No entanto, é bom recordar que a rádio chegou tarde a Cabo Verde embora os habitantes do arquipélago desde cedo escutassem a Emissora Nacional ou a BBC. Depois dos pioneiros, técnicos do exército ou da marinha portuguesa, que construíram emissores artesanais e realizaram as primeiras emissões, surgiu em 1945 a primeira estação digna desse nome: a Rádio Praia, que deu origem à Rádio Clube de Cabo Verde. Na Ilha de S. Vicente foi fundada em 1946 a Rádio Clube Mindelo e em 1955 a Rádio Barlavento.
Nessas rádios a música cabo-verdiana contou desde sempre com um lugar de destaque na programação, a «morna» e coladeira, eram a música de eleição, porque na época, outros géneros musicais que existiam em Cabo Verde, como o batuque, o funaná e outros, não eram considerados… Esta não música só teria lugar na rádio depois do 25 de abril de 1974! Torna-se pois necessário analisar os conceitos/preconceitos da época para se compreender o percurso da Morna na rádio.
No contexto daquela época e até o dealbar da Independência Nacional, a morna e a coladeira eram considerads «folclore, música folclórica» porque, na categoria de «Música» estavam apenas a «música clássica» e as chamadas «músicas populares» que incluíam a música Pop (norte-americana e inglesa) os cançonetistas (ingleses, franceses, espanhóis italianos etc.) e pouco mais… A morna teve a sorte de se impor e ter naquela época a classificação «folclore» uma categoria que incluía a «música folclórica portuguesa» (fado, corridinhos, viras entre outros).
Na programação da Rádio Clube de Cabo Verde que foi sendo publicada de 1951 a 1962 na revista mensal “Cabo Verde Boletim de Informação e Propaganda” encontramos uma larga presença de música da «terra», primeiro e essencialmente, através da actuação em directo de conjuntos e cantores, depois através da passagem de discos e gravações. Nos «Subsídios» para a história daquela rádio in jornal Arquipélago n.º 165, de 7 de Outubro de 1965 encontramos a seguinte referência sobre o início das emissões: “organizámos programas de música directa, em que predominava a boa música caboverdeana, esforçávamos para que semanalmente pudéssemos pôr no ar tam apreciado género de programa.” Note-se, na época dominava o género musical Morna, a Coladeira só viria a conhecer uma afirmação/popularização a partir de meados dos anos 1950. Refere ainda aquela fonte a participação nas primeiras emissões de nomes de consagrados de músicos como o compositor de Mornas Jorge Monteiro ou cantor Fernando Quejas… Este, com o seu conjunto Nocturno ficou afamado pelas suas actuações na Rádio Praia, antes de partir em 1947 para Lisboa, onde estreia-se um ano depois na Emissora Nacional num “programa de rádio de grande audiência de Artur Agostinho.” Numa entrevista à Revista Emigrason, n.º 37, 1.ª Série/1995 Fernando Quejas recorda que nos programas, da manhã e “Serão para trabalhadores”, na Emissora Nacional começou por cantar música brasileira e “(...) lá foi singrando de programa em programa (...) introduzindo, «a pouco-e-pouco» algumas «mornas» que acabaram por ser muito apreciadas pelo público (...) até que um dia começou a aportuguesar um pouco as mornas a fim de serem melhor compreendidas, resultando daí, ainda mais prestígio e popularidade”. Diz ainda este cantor que “Desde pequeno o grande sonho era cantar um dia com uma (…) orquestra ligeira sinfónica com muitos instrumentos – violino, harpas e violoncelos, o que acabou por acontecer na Emissora Nacional, em Lisboa, com o Maestro Luís Gomes.”
Embora as primeiras gravações de música cabo-verdiana em disco de 78 rpm tenham sido realizadas a partir dos anos 1930 nos Estados Unidos, por conjuntos e cantores imigrantes cabo-verdianos, será a gravação discográfica a partir de 1950 em Portugal que vai ter um papel importante na divulgação da Morna. Fernando Quejas um dos pioneiros, grava ao longo de 10 anos mais de 30 discos EP 45 rpm. Abre-se então o caminho para a gravação em disco de muitos outros seus patrícios.
Nas rádios para além do disco (que na realidade não era muitos) recorre-se à gravação em fita magnética de grupos musicais e cantores locais. A Rádio Barlavento promove pode-se dizer, uma campanha de gravações nos seus estúdios, com vista a alimentar a meia hora do programa “Música da Nossa Terra” quatro vezes por semana, o que era muito, numa media de 3 horas de emissão por dia! Os grandes cantores da época, Titina, Djosinha, Bana, Cesária e tantos outros, todos gravam na Radio Barlavento, antes de um começo profissional no verdadeiro sentido.
A partir dos anos 1960 Roterdão transformou-se no centro de gravação/edição em massa da música de Cabo Verde, destaque para o cantor Bana e o conjunto Voz de Cabo Verde. Bana instala-se em Lisboa no início dos anos de 1970, reúne à sua volta os melhores músicos trazidos de Cabo Verde… pouco a pouco a capital portuguesa transforma-se na capital da música cabo-verdiana…
Em Cabo Verde, depois da Independência, há um «boom» musical originado agora pela emergência da tal «não música» que já falamos, que desperta e quer conquistar o seu lugar de direito junto com a morna e a coladeira. Na rádio, continua a política de promoção de artistas locais e de todos os géneros musicais, realizam-se sessões de gravação, promovem-se festivais… Na programação, a música cabo-verdiana ganha cada vez mais espaço, mas os músicos sempre insatisfeitos querem sempre mais… até que no Encontro Nacional da Musica em 1988 se estabelece um teto de 80%! Hoje acredito que se esteja nos 90%... Uma elevada quota que valoriza toda a música cabo-verdiana, em particular a morna.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.