira assumiu funções. É, neste momento, a única mulher Presidente de Câmara em Cabo Verde.
Como surge o seu interesse pela política?
Eu não me interessei por política, inicialmente. Foi-me feito um convite para ingressar a lista [da candidatura do MpD às Autárquicas de 2016, em Santa Catarina] porque precisavam de mulheres. Na altura, o nosso presidente [Beto Alves] já era sensível à questão da participação da mulher na política e fez-me esse convite. Era uma coisa nova, até dá um friozinho na barriga, mas, sendo um desafio - como eu digo, nós aqui, as mulheres, gostamos de desafios -, aceitei e correu bem. Gostei bastante de estar na política, de trabalhar em prol de Santa Catarina. Fiquei a conhecer melhor o meu município, fiquei a conhecer melhor os desafios, os problemas, e, entretanto, fui seguindo, por assim dizer.
Falando das mulheres. Assomada é uma das maiores cidades de Cabo Verde, mas o município é muito rural e é nesse meio que se nota a persistência de estereótipos de género, desigualdade. Assim, quais são os desafios para a mulher no município, principalmente para a mulher rural?
A Assomada é o 3.º município do país e 2.º da ilha, mas é, sim, um município rural e convém referir que sendo um município com mais de 50% da população composta por mulheres, também mais de 50% dos agregados familiares são família monoparental, chefiada por mulheres, principalmente. Portanto, o desafio aqui é desenvolver políticas que vão permitir às pessoas do meio rural terem o seu meio de subsistência, no meio rural. Estamos a falar da coesão territorial, de as mulheres estarem bem onde estão, e sentirem-se como sendo parte de onde estão. É, então, desenvolver uma série de políticas que possam permitir à mulher do meio rural ter a sua subsistência no meio onde ela está, mas atenção: o nosso município é rural, mas as mulheres não querem só ter actividades ligadas ao meio rural. As mulheres começam a querer mais. Começam a querer, por exemplo, estar na política, ser professoras, a querer ser algo mais do que aquilo que muitas vezes a própria sociedade impõe. Neste sentido nós temos que ter abertura, temos de ter políticas para permitir às mulheres terem acesso e condições para se desenvolverem e desenvolverem as actividades tanto no meio rural como no meio urbano.
Políticas para elas estarem onde quiserem?
Sim, onde elas quiserem. O lugar da mulher é onde ela quiser, exactamente.
E concretamente em termos de combate aos estereótipos e à VGB?
Nós, em parceria com o ICIEG, temos um gabinete, um centro de apoio à vitima com apoio psicológico e apoio jurídico. Fazem atendimentos e também encaminhamentos, porque há casos, por exemplo, de violência extrema, em que a mulher tem de ser encaminhada para instituições que possam agir de imediato. Uma das outras coisas que nós estivemos a fazer foi sensibilização, nas escolas, com o psicólogo. Penso que para erradicamos ou diminuirmos a violência baseada no género temos que começar a trabalhar a camada jovem. E não trabalhar só as mulheres, trabalhar os homens também, porque aquilo que nós percebemos quando estamos mediante esse tipo de situações de VGB é que muitas vezes a própria vitima não sabe que é vitima deste tipo de violência. Isto tem a ver com estereótipos, tem a ver com cultura, tem a ver com o papel que nos é dito desde pequenas que é o nosso, que é o papel de mulher submissa, que aceitar muitas vezes a agressão - que não passa só pela agressão física, também passa pela psicológica. A sensibilização é muito importante e, para isso, temos materiais de informação das escolas; nas comunidades, fazemos visitas às localidades onde reunimos com a população no sentido de sensibilizar para essa questão da Violência Baseada no Género.
O papel atribuído à mulher é mais passivo, submisso como dizia. A Jassira está numa posição de liderança. Como a população a vê nessa posição. Afinal é só a quarta presidente desde que há autárquicas, ainda não houve muitos exemplos...
Não, não houve. Às vezes dizem, uma presidente não se pode comportar assim, ou deve-se comportar assim. Aquilo que eu costumo dizer é que não existe essa questão de uma presidente ou de um presidente. Há a figura do presidente que não passa obrigatoriamente por ser mulher ou homem. Nós temos de começar a desmistificar essa questão da autoridade. A questão da liderança está associada a um certo género e a certa classe social, é claro. Falo do meu caso específico, a forma como foi [a chegada à presidência], pode ter chamado a atenção. Sou mulher, a primeira na nossa ilha. Não vou dizer que não houve descrença, cepticismo, estranheza, mas também houve uma onda de muita solidariedade. E como eu costumo dizer, sendo o primeiro caso, tem que se dar o exemplo. Tenho que mostrar que eu estou tão habilitada quanto um homem para gerir o município, para gerir uma Câmara Municipal. Mas não é uma única figura, do presidente, que gere a Câmara. É toda uma equipa, agora, tem de ter alguém na liderança. Portanto, é normal que suscite inicialmente alguma estranheza, mas o caminho faz-se, fazendo. Então, a cada dia que passa eu vou ultrapassando mais um desafio, a cada dia que passa eu vou influenciando, espero que de maneira positiva, uma mulher de Santa Catarina, no sentido de perceber que pode sim estar nos lugares de liderança.
Falou da equipa camarária. Como lidam com o facto de estar uma mulher na liderança?
São colegas do anterior mandato. Em relação aos colegas não senti nenhuma desconfiança, ou desconforto. Nós trabalhamos muito bem no mandato passado, e neste mandato, aquilo que tem havido é uma onda de solidariedade em torno da figura da presidente. Os colegas estão muito solidários, muito próximos, muito disponíveis, até porque sabem que psicologicamente nós passamos por um período terrível. Estamos a tentar ultrapassar isto, e vamos ultrapassando todos os dias.
É uma mulher na política, e mesmo não tendo sido cabeça de lista, andou nas campanhas. Estamos agora a começar nova época de campanha eleitoral [agora para as legislativas]. Como é andar no terreno, sendo mulher?
Eu tenho sentido, como disse, uma onda de solidariedade. E as mulheres, que inicialmente até podiam estar mais cépticas, gostam, apoiam. A mulher normalmente é muito espontânea, quando vai manifestar o apoio, sobretudo nos encontros. Porque estamos no mês de Março, mês da mulher, temos feito um ciclo de conversas com mulheres. Neste momento, devido à pandemia, é a equipa camarária quem se desloca às localidades, e nas conversas que nós temos tido, as mulheres acreditam, dão força, querem apoiar e revêem-se na figura da presidente, por ser mulher. Portanto, isto significa que daqui a quatro anos pode ser que haja mais mulheres a querem entrar na vida política, pode ser que haja mais miúdas a quererem fazer estudos na área da política, pode ser que isto tudo influencie uma série de tendências mais tarde...
E o que pensa sobre a lei da paridade. Os principais partidos políticos não tinham nenhuma cabeça de lista. A lei da paridade veio fazer diferença ou é cosmética?
Não. A lei fez diferença. Porque a lei obriga à alternância. Agora aqui há uma outra questão que importa aqui termos em conta. Será que houve mulheres a querer ser cabeça de lista?
O que está a afastá-las?
Houve muitas mulheres que foram eleitas presidentes das Assembleias Municipais, mas nas Câmaras Municipais não. O que aconteceu? Será que as mulheres não se posicionaram? Será que as mulheres quiseram, mas não lhes foi dado ouvidos? Esta é uma questão a que eu não posso responder. Agora, a lei da paridade, obrigando à alternância, já fez bastante, porque temos de ter, hoje, mais participação ou mais presença das mulheres nas listas.
Não será questão de liderança. Temos mulheres, muitas, a liderar Associações, ONGs... o que as afasta da política? É a política, em si, ou o modo como se faz política?
Eu acho que tem a ver com a forma como se faz política. Muitas vezes a sociedade considera que somos o sexo mais frágil, mais sensível, então muitas vezes as mulheres podem querer fugir desta área porque não estão confortáveis em, por exemplo, responder aos ataques, porque os há. Há toda uma série de preconceitos contra a mulher, porque a mulher tem um papel diferente na sociedade e em casa. Como eu disse, em cerca de 12 mil agregados familiares aqui em Santa Catarina, 52 [por cento] são chefiados só por mulheres. Portanto, há um grande peso que está associado só à mulher e que a impossibilita, às vezes, de ter tempo e ter disponibilidade para se dedicar à política. Pode ser isto. Pode ser a questão da forma como se faz política porque muitas vezes ela é agressiva, fere a sensibilidade da mulher. Agora.. há momentos em que a mulher tem de se munir de indiferença e seguir em frente.
Dizia que mais do que ser homem ou mulher interessa é a figura do presidente. Mas, faz diferença ter mulheres na política?
Faz, se a mulher gosta de fazer política. Não queremos uma lista paritária só para ter mulheres ali, a fazer figura. Queremos mulheres interventivas, mulheres com ideias, mulheres que tenham pulso, no sentido de trabalhar para o desenvolvimento do município e do país em si. Faz diferença. Há uma forma diferente de fazer política. A mulher, pelas suas particularidades, tem uma forma de abordar que é diferente da do homem. Agora, a política é um acto nobre. Tanto a mulher como o homem podem fazer e fazê-lo bem. É preciso é querer fazer.
Saindo da esfera meramente política, e falando de si em especial. Que mulheres a inspiram, seja a nível mais pessoal, seja a nível de figuras “públicas”?
Muitas… Não posso deixar de falar da Isaura Gomes, porque foi a primeira mulher na política (primeira mulher deputada e a primeira a ser eleita presidente da Câmara Municipal, em 2004, em São Vicente). Admiro-a. Estou numa posição que às vezes sei que é exigente. Há mulheres que eu considero amigas que me vão influenciando…Há as mulheres do meio rural, com quem me identifico muito porque nasci cá, cresci cá, a minha mãe é daqui de Santa Catarina, eu vivo no meio rural. Admiro bastante a força da mulher do meio rural porque é uma mulher que pode estar a passar por inúmeras dificuldades dentro de casa, mas sai à rua... Não quero aqui falar de referências, de nomes, mas da mulher cabo-verdiana em si, a figura da mulher cabo-verdiana influencia-me bastante.
Há muitas mulheres cabo-verdianas, com vidas e características diferentes. Qual o denominador comum destas mulheres? Dito de outro modo, no dia da mulher cabo-verdiana que qualidades ou características gerais estamos a exaltar?
A Força. A força da mulher, a força que a move. Seja citadina, seja rural, seja do Barlavento, seja do Sotavento, a característica seria a força, sim.
Alguma mensagem que queira deixar neste dia da Mulher Cabo-verdiana?
À mulher que acredite mais em si mesmo, porque a mulher, quando quer e decide, consegue fazer tudo. E à sociedade em geral que acredite na força da mulher e que esta tem poder igual ao homem. Não podemos ignorar que a nossa sociedade ainda é machista, mas temos de desbravar terreno e há de haver sempre uma pessoa para dar o pontapé de saída. Que sejamos nós, e amanhã, quem sabe, outras.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.