“Em criança, eu não encontrei em casa instrumentos musicais e também não tinha artistas na família. Mas a minha mãe cantarolava muito. Eu, ainda muito menino, ouvi-a a cantar e queria saber o que significavam aquelas palavras. Prestava muita atenção às letras das músicas e queria saber por que é que quem as escrevera as fez assim, o que queria dizer com isso e aquilo…”.
Aquilo que alguns encontraram em livros a ele foram as músicas que lhe mostraram. As palavras e as histórias que carregavam eram o maior fascínio que as músicas lhe traziam.
“Na escola, comecei a escrever poesia para as meninas e os colegas pediam-me poemas para oferecer às namoradas. Isso estimulou o meu lado romântico”.
Mas queria mostrar o que escrevia a mais gente. E a forma que encontrou de o fazer foi transformar os seus poemas em música. Em 2007 compra a sua primeira viola e aprende com o amigo Di de Paula as notas musicais.
“Ele escreveu-mas num papel e eu fui praticando. E assim aprendi a tocar. A minha ideia era simplesmente musicalizar a minha poesia. Eu digo sempre que o meu instrumento é a minha voz e a minha poesia. Era o único atrevimento que eu tinha de início. E que a música ficasse com a minha “linha”. Não queria soar igual a outros”.
Romeu di Lurdis conta-nos esta e outras histórias na pequena sala onde prepara o espectáculo de apresentação do seu primeiro disco, “Amoransa”. O nome é um neologismo a partir das palavras amor e esperança (na língua cabo-verdiana speransa).
“”Amoransa” porque há duas forças que me movem e me levantam quando tenho as minhas dificuldades: Amor e Esperança. Não tive dinheiro para gravar este disco, mas tive amor e esperança. Todos os músicos que me acompanharam perceberam isso, assim como perceberam o meu compromisso com a raiz, com a cultura”.
Diz também que a escolha do nome para o disco foi para evitar dar-lhe o mesmo nome que algum dostemas que o compõem. Algo que entende que pode condicionar os ouvintes e mesmo as rádios no momento de passar as músicas do disco. Até porque a maioria das músicas do disco já passam há muito nas rádios.
“Amoransa” é um disco de originais sem o ser. Explicamos. As músicas nunca tinham sido gravadas em disco. Mas algumas já existem há dez anos ou perto disto e já tinham sido registadas numa gravação caseira com a qual conseguiu chegar a algumas rádios, nomeadamente a Rádio Voz di Ponta d’Água, a primeira a passar a sua música que chegou aos tops.
“Primeiro comecei a tocar as minhas músicas ao vivo, em encontros de escuteiros e na escola. Sempre fui activo no liceu e entedia que ali tinha que ser um espaço para a arte, para a música. Em 2008 participei num festival em que havia um concurso de músicas e ganhei”, conta ao relembrar os primeiros tempos.
As noites musicais em diversos espaços da cidade foram o laboratório ideal para testar os temas que ia criando. E não foram poucos. O público ia tomando contacto com a sua música e mostrando a sua preferência por este ou aquele tema.
Quando chegou ao programa Talento Strela 2, em 2013, já era razoavelmente conhecido dentro de um certo nicho, na ilha de Santiago. Guarda boas lembranças da participação no concurso que reconhece ter ampliado a sua visibilidade. Mas não foi em busca de visibilidade que se candidatara. Romeu chegou ao programa de revelação de vozes já um cantautor. Queria mostrar as suas músicas, o que foi um problema já que o formato do programa obrigava a que os concorrentes fossem intérpretes de temas já conhecidos do público e da banda suporte. Contudo, não desistiu e conseguiu cantar no programa de grande audiência televisiva um dos seus temas: “Mudjer” caiu no agrado do público e as rádios também tocavam o tema com frequência.
“Depois do concurso recebi muitos convites. Viajei muito: Lisboa, Holanda, Brasil, Senegal. De 2013 a 2015 não parei”. O ano de 2016 também foi marcante: actuou no Kriol Jazz Festival, no palco Kriol Zona e a abrir para os legendários Os Tubarões.
Os vídeos e áudios que ao longo destes anos foi publicando no YouTube e outras plataformas da internet também deixaram perceber, pelo número de visualizações, comentários e partilhas, quais eram as músicas preferidas. Daí não ter sido difícil escolher as que entrariam no álbum. Difícil terá sido deixar algumas de fora.
“Eu podia ter gravado apenas 12 temas ou 10. Mas não consegui. Era muito pouco para o número de músicas que já estavam em mim”, diz numa daquelas tiradas que fomos registando durante a conversa e que nos revelam um artista bem consciente do seu processo criativo e do que significa para sí a música, e a sua música em particular.
Rechear o disco com as músicas que tem criado até aqui parece ser também uma forma de manter o registo das suas criações, preservar o seu legado em construção.
“Eu sempre tive medo de morrer e levar coisas comigo. Por isso sempre que faço uma música nova mostro logo a alguém e quero mostrar ao máximo de pessoas”, confessa entre gargalhadas.
Antropologia Musical
Romeu di Lurdis preocupa-se muito com o respeito aos grandes compositores. Diz que não defende que as coisas devem permanecer “assim ou assado” mas que a “essência”, essa deve ser preservada. “Porque é a essência que vai falar de nós amanhã e mostrar o que se fazia antes. Então sempre senti uma certa obrigação moral de não deixar as coisas desaparecerem. Os que hoje são mais velhos já foram novos e começaram a fazer aquilo quando eram jovens. Então sinto que como jovem tenho uma divida com o país. Se a música me escolheu devo também tentar dar algo”.
E dá. Nascido e criado em Ponta d'Água, um dos bairros mais desfavorecidos da cidade e onde as desigualdades saltam à vista, o jovem criou um projecto social com o nome "Desenvolver a Comunidade Através da Cultura" através do qual promove o ensino de instrumentos musicais para crianças e adolescentes.
Um paradoxo que salta à vista na música do artista é que, ao mesmo tempo que reverencia a tradição, sobretudo através dos géneros que escolhe cantar, as suas composições são tremendamente contemporâneas. E ele sabe disso. Afinal reconhece que as suas músicas são “visíveis”. Isto é, facilmente alguém observa no dia-a-dia as coisas que ele canta.
“Eu até digo que eu não canto, eu conto”, ri-se. E exemplifica com o tema “Boita na Fazenda” – no álbum cantado em dueto com Eneida Moniz - onde descreve a ambiência na zona de Fazenda a partir de uma “hyace” que circula, antes de partir para o interior. Agradam-lhe também as biografias.
“Há pessoas nas pequenas comunidades que são tão populares, elas são o centro daquele pequeno mundo. A vida de uma pessoa é das maiores coisas que posso cantar. Sinto que estou a eternizá-las. Gosto dessa espécie de antropologia… Contar a vida das pessoas, as coisas simples do dia-a-dia... Inspira-me.”
Mas também conta coisas sobre sí próprio. Como no tema “Vida de Studanti” que diz que não teria conseguido escrever se não tivesse passado por aquilo que descreve no tema.
“Eu não criei aquela história. Eu lembrei-me. Porque foi uma fase da minha vida. É um tema muito forte e sempre que o canto, principalmente no meio académico, há pessoas que choram. É porque eu a canto com tristeza mesmo, porque passei por tudo aquilo. Mas fico mais triste ainda quando oiço alguém a cantá-la. Porque quando canto eu, tiro para fora a tristeza, já quando canta alguém eu recebo a sua tristeza”.
Porém acaba por ressaltar que o tema tem um final optimista. Aliás, a ideia da música é mostrar que ao fim de todas as dificuldades há um final feliz, tudo dá certo: “…Mas hoje, djan realiza. Fé, força, vitória… Mi é finalista”, canta o músico realçando o cumprir do sonho de um estudante universitário.
“Eu sempre cantei para estudar. Paguei a universidade com a minha música e isso me orgulha. É habitual ver pessoas a parar de estudar depois de começar a ganhar algum dinheiro, principalmente quem se dedica à música. Mas eu sempre pensei que a minha vida precisava de estudo. Eu gosto muito. Dá-me conforto e até ajuda na minha criatividade. Porque eu também quero cantar coisas que amanhã venham a ser estudadas”.
O artista licenciou-se em Gestão de Património Cultural e hoje está a fazer um mestrado em Artes Visuais. E sem esconder o orgulho conta sobre a ocasião em que um professor o dispensou numa disciplina quando ao invés de um tradicional trabalho escrito apresentou antes uma música da sua autoria.
“Tínhamos um trabalho da disciplina a fazer e o meu trabalho fi-lo em forma de música. O professor apreciou tanto que me dispensou. Era realmente um tema rico e com a atitude do professor senti que a música afinal era valorizada. Normalmente, na universidade só investigação apresentada em formato cientifico é que é trabalho. Ele foi um professor corajoso ao fazer aquela avaliação. Então passei a acreditar que a minha música podia ser terapia social e auxiliar académico. Queria que a minha música tivesse essa vertente educativa”.
Para apresentar o disco que começou a gravar há um ano, Romeu di Lurdis convidou para o espectáculo desta sexta-feira alguns dos artistas marcantes no seu percurso. Desde o amigo de infância Hélio Batalha ao ídolo Gil Semedo, cuja música plena de mensagens de superação foram sempre um incentivo. E também os Ferro Gaita, com o amigo Eduíno que sempre o apoiou, à cabeça.
Queria também ter no palco esta noite Princezito. O músico de Tarrafal, que admirava de longe e foi sempre uma referência, tornou-se um grande amigo e hoje está com ele no disco a cantar o tema “Ranja ku Mi”.
“É um artista que sempre cantou coisas que outros tinham “complexo” de dizer. Ele sempre me encorajou e ele gosta de batuco! Alguém gostar de batuco é algo que me encanta e chama a minha atenção, porque parece-me que é alguém que quer conhecer as coisas mais a fundo”, explica o autor de Amoransa.
Pelo palco ou na plateia do Auditório Nacional também vão estar alguns dos 23 músicos e cantores que o ajudaram a fazer este disco de estreia. Tem medo de dizer nomes e esquecer alguém. Mas ao longo da com conversa fomos captando alguns dos nomes. Como os dos músicos Di Jorge, Di de Paula, Benildo Correira, Júnior Barbosa e Yuri da Graça, que para além da guitarra assume a direcção musical da banda que o irá acompanhar no concerto. Ou Ronilda Ramos e Eneida Moniz que fazem os coros. Com a última também faz um dueto no álbum, assim como com Victor Duarte. Colega e amigo dos tempos do Talento Strela.
Há também a referir Rob Leonardo, em cujo estúdio XL Produções fez a captação, mistura e masterização e Ivan Medina, o director artístico do disco e que também fez a gravação da maioria dos instrumentos musicais para o CD no seu estúdio, Dr. Beats.
“É um disco familiar, que tem a participação de músicos com quem fui trabalhando estes anos. E sempre aberto às suas opiniões. São outras almas, com outra carga para por no trabalho. Eu sempre tenho receio que as minhas músicas fiquem a parecer umas com as outras, porque quando se tem a mesma produção tende a ficar parecido. Por isso convidei vários músicos para dar o seu toque e diferenciar as músicas”.
Não se estranha esta profusão de pessoas de que o jovem músico se rodeia ao se ficar a saber da sua natureza hospitaleira. É o próprio que resume esta sua característica: “Acho que no dia em que fizer a minha casa nem ponho porta, porque gosto de receber a todos”.
E todos estão convidados para o Auditório Nacional. Hoje, às 21 horas.