Os 100 dias da presidência de José Maria Neves em análise

Assinalou-se esta quinta-feira, 17, os 100 dias da investidura do Presidente da República, José Maria Neves. O Expresso das Ilhas convidou quatro analistas, António Ludgero Correia, António Alte Pinho, José António dos Reis e Carlos Carvalho para fazerem o balanço do período em referência, tecerem considerações sobre os sinais que o novo PR já emitiu do que será a sua magistratura de influência e como pensam que vai funcionar a “coabitação” com o actual governo.

“Interventivo, acutilante qb, indo a todas”,

Ludgero Correia

Para António Ludgero Correia, os 100 primeiros dias da presidência de JMN não destoaram do previsto: interventivo, acutilante qb, indo a todas. “Prometeu ser fiscalizador e tem-no sido. Disse que tinha umas quantas bandeiras, mas ainda está acenando com demasiadas, sendo certo que a procissão ainda vai no adro, havendo, por conseguinte, tempo para se fixar naquelas estrategicamente relevantes”, acrescentando que um tanto ou quanto inusitado é o facto de o PR “se permitir tiques de suserano e de adoptar, em algumas intervenções um estilo meio panfletário, com um não-sei-quê de sindicalista”.

Questionado sobre os sinais que o PR já emitiu do que será a sua magistratura de influência, o analista afirma que o novo PR quer que todos saibam, e sintam, que está presente, que está atento a tudo.

“Contudo, estranha que aceite, de forma tão descontraída, a espécie de vassalagem com que o Chefe de Governo o brinda, vez por outra.

Conquanto não veja UCS como senhor da malícia necessária para fazer JMN parecer um corresponsável pela governação e não mero parceiro institucional, a verdade é que algumas atitudes do PM dão que pensar. Submete o Orçamento de Estado ao PR ainda antes de o entregar no Parlamento; consulta-o sobre um sem número de medidas a adoptar; enfim, o PM parece agir com boas intenções, mas, a final e se as coisas não correrem de feição, bem que poderá querer partilhar as responsabilidades com o PR. Não é coisa para tirar o sono a JMN, mas reduzir-lhe-ia as margens de manobra caso se recusar (como certamente recusará) aceitar a copaternidade por falhas da governação que avançaram com o seu beneplácito prévio”.

Por outro lado, acrescente o analista, a forma como tem abordado algumas questões, posicionando-se demasiado cedo em relação a conflitos de interesses, pode complicar o seu papel de reserva moral da Nação. “Tomando posição demasiado cedo, por exemplo, na questão do segredo de justiça, ultrapassou as associações profissionais (p.e. AJOC, Ordem dos Advogados, etc.), reduzindo o impacto da intervenção destes e contribuindo, inequivocamente, para desviar o foco da questão precípua (que seria a eventual responsabilidade de um membro do atual Governo na morte de um cabo-verdiano)”.

Ludgero Correia avalia positivo a forma como a “coabitação” com o governo tem funcionado nos primeiros 100 dias. “Para início de conversa, diria que está funcionando bem. Alguma subserviência de UCS em relação a JMN (que parece agradar a este) e um UCS ouvinte atento de JMN ajudaram”, o que segundo Ludgero Correia não será nenhum entrave a uma coabitação perfeita, cada um fazendo o seu papel, constitucionalmente estabelecido, se respeitando e agindo em estreita, e estrita, cooperação constitucional”.

“No final, o sucesso da coabitação dependerá do nível da interacção entre a personalidade de JMN e a do PM, então modelada pela Direcção Nacional do partido que suporta o Governo. O que, à partida, não augura nada de mau”, comenta.

“Ele [José Maria Neves] é Presidente da República. E é isso que deve ser avaliado”,

Alte Pinho

À excepção da posição do PR em relação ao Orçamento do Estado, onde denota um sinal de fragilidade, o jornalista António Alte Pinho considera de igual forma positivo o balanço dos primeiros 100 dias do mandato presidencial. “Isto é, para relevar as suas reiteradas manifestações de colaboração com o governo, José Maria Neves não vetou o documento; mas, por outro lado, para dar um sinal simpático ao seu eleitorado, enfatizou a discordância. Foi um caso singular em três décadas de democracia. O Presidente da República não teve a coragem em ser consequente na sua crítica, para mais numa matéria (a dívida) onde, como se sabe, os seus governos também tiveram grandes responsabilidades. De todo o modo, o primeiro-ministro José Maria Neves foi avaliado em 2016, e o MpD ganhou as eleições de forma esmagadora. Mas, agora, ele é Presidente da República. E é isso que deve ser avaliado”.

Para Alte Pinho, o PR já emitiu nestes 100 dias vários sinais do que será a sua magistratura de influência. “Desde logo, iniciou o seu mandato com uma simbólica visita de cortesia à presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina, a única autarquia presidida por uma mulher. Uma Câmara, aliás, onde José Maria Neves nunca pôs os pés enquanto foi primeiro-ministro, apesar de Santa Catarina ser a sua terra natal. Parece-me claro: quis dar um sinal de que deseja ultrapassar o passado e assumir-se claramente como o presidente de todos os cabo-verdianos, visível no facto de, a par com Austelino Correia, ter prestigiado o Dia do Município, comparecendo no almoço oficial de 25 de novembro, e reiterando a sua disponibilidade para ajudar o concelho. E há mais dois aspetos que sinalizam essa sua intenção de ser o presidente de todos os cabo-verdianos: o seu empenhamento na campanha de vacinação – com rasgados elogios ao governo na condução do combate à pandemia - e a sua agenda de visitas aos municípios (para conhecer a realidade do país), muito na linha, aliás, do que havia feito o presidente Jorge Carlos Fonseca. José Maria Neves parece querer ser voz das necessidades locais e tenciona usar a sua influência a favor do desenvolvimento dos municípios e das populações.

Para Alte Pinho a coabitação está e irá continuar a funcionar sem incidentes de maior. “Agora, o que não se deve esperar é que José Maria Neves seja uma espécie de “rapazinho de recado” do governo, porque, como ficou provado nas eleições, não é isso que os cabo-verdianos e as cabo-verdianas querem do seu presidente da República”, considera.

“Uma certa impulsividade para intervir, opinar publicamente ou chamar atenção sobre determinadas matérias”,

José António dos Reis

Já para José António dos Reis, os 100 dias da presidência de José Maria Neves foram pautados por intervenções díspares, em vários domínios. “Contudo, pela limitação do espaço temporal do exercício do seu mandato, esse facto não permite traçar um perfil rigoroso do que será o seu estilo presidencial. Porém, podemos, nesse espaço de tempo, observar, sem poder tirar uma conclusão definitiva, uma certa impulsividade para intervir, opinar publicamente ou chamar atenção sobre determinadas matérias que bem o poderia fazer em espaços próprios e momentos mais avisado, e não quando o assunto está em pleno debate. O caso mais flagrante dessas intervenções intempestivas, prende-se com o seu pronunciamento sobre o conflito entre os jornalistas e o Ministério Público onde parece ter manifestado apoio público aos jornalistas, caucionando implicitamente a prática de violação do segredo de justiça, quando, se calhar, a prudência aconselharia uma postura de reserva, deixando que o tempo da justiça decorresse normalmente, e só depois se pronunciar. De qualquer forma, nestes 100 primeiros dias da sua presidência, apesar desses reparos, é forçoso creditar-lhe um balanço positivo”.

Creio que nestes 100 dias, sob reserva de que os dados disponíveis sejam escassos, o Presidente da República já emitiu sinais que deixam transparecer um maior intervencionismo que o seu antecessor, começa por responder o analista à questão do que será a magistratura de influência de José Maria Neves.

“Esta nossa afirmação alicerça-se nesta singela constatação, decorrentes de suas intervenções, nomeadamente aquela pontuada aquando da promulgação do Orçamento de Estado para o ano de 2022 e a devolução de um diploma, sem a devida promulgação, com o argumento de que é necessário o parlamento aprofundar o debate sobre a matéria. Em pouco tempo deu sinais que vai intervir, mesmo em matérias de opção política em que o executivo deveria ter a liberdade plena para executar as suas políticas de acordo com o seu programa legitimamente sufragado. É importante sublinhar este ponto:

a magistratura de influência é exercida na reserva e na intimidade dos encontros que o Presidente da República mantém com os seus interlocutores, e não na praça pública ou, pior ainda, através de mensagens enviadas a outros órgãos de soberania e divulgadas simultaneamente na comunicação social. A magistratura de influência não rima com excessivo protagonismo ou um certo ativismo, em que se procura aparecer por tudo e por nada e em querer parecer que está a impor a sua vontade ou a liderar a agenda política. Mas a magistratura de influência deve revelar-se sobretudo em discursos mobilizadores da nação ou em iniciativas que promovam grandes entendimentos nacionais ou, ainda, em exercício de pedagogia política, como foi o discurso presidencial aquando da comemoração do Dia da Liberdade e da Democracia a 13 de janeiro passado, onde se afirmou e se assumiu como estadista, com um discurso congregador federador das vontades. Esta é uma das funções primordiais do Presidente da República”.

José António dos Reis defende também que a coabitação entre o governo de Ulisses Correia e Silva e o Presidente da República será pautada por uma certa cordialidade, “embora o impulso inicial do Presidente da República possa indiciar uma evolução em direção contrária”.

“[ José Maria Neves] não veio para ser um simples corta-fitas”,

Carlos Carvalho

Para o historiador Carlos Carvalho, desde a sua investidura José Maria Neves mostrou que não veio para ser um simples corta-fitas. “Viu-se que teremos um PR actuante, talvez actuante demais, deixando vários recados ao Premier e seus subalternos. Desde logo, o novel Presidente marcou a diferença produzindo um discurso nas duas línguas de que fala a nossa Constituição. O facto de ter sido Premier durante três mandatos, conhecendo muito bem os principais e bicudos dossiers da res publica, ajuda a perceber estes 100 primeiros dias e como será sua actuação no futuro. Da actualidade interna à frente externa, o PR veio para deixar sua marca enquanto 1° Magistrado da Nação”.

Questionado sobre o que será a magistratura de influência do novo PR, Carlos Carvalho remeteu-nos para um artigo no qual mostrou-se convicto de que “conhecendo o PR que temos, ele, hoje, penderia seguramente por um regime presidencialista. Disto estou convicto. Tendo trabalhado, enquanto Premier, com três Presidentes, JMN sabe e bem o que significa o PR não poder fazer muita coisa e só se refugiar na “famosa”: “vou usar a minha Magistratura de Influência”.

“Tendo sido eleito com votos de vários extractos da população cabo-verdiana, com a promessa de exercer uma larga magistratura de influência e de ser um Presidente sempre presente, nestes 100 primeiros dias vimos já efectivamente um JMN cumpridor, auscultando e intervindo sobre vários aspectos da vida política, económica, social e cultural. No plano interno (‘Presidente Ilha’), como disse na posse, a magistratura de influência traduziu-se já num cartão amarelo ao Governo aquando da homologação do Orçamento do Estado; num primeiro “veto presidencial” à legislação sobre o Fundo devolvido ao Parlamento para reanalise/reapreciação; nas visitas às Forças Armadas; nos vários encontros com várias personalidades da sociedade civil, com sindicatos, visitando algumas Câmaras Municipais; o envolvimento directo no combate a pandemia, com visitas as localidades mais resistentes à vacinação contra o vírus e no plano externo (‘Presidente Diáspora’), como também disse na posse, com a primeira visita oficial a Angola, considerada de exemplar e altamente positiva por todos os integrantes da comitiva presidencial e os vários encontros tidos nesse país com a comunidade radicada nesse país, são sinais claros de que teremos uma Magistratura de efectiva Influência por parte do Presidente Neves”.

Relativamente ao funcionamento da “coabitação” com o governo, o historiador lembra que foi José Maria Neves quem inaugurou “esta praxis politicae, no Cabo Verde pluripartidário, portanto, sabe e bem o que isso significa; foi o único PR que conheceu essa convivência, por sinal sã e pacífica, nesta nossa bipolarizada sociedade”, concluiu. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1055 de 16 de Fevereiro de 2022. 

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