Carnaval na Praia, existe há décadas. Com as suas características próprias e sem concurso “apetecível”, durante anos os poucos grupos que foram surgindo insistiram em levar para a avenida Cidade de Lisboa aquilo que conseguiam criar com os parcos recursos financeiros e humanos de que dispunham.
Com os anos, a persistência dos grupos e a grande massa de populares que acorria à avenida para os ver desfilar fez com que a Câmara Municipal da Praia começasse a valorizar o esforço e a investir para imprimir qualidade ao desfile dos grupos.
Em anos mais recentes este investimento deixou de ser apenas o montante disponibilizado como prémio do concurso para passar a incluir um subsídio atribuído previamente aos grupos inscritos na competição, de modo a que possam custear a produção das fantasias, dos carros alegóricos e demais itens.
Outra aposta nos colectivos que ano após ano levam cor e fantasia às ruas da cidade foi as formações destinadas aos criativos dos grupos, nomeadamente a administrada pelo artista brasileiro Dudu Nobre.
A edilidade investiu também no espaço principal do desfile, providenciando bancadas amovíveis e seguras com cerca de 1000 lugares sentados que servem também à cidade em outros eventos culturais e desportivos. O financiamento desta infra-estrutura, no valor de 13 mil contos, terá sido feito com o orçamento da própria Câmara Municipal – que como outras autarquias recebe anualmente um montante proveniente do Fundo do Turismo – o que não deixou de causar incomodo junto aos que vêm nos investimentos da CMP no carnaval da capital um ataque à sustentabilidade do carnaval de São Vicente.
Polémicas à parte, o carnaval 2019 na capital já acontece em diferentes frentes, com diferentes nuances. É o caso do Bididó, manifestação antiga do carnaval na ilha de Santiago recuperada há quatro anos por iniciativa da jovem Hermem Freire.
Bididó
No carnaval de 2015surgiu no bairro de Vila Nova um grupo de jovens apostados em fazer renascer uma tradição antiga do carnaval em Santiago: o Bididó, uma figura mascarada com trajes feitos de farrapos velhos, com enchimentos na barriga e nas nádegas, máscara tosca e medonha na cara e que, entre piruetas e danças para divertir os adultos, assustava os mais novos sobretudo aqueles apontados como crianças mal-comportadas.
A ideia deste regresso às origens do carnaval na ilha cabe à jovem Hermem Freire que, de tanto ouvir a mãe referir as suas memórias de infância - quando no carnaval aconteciam as aparições do Bididó - resolveu retomar na capital esta tradição.
Conforme conta Hermem Freire, o personagem carnavalesco tem origem num mendigo que, muito tempo atrás, percorria as estradas do interior a pedir esmolas. Com os seus trajes esfarrapados o homem era alvo de troça por parte da criançada de quem se defendia tentado apanhá-las. A certa altura apareceram pessoas a imitar este personagem, a quem se atribuiu o nome de Bididó por ser acompanhado pela cantilena “é de bididó, é de tem-terém”.
“ Antes da independência Bididó acontecia sobretudo no interior. Era como se brincava o carnaval. Depois da independência, começaram as influências brasileiras e surgiram os grupos organizados, com carro alegórico”, faz lembrar a jovem.
Neste momento é um grupo de 20 jovens a recriar esta tradição. A mentora confessa alguma dificuldade em convencer outras pessoas a aderir, isso porque muitos têm vergonha de se fantasiarem assim.
De Vila Nova, onde começaram, já se deslocam a outros bairros da cidade e agora acompanhados de uma batucada. Nos bairros são recebidos com alegria, excepto pelas crianças mais medrosas que fogem dos mascarados.
A partir de 2017, a Câmara Municipal e o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas – através do Palácio da Cultura Ildo Lobo – passaram a apoiar o grupo de forma a assegurar que esta tradição local não se volte a perder.
O desfile principal do Bididó acontece nesta sexta-feira, dia 01, com início na rotunda Vila Nova/Fazenda rumo ao Plateau. Para a terça-feira de Carnaval Hermem Freire diz estar reservada uma surpresa.
Ariah do Norte
Em praticamente todos os grupos do carnaval da Praia encontram-se pessoas oriundas de São Vicente que, pelo seu amor ao entrudo, colaboram criativamente na produção dos desfiles e nas festas que animam esta época. Todavia, sentindo falta de uma das mais fortes componentes do carnaval de Mindelo – os mandingas de Ribeira Bote, aos quais cabe o anúncio da chegada da época da folia e o enterro do carnaval - em 2017 surgiu o grupo Mandinga Ariah do Norte.
“Havia um grupo de pessoas que, por razões profissionais ou financeiras, não conseguiam ir todos os anos a São Vicente brincar o carnaval. Então decidimos formar este grupo”, conta Evanir Paris, membro e responsável deste colectivo agora tornado associação.
Com esta ideia de recriar um pouco do espírito do carnaval d’Soncent, o grupo começou a desfilar na zona onde surgiram, Monte Vermelho, no Palmarejo. Agora formalizados na Associação de Mandingas Ariáh do Norte tem como membros, segundo Evanir Paris, pessoas de todas as ilhas num total de cerca de 70 elementos, sendo que 25 compõem a batucada.
Encontrar material para a fantasia dos mandingas e instrumentos para a batucada na Praia foi fácil, o que também confirma que carnaval da Praia já tem um mercado bem abastecido.
Se em 2017, quando desfilaram pela primeira vez, ficavam-se pelo Monte Vermelho hoje, a cada Domingo, deslocam-se a um bairro diferente da capital onde são recebidos em festa e há sempre uma canja ou outros petiscos para animar os foliões. De lá o desfile segue, passando por diferentes zonas, só terminando quando regressam ao Palmarejo.
O empenho do grupo é tanto que até já tem música. O tema “ Bem ma nôs”, criado por Evanir Paris e Jéssica Faial e com arranjos de Ivan Medina, faz parte da banda sonora que anima o cortejo e encontra-se disponível no YouTube. Há também um lema para este ano: “Bom feeling e cultura da paz”
Bem integrados no carnaval da Praia os Mandingas Ariáh do Norte abrem este sábado, dia 02, o desfile nocturno do grupo Batukasamba na avenida Cidade de Lisboa. Na terça-feira regressam à avenida como grupo de animação.
Por fim, reproduzindo na Praia um momento típico do carnaval mindelense, para Domingo dia 10 já está agendado o enterro do carnaval com cortejo a sair do Monte Vermelho rumo à praia de Quebra-Canela.
Competição
Depois de ter causado alguma confusão a possibilidade de sete grupos disputarem um lugar na competição oficial e o bolo atribuído pela Câmara Municipal – por edital reservado a apenas 6 grupos – a competição do carnaval 2019 fica afinal reduzida a 5 grupos oficiais. De fora do concurso deste ano ficam dois grupos já reconhecidos pelos praienses e pertencentes ao primeiro escalão: Estrelas da Marinha e Intervila.
Primeiro a anunciar a sua ausência do desfile deste ano, o Estrelas da Marinha (da Terra Branca) alegou razões internas e que terão que ver com a ausência do líder da agremiação do país.
Já o Intervila (da Vila Nova), no início de Fevereiro dizia estar já há alguns meses em preparativos mas, escusava-se a avançar o enredo do seu desfile. Agora o responsável do grupo, José Fernandes, confirma que o grupo desistiu de desfilar este ano e os motivos são de ordem financeira.
“A Câmara Municipal continua a não cumprir com aquilo que tinha prometido no ano passado, em que tinha anunciado 750 contos para cada grupo e depois só deu 600. E este ano são apenas 500 contos”, avança o presidente do Intervila que diz que, para além das dívidas que ainda têm do carnaval de 2018, o valor actual não só é reduzido como chega tarde.
“Os grupos de São Vicente recebem o subsídio primeiro; eles vêm para Praia e compram tudo. Quando finalmente recebemos a primeira tranche (em meados de Fevereiro) e chegamos às lojas chinesas já não encontramos tecidos e outros materiais em quantidade suficiente”, lamenta Fernandes que quer a primeira tranche do financiamento desbloqueada já na primeira semana de Janeiro.
Entretanto, os outros grupos – Vindos d’África, Vindo do Mar, Sambajó, Bloco Afro Abel Djassi e Maravilhas do Infinito – ultimam os preparativos para entrarem na avenida na tarde do dia 05 de Março.
Vindos d’África (Achadinha/Bairro Craveiro Lopes), grupo com mais de 30 anos de existência e campeão no ano passado e nos três anos anteriores, leva este ano para as ruas o enredo “Diversidade cultural - Cabo Verde e China” suportado por cerca de 400 figurantes distribuídos em 10 alas.
“Temos as maquetas prontas e vamos avançar. Temos oito costureiros a trabalhar connosco e o artista Anderson Teixeira, aqui da nossa comunidade, nos andores”, dizia-nos José Gomes, presidente do grupo, no início de Fevereiro.
Já o Bloco Afro Abel Djassi mantém aquele que tem sido o tema de fundo desde o seu surgimento: a história de Cabo Verde. No entanto, para este ano Gamal Mascarenhas Monteiro, o líder do conjunto, promete inovação nas fantasias, adereços e carro alegórico com que o grupo irá criar o enredo “Histórias de Cabo Verde - no cruzamento de identidades culturais”.
A música, onde instrumentos de sopro vêm juntar-se à percussão e voz, irá também tentar imprimir diferença no desfile.
“Vamos ter umas 20 alas e pelo menos um carro alegórico. Temos um novo designer, que já está a terminar os desenhos, e a batucada tem ensaiado sempre”, avançou o promotor cultural e criador do Afro Abel Djassi quando ainda faltavam semanas para o “dia D”.
A dinâmica no carnaval da Praia já é tão grande que, no ano passado, para além dos seis grupos oficiais desfilaram vários grupos organizados mas fora do escalão oficial. Casos houve de bairros, como Vila Nova e Achada Grande Frente, que levaram à avenida dois grupos: um no primeiro escalão e outro apenas para animação.
Estrelas da Marinha, da Achada Grande Frente, foi um desses grupos e surpreendeu pela qualidade apresentada, chegando a arrebatar prémios na sua categoria. Esta foi a razão deste ano terem candidatado ao escalão oficial.
Anita Faiffer, a dinamizadora do grupo, avança o objectivo de terem “cerca de 300 pessoas na avenida, em seis alas. A nossa batucada – os Soldados da Percussão - é formada por 50 pessoas. Já temos música, criada pelo compositor Jorge Tavares, e vamos gravá-la para podermos tê-la a passar nas rádios”.
Com o enredo “Tesouro do oriente, a rota das especiarias”, o Maravilhas do Infinito promete um desfile alegre e com muita qualidade.
Apesar das várias tentativas, o Expresso das Ilhas não conseguiu chegar à fala com responsáveis dos grupos SambaJó (Palmarejo) e Vindo do Mar (Achada Grande Frente). Os dois grupos têm como tema-enredo para o cortejo deste ano “Uma Viagem a Brasil” e “Cabo Verde em seis momentos”, respectivamente.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.