Relembrar os 50 anos do processo de saneamento político em Cabo Verde

PorAntónio Monteiro,30 mar 2025 10:46

Completaram-se, no passado sábado, 50 anos da publicação do Decreto-Lei nº 12/75, de 22 de Março, promulgado pelo Governo de Transição de Cabo Verde, ao abrigo do qual se procedeu ao saneamento político dos funcionários cabo-verdianos que não davam garantias de idoneidade para colaborar activa e lealmente no processo de descolonização e independência de Cabo Verde. Nesse processo foram demitidos da função pública, entre 17 de Maio e 2 de Julho de 1975, 18 cidadãos e, a 13 de Dezembro de 1975, foram aposentados compulsivamente dois funcionários. Este Decreto-Lei só viria a ser revogado 15 anos depois, na sessão de Maio de 1990 da Assembleia Nacional Popular. O jurista Eurico Pinto Monteiro recorda na sua página do Facebook, cujos extractos reproduzimos abaixo, “os tristes eventos de um tempo que passou, mas que marcaram, negativa e indelevelmente, algumas famílias cabo-verdianas!”

“Com a queda do regime colonial e fascista português, a 25 de Abril de 1974, para além da decretação, de imediato, do fim dos organismos fascistas (órgãos de soberania, policias politicas, União Nacional/ Ação Nacional Popular etc.) tomaram-se, algum tempo depois, providências outras para a exclusão do setor público de todos quantos que, nele então enquadrados, possuíssem um comportamento contrário ao espírito da ordem democrática estabelecida e revelassem sua inadaptação ao novo regime democrático.

Neste contexto, foram, assim, banidos do serviço públicos muitos elementos vinculados aos órgãos de repressão e propaganda do regime fascista, assim como todos aqueles que eram os dirigentes operacionais do odioso regime.

II

A legislação (revolucionária) que, em Portugal, dava cobertura a tais medidas (Decreto-Lei n.º 277/74 de 25 de junho) foi, com adaptações, tornada extensiva a Cabo Verde, em julho de 1974 (Portaria n.º 418/74 de 6 de julho), ficando encarregada da sua cabal execução a Comissão Provincial de Reclassificação cujos membros foram designados por despacho do Governador Colonial de 22 de outubro de 1974 (Cfr BO nº 44/74, de 2 de novembro).

A Comissão Provincial de Reclassificação, quando propusesse, nomeadamente, aposentação ou demissão de qualquer funcionário ou agente, deveria fundamentar a sua proposta, tendo sobretudo em conta os seguintes aspetos:

a) Comportamento contrário ao espírito da ordem democrática estabelecida, revelado já depois do dia 25 de Abril de 1974; e

b) Factos que comprovadamente revelem a inadaptação do funcionário ao novo regime democrático.

Da decisão cabia recurso contencioso para o Tribunal Administrativo, sedeado em Lisboa, o que não facilitava a pronta justiça aos saneados politicamente, em Cabo Verde, na medida que os mesmos teriam que constituir advogado naquela cidade.

III

A legislação portuguesa (revolucionária) mandada aplicar a Cabo Verde, embora avançasse para o saneamento das instituições, (purgas politicas na Função Pública), era de tom moderado, não indo obviamente ao encontro dos apelos dos revolucionários cabo-verdianos que reivindicavam uma dura punição dos que tinham pactuado diretamente com o regime colonialista e fascista português.

Os dirigentes cabo-verdianos do partido fascista (União Nacional/Ação Nacional Popular e de outras organizações fascistas, v. g. a Mocidade Portuguesa, tornaram-se inativos, desde a primeira hora da queda do Governo de Marcelo Caetano.

Por tal razão, e uma vez que o espírito da ordem democrática a instaurar em Cabo Verde, devido aos graves acontecimentos de Dezembro de 1974 (tomada da Rádio Barlavento e prisões, sem mandado judicial, de cabo-verdianos acusados de não sintonia com o processo de descolonização e independência), deixou de prevalecer, perdendo a lei a sua razão de ser… daí a grande dificuldade de a Comissão Provincial de Reclassificação levar a cabo a sua missão, não tendo apresentado quaisquer resultados do encargo que lhe fora atribuído…

Face a situação de impasse no saneamento da Função Pública, o Governo de Transição de Cabo Verde reviu em profundidade o quadro jurídico vigente, de modo a colocar o foco no processo de descolonização e independência, e não já no processo democrático que perdera crescentemente peso e não era preocupação dos políticos à época, adotando uma lei viril que reforçara o esforço de saneamento politico ou purga política, da legislação até então vigente.

IV

Nesse sentido, foi editado pelo Governo de Transição de Cabo Verde, o Decreto-Lei nº 12/75, 22 de Março, que, além do mais, adotara medidas mais enérgicas e “urgentes para sanear e dar maior eficiência à função pública, quer pelo afastamento dos funcionários que não derem garantias de idoneidade para colaborar ativa e lealmente no referido processo (isto é processo de descolonização e independência) quer pela respetiva reclassificação, tendente a uma melhor gestão dos recursos humanos”, conforme se lê do seu preâmbulo.

Os servidores civis do Estado, serviços e empresas públicas, autarquias locais e demais pessoas coletivas de direito público que revelassem ou viessem a revelar comportamento contrário ao processo de descolonização e independência, seriam imediatamente afastados da função pública, através de demissão ou aposentação compulsiva, nos termos estabelecidos pelo citado diploma.

O legislador considerou expressamente nove situações integradoras de tal comportamento, destacando-se, aqui, apenas três: (i) defesa ativa da situação colonial; (ii) apologia da dependência política de Cabo Verde; e (iii) participação, sob qualquer forma, em movimentos, organizações ou ações de carácter político ou ideológicas defensoras ou prosseguidoras de interesses contrários ao processo de descolonização e independência de Cabo Verde.

Todo o servidor público que questionasse o processo de processo de descolonização e independência poderia ser investigado com vista ao seu afastamento da função pública! Era o preceito legal.

Seriam, ainda, imediatamente afastados da função pública, por demissão, além dos funcionários ou colaboradores da extinta PIDE/DGS, todos os que participaram ativa, consciente e notoriamente nos quadros dirigentes da Mocidade Portuguesa, da Liga dos Graduados da Mocidade Portuguesa, da União Nacional e da Ação Nacional Popular ou em comissões de censura.

V

Para execução do citado diploma foi criada, em cada um dos grupos ilhas de Sotavento e de Barlavento, uma Comissão de Saneamento e Reclassificação, com competência para “apreciar todas as queixas, reclamações e exposições que, sob qualquer forma, lhes forem dirigidas, sem prejuízo de oficiosamente proceder a todas as diligências que entendam conveniente à prossecução das finalidades” a seu cargo.

A Comissão de Saneamento e Reclassificação era constituída por três membros, sendo um magistrado judicial ou do Ministério Público - que presidia -, um oficial das Forças Armadas em serviço em Cabo Verde e um representante do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Na altura, enquanto na Comarca da Praia só havia um magistrado togado, o do Ministério Público, em condições de ser provido no cargo, vindo a recair sobre este inelutavelmente a presidência. Já na Comarca de Barlavento com dois magistrados togados, a escolha recaiu sobre o Juiz de Direito.

O legislador, ao ter feito a opção de designar um magistrado para a presidência da Comissão de Saneamento e Reclassificação, quis ter garantia segura de que a lei seria pontualmente executada, afastando-se assim da Função Pública todo e qualquer servidor público que questionasse o processo de descolonização e independência tal como era concebido pelo PAIGC.

As penas de demissão ou de aposentação compulsiva, uma vez proposta, fundamentadamente, pela Comissão de Saneamento e Reclassificação, com o parecer do Ministro de quem o funcionário dependia, era da competência do Conselho de Ministros, não cabendo delas recurso contencioso para o Tribunal Administrativo sedeado na Praia. Logo, a proposta da Comissão de Saneamento e Reclassificação não era, obviamente, vinculativa, como não poderia deixar de ser!”

Depois da independência nacional, a 5 de Julho de 1975, o novo governo do PAIGC e a mais de um ano e meio após o 25 de Abril, a queda do regime de Salazar/Caetano e o desmantelamento da PIDE/DGS resolveu retomar o saneamento de pessoas na administração pública a pretexto de impedir que “ficassem impunes aqueles que de algum modo com essa odiosa instituição”. Para isso, o Governo, através do Decreto-Lei 36/75 de 18 de Outubro, decretou que o Ministério Público e a Direcção de Segurança são encarregados de instaurar processos a suspeitos de colaboração com a PIDE/DGS. Penas de 2 a 8 anos são contempladas para os provados agentes e informadores, de um ano para os denunciantes pontuais e de seis meses para os que, no exercício da função pública, “...revelaram especial zelo na colaboração com a extinta PIDE/DGS, contribuindo espontaneamente por qualquer outro modo para facilitar a acção repressiva da mesma”. Uma outra pena, prevista para todos os culpados, era “...a demissão automática da função pública e a perda de todos os direitos políticos pelo período de 8 a 12 anos”.

Essa lei conjuntamente com a Lei do Boato, Decreto-Lei 37/75 de 18 de Outubro, tiveram o efeito desejado na sociedade. Ninguém, muito menos os funcionários públicos, poderia pensar estar fora da alçada da polícia ou livre de denúncia. Alguns processos de saneamento e alguns julgamentos por crimes de divulgação de boatos foram suficientes para tornar credível a intenção de as aplicar sempre que se mostrasse necessária.

Só quinze anos depois essas leis seriam revogadas. Recorde-se que, no âmbito da abertura política em Fevereiro de 1990, a Assembleia Nacional Popular, na sua sessão de Maio, revogou as disposições legais que, segundo o então presidente da ANP, “…restritivas de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, que perderam actualidade, na presente ambiência política…” designadamente a Lei do Boato de nº 37/75, a Lei de Prisão Preventiva nº 95/76 e o artigo nº 149 do Código Penal. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1217 de 26 de Março de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:António Monteiro,30 mar 2025 10:46

Editado porDulcina Mendes  em  31 mar 2025 12:18

pub.

pub
pub.
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.