Espaços com história V

PorAdriana Carvalho,10 mar 2020 8:31

O nome de Augusto Vera-Cruz tinha sido apagado [após a independência] da respectiva rua¹, desde a igreja paroquial até à Rua de Camões também esta desbatizada.

O Senador Augusto Vera-Cruz cometera o hediondo crime de amar imenso a sua terra, tendo lutado denodadamente pelo progresso de Cabo Verde, durante dezasseis anos, no Senado. A ele, em grande parte, se ficará a dever a instalação do liceu em S. Vicente. Isso, porém, não interessava considerar. O homem pactuara com o colonialismo e era dono da mais luxuosa vivenda do Mindelo. De africano, não tinha nada, excepto a preferência pela cozinha regional. A figura dele era de um mondrongo, da cabeça aos dedos dos pés. O espírito dele vivia cangado nos telhados do Grémio Recreativo do Mindelo, palacete onde o ricaço recebia a fina flor da ilha. O Grémio herdara sem dúvida essa aristocracia, de cuja memória era preciso expurgar a cidade.

Teixeira de Sousa, 1994, p. 116 2.

Natural da ilha do Sal, Augusto Vera-Cruz foi um autodidata que se afirmou pela defesa da sua terra, no seu dia a dia como comerciante e bancário, agente consular da Inglaterra, Presidente da Câmara Municipal de Mindelo (1898-1901) e deputado por Cabo Verde no Congresso da República (1912-1926)3. Nesse fórum verberou “o Governo Português [que] não pode, não deve, não tem o direito de sacrificar o seu povo (…), [pois] não é justo nem digno proteger três monopolistas [do carvão] em detrimento de uma população de 160.000 almas” (Gazeta das Colónias, de 10 de agosto de 1925, p. 16). O reconhecimento da população de S. Vicente pela sua coragem está patente na fotografia publicada no quinzenário acima citado.

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Liceu

Em 1917, num gesto altruísta, o Senador cedeu o seu “palacete” para nele se instalar o liceu, uma das causas por ele advogadas. No ato de inauguração do Liceu Nacional de Cabo Verde, em 19 de novembro de 1917, o Governador destacou “o ilustre filho destas ilhas, ex.mo sr. senador Augusto Vera-Cruz [que] com uma dedicada pertinácia de quatro anos, conseguiu que o parlamento da República votasse a lei n.º 701 [que criou o Liceu]” e afirmou: “Abre pobremente o liceu; casa alugada, pouco mobiliário escolar, nenhum material didáctico, mas temos bons professores (…). Durante o ano lectivo adquirir-se há o preciso, para que não nos envergonhemos de mostrar as nossas aulas” (Boletim Oficial, 21 de novembro de 1917).

O liceu permaneceu na casa do Senador durante três anos letivos, passando a funcionar, a partir de 4 de janeiro de 1921, no edifício do Quartel4.

Grémio e Rádio Barlavento

No ano de 1938 o Grémio Recreativo foi instalado na sede da “antiga vivenda Vera-Cruz (…), abriu com um baile oferecido pela respectiva direcção aos seus sócios”5. A seleta abertura deu o mote a uma existência de quase quatro décadas de “grandeza”, denunciada no verso da coladeira Grandeza: “li ca tem grême, ca tem praça, nos tud é meme chose”6.

Por detrás das grades do Grémio Recreativo de Mindelo, cachos de crianças mascaradas espiavam o burburinho (…). [O guarda-portão] corria de um lado para o outro a enxotar a garotada do passeio do Grémio. (…)

Só os sócios ou os convidados conseguiam ter acesso ao casarão, lugar de lazer e convívio, todavia de muita disciplina e compostura.

Teixeira de Sousa, 1994, pp. 9, 10, 12.

Em julho de1955, a Casa do Senador recebeu um novo inquilino – a Rádio Barlavento “uma voz portuguesa no Atlântico e uma voz cabo-verdiana no arquipélago”7.

Esta é a Rádio Barlavento, CR4 AC a transmitir na banda dos 75 metros, 3.955 quilociclos por segundo, desde Mindelo, S. Vicente de Cabo Verde. São 20 horas e três minutos. Passamos a apresentar o programa : o Disco do Ouvinte.

Carlos Gonçalves, 2019, p. 17.

A convivência da Rádio com o Grémio Recreativo, “clube da alta sociedade, dos finórios”, nem sempre foi pacífica. Um dos tempos críticos era justamente o “Disco do Ouvinte”. Muitas pessoas, que se dirigiam à secção do Disco do Ouvinte, entravam indevidamente no salão de festas, na sala de jogos do Grémio… para desespero “do porteiro fardado, em que se destacavam os botões dourados e o boné de oficial”8.

A convivência feita de contradições terminou com “a acção popular levada a cabo pelos trabalhadores, estudantes e funcionários de S. Vicente no dia 9 de dezembro [de 1974] que culminou com a extinção da Rádio Barlavento”.9

O porteiro não teve nem costas, nem braços, nem nada, para suster a avalanche humana forçando a entrada do Grémio para ocupar a Rádio Barlavento. (…)

À frente da horda revoltosa, foi o guarda portão, como seixo rolado pela onda. Centenas de pêaigêces atravessaram os corredores, parte dirigiu-se à estação, parte espalhou-se pelas salas, numa algazarra ensurdecedora. (…)

As senhoras entraram em pânico, interrompendo a canasta. Os cavalheiros deixaram as mesas de bridge, os utentes do bar vieram para a rua, enquanto mais e mais populares enchiam os cantos e recantos do clube, enquanto os líderes da invasão procediam à ocupação da rádio, onde, aliás, não encontraram qualquer tipo de resistência.

Teixeira de Sousa, 1994, p. 162.

Centro Nacional de Artesanato

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Imagem do folheto Museu de Arte Tradicional, Ministério da Cultura.

A casa do Senador reabriu as portas em 1983 e nela se instalou o Centro Nacional de Artesanato que herdou o legado da Cooperativa Resistência (1976), dirigida por Manuel Figueira, que visava “promover uma escola e um museu de artesanato (…) e manter estreito contacto com os artesãos tradicionais”10. Esta missão tem sido cumprida, até ao presente, pelo Centro que, com novas abordagens estéticas, assumiu as identidades de Museu de Arte Tradicional e de Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design.

Um nicho da história das ilhas

Termino com uma ousadia interpretativa. A meu ver, este espaço de traça aristocrática é uma síntese da história nacional: contém a memória da relação paradoxal da elite cabo-verdiana com o poder colonial num jogo dúplice de ‘assimilação – nacionalismo – consciência de colonizado’ e simboliza a perceção social da educação (o liceu) e dos bens culturais (o edifício e a arte que contem) como fatores de liberdade e desenvolvimento. 

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1 A rua passou a chamar-se Kwame Nkrumah.

2 Entre duas bandeiras, livro editado por Publicações Europa-América.

3 O Congresso da República de Portugal (1911-1926) era constituído pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

4 Oficio n.º 159 do reitor do Liceu, de 13 de janeiro de 1921. (Doc. AHCV)

5 Notícias de Cabo Verde, 1 de novembro de 1938, apud Carlos Gonçalves (2019). Ba da’l na rádio! Memórias da Rádio Barlavento, p. 63 (ed. LPCardoso).

6 Idem, p. 75.

7 Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação, julho 1955, p. 19.

8 Gonçalves, 2019, p. 53.

9 Comunicado anónimo. C. Gonçalves esclarece que “na época os comunicados não tinham assinatura, nem era preciso, os camaradas conheciam-se, sabia-se quem era quem (…)”, op. cit., p. 172.

10 Tecelagem – CNA (Cooperativa Resistência): uma experiência de 4 anos, s/p.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020. 

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Autoria:Adriana Carvalho,10 mar 2020 8:31

Editado porSara Almeida  em  5 dez 2020 23:21

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