O Senador Augusto Vera-Cruz cometera o hediondo crime de amar imenso a sua terra, tendo lutado denodadamente pelo progresso de Cabo Verde, durante dezasseis anos, no Senado. A ele, em grande parte, se ficará a dever a instalação do liceu em S. Vicente. Isso, porém, não interessava considerar. O homem pactuara com o colonialismo e era dono da mais luxuosa vivenda do Mindelo. De africano, não tinha nada, excepto a preferência pela cozinha regional. A figura dele era de um mondrongo, da cabeça aos dedos dos pés. O espírito dele vivia cangado nos telhados do Grémio Recreativo do Mindelo, palacete onde o ricaço recebia a fina flor da ilha. O Grémio herdara sem dúvida essa aristocracia, de cuja memória era preciso expurgar a cidade.
Teixeira de Sousa, 1994, p. 116 2.
Natural da ilha do Sal, Augusto Vera-Cruz foi um autodidata que se afirmou pela defesa da sua terra, no seu dia a dia como comerciante e bancário, agente consular da Inglaterra, Presidente da Câmara Municipal de Mindelo (1898-1901) e deputado por Cabo Verde no Congresso da República (1912-1926)3. Nesse fórum verberou “o Governo Português [que] não pode, não deve, não tem o direito de sacrificar o seu povo (…), [pois] não é justo nem digno proteger três monopolistas [do carvão] em detrimento de uma população de 160.000 almas” (Gazeta das Colónias, de 10 de agosto de 1925, p. 16). O reconhecimento da população de S. Vicente pela sua coragem está patente na fotografia publicada no quinzenário acima citado.
Liceu
Em 1917, num gesto altruísta, o Senador cedeu o seu “palacete” para nele se instalar o liceu, uma das causas por ele advogadas. No ato de inauguração do Liceu Nacional de Cabo Verde, em 19 de novembro de 1917, o Governador destacou “o ilustre filho destas ilhas, ex.mo sr. senador Augusto Vera-Cruz [que] com uma dedicada pertinácia de quatro anos, conseguiu que o parlamento da República votasse a lei n.º 701 [que criou o Liceu]” e afirmou: “Abre pobremente o liceu; casa alugada, pouco mobiliário escolar, nenhum material didáctico, mas temos bons professores (…). Durante o ano lectivo adquirir-se há o preciso, para que não nos envergonhemos de mostrar as nossas aulas” (Boletim Oficial, 21 de novembro de 1917).
O liceu permaneceu na casa do Senador durante três anos letivos, passando a funcionar, a partir de 4 de janeiro de 1921, no edifício do Quartel4.
Grémio e Rádio Barlavento
No ano de 1938 o Grémio Recreativo foi instalado na sede da “antiga vivenda Vera-Cruz (…), abriu com um baile oferecido pela respectiva direcção aos seus sócios”5. A seleta abertura deu o mote a uma existência de quase quatro décadas de “grandeza”, denunciada no verso da coladeira Grandeza: “li ca tem grême, ca tem praça, nos tud é meme chose”6.
Por detrás das grades do Grémio Recreativo de Mindelo, cachos de crianças mascaradas espiavam o burburinho (…). [O guarda-portão] corria de um lado para o outro a enxotar a garotada do passeio do Grémio. (…)
Só os sócios ou os convidados conseguiam ter acesso ao casarão, lugar de lazer e convívio, todavia de muita disciplina e compostura.
Teixeira de Sousa, 1994, pp. 9, 10, 12.
Em julho de1955, a Casa do Senador recebeu um novo inquilino – a Rádio Barlavento “uma voz portuguesa no Atlântico e uma voz cabo-verdiana no arquipélago”7.
Esta é a Rádio Barlavento, CR4 AC a transmitir na banda dos 75 metros, 3.955 quilociclos por segundo, desde Mindelo, S. Vicente de Cabo Verde. São 20 horas e três minutos. Passamos a apresentar o programa : o Disco do Ouvinte.
Carlos Gonçalves, 2019, p. 17.
A convivência da Rádio com o Grémio Recreativo, “clube da alta sociedade, dos finórios”, nem sempre foi pacífica. Um dos tempos críticos era justamente o “Disco do Ouvinte”. Muitas pessoas, que se dirigiam à secção do Disco do Ouvinte, entravam indevidamente no salão de festas, na sala de jogos do Grémio… para desespero “do porteiro fardado, em que se destacavam os botões dourados e o boné de oficial”8.
A convivência feita de contradições terminou com “a acção popular levada a cabo pelos trabalhadores, estudantes e funcionários de S. Vicente no dia 9 de dezembro [de 1974] que culminou com a extinção da Rádio Barlavento”.9
O porteiro não teve nem costas, nem braços, nem nada, para suster a avalanche humana forçando a entrada do Grémio para ocupar a Rádio Barlavento. (…)
À frente da horda revoltosa, foi o guarda portão, como seixo rolado pela onda. Centenas de pêaigêces atravessaram os corredores, parte dirigiu-se à estação, parte espalhou-se pelas salas, numa algazarra ensurdecedora. (…)
As senhoras entraram em pânico, interrompendo a canasta. Os cavalheiros deixaram as mesas de bridge, os utentes do bar vieram para a rua, enquanto mais e mais populares enchiam os cantos e recantos do clube, enquanto os líderes da invasão procediam à ocupação da rádio, onde, aliás, não encontraram qualquer tipo de resistência.
Teixeira de Sousa, 1994, p. 162.
Centro Nacional de Artesanato
Imagem do folheto Museu de Arte Tradicional, Ministério da Cultura.
A casa do Senador reabriu as portas em 1983 e nela se instalou o Centro Nacional de Artesanato que herdou o legado da Cooperativa Resistência (1976), dirigida por Manuel Figueira, que visava “promover uma escola e um museu de artesanato (…) e manter estreito contacto com os artesãos tradicionais”10. Esta missão tem sido cumprida, até ao presente, pelo Centro que, com novas abordagens estéticas, assumiu as identidades de Museu de Arte Tradicional e de Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design.
Um nicho da história das ilhas
Termino com uma ousadia interpretativa. A meu ver, este espaço de traça aristocrática é uma síntese da história nacional: contém a memória da relação paradoxal da elite cabo-verdiana com o poder colonial num jogo dúplice de ‘assimilação – nacionalismo – consciência de colonizado’ e simboliza a perceção social da educação (o liceu) e dos bens culturais (o edifício e a arte que contem) como fatores de liberdade e desenvolvimento.
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1 A rua passou a chamar-se Kwame Nkrumah.
2 Entre duas bandeiras, livro editado por Publicações Europa-América.
3 O Congresso da República de Portugal (1911-1926) era constituído pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.
4 Oficio n.º 159 do reitor do Liceu, de 13 de janeiro de 1921. (Doc. AHCV)
5 Notícias de Cabo Verde, 1 de novembro de 1938, apud Carlos Gonçalves (2019). Ba da’l na rádio! Memórias da Rádio Barlavento, p. 63 (ed. LPCardoso).
6 Idem, p. 75.
7 Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação, julho 1955, p. 19.
8 Gonçalves, 2019, p. 53.
9 Comunicado anónimo. C. Gonçalves esclarece que “na época os comunicados não tinham assinatura, nem era preciso, os camaradas conheciam-se, sabia-se quem era quem (…)”, op. cit., p. 172.
10 Tecelagem – CNA (Cooperativa Resistência): uma experiência de 4 anos, s/p.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020.