O que nos quis dizer com o seu novo livro?
Trata-se de um livro que faz uma análise aprofundada tanto quanto possível da música cabo-verdiana, obviamente, da música entendida como uma componente essencial da nossa sociedade, tendo em conta algumas dimensões importantes com realce para a tipificação, evolução e dinâmica da música nacional. Este enquadramento serve precisamente para inserir o compositor Manel d’Novas dentro da música cabo-verdiana. Como sabe, eu já tinha escrito, em 2003, um livro de cunho essencialmente biográfico sobre Manel d’Novas. Desta vez, utilizo Manel d’Novas como pretexto para fazer uma análise crítica e aprofundada da música cabo-verdiana, na sua diversidade e complexidade, mas inserindo o compositor e instrumentista mindelense, em todo o caso, dentro do dinâmico universo musical nacional. Portanto, analiso o universo musical cabo-verdiano, que se carateriza, basicamente, pela sua heterogeneidade, diversidade e riqueza, e pego precisamente naqueles géneros que eu considero mais importantes, ou mais badalados, não pela ordem de importância. Aliás, no livro faço questão em diferenciar dois conceitos importantes: o de importância social e o de relevância social, precisamente para evitar aquilo que tem vindo a acontecer frequentemente em Cabo Verde que é a descriminação dos géneros musicais, tipificados, habitualmente, em géneros musicais maiores ou menores, superiores e subalternos, em razão de determinados contextos sociais e de certas conveniências ideológicas. No meu entendimento e até que se me prove o contrário, não há géneros musicais maiores e menores, melhores e piores, porque, em última análise, expressam vivências sociais do quotidiano diferenciadas. Há, sim, géneros musicais que têm um percurso invejável e riquíssimo como a morna, todos têm percursos diferentes, mas todos são géneros musicais, independentemente da sua trajetória, goste-se mais ou menos. Aqui coloca-se-nos a questão da maior ou menor relevância social da música, que varia em função dos contextos sociais.
Qual foi a sua principal preocupação ao escrever este livro?
A minha principal preocupação, neste primeiro volume, foi primeiramente fazer uma análise profunda e crítica da música cabo-verdiana, colocando no centro do debate a figura de um renomado compositor já falecido. O segundo volume, praticamente já concluído, que será editado no próximo ano, assim que as condições financeiras o permitam, debruçar-se-á sobre a morna da Ilha de Santiago, entre outras dimensões concretas. Se no primeiro volume da obra de investigação sociológica e etnomusicológica, limito-me a apresentar um quadro macro e aprofundado da música cabo-verdiana, inserindo nele Manel d’Novas como daqueles mais brilhantes compositores, metendo-o aí, já no segundo volume preocupo-me com outras dimensões da música cabo-verdiana como a personalidade do músico, os reflexos da pandemia e, ainda, as perspetivas futuras da música cabo-verdiana.
A que conclusões chegou a respeito do legado de Manel d’Novas?
Manel d’Novas deu um contributo enorme para a música cabo-verdiana, servindo de ponte entre as gerações precedentes, a sua geração e as novas gerações. Este livro, é bom dizê-lo, é também virado para a academia, mas quando me refiro à academia não pretendo elitizar o livro. Quero dizer que é um livro feito com rigor científico, utilizando técnicas de investigação qualitativas e análises de conteúdo. O livro tem 792 páginas, quatro grandes partes e dezassete capítulos bem articulados. Entrevistei 245 pessoas de ambos os sexos, cá de Cabo Vede e da diáspora. Desse universo abrangente e representativo 214 são homens e 31 mulheres de todas as faixas etárias e de todas as categorias profissionais.
Enquanto compositor, Manel de Novas deixou escola?
Aqui há posições que se dividem, ou seja, se ele tem “continuadores” ou não tem “continuadores”. Há quem entenda que Manel d’Novas tenha deixado escola, mas há quem entenda o contrário. Seja como for, hoje há jovens que se orgulham do legado de Manel d’Novas e dão sinais positivos no sentido da continuidade da linha do poeta-trovador nascido na ilha de Santo Antão. O profundo legado de Manel d’Novas ainda não foi suficientemente estudado. É preciso continuar o compositor multifacetado e versátil, a partir da sua obra. Como investigador da área musical tenho feito aquilo que posso, sem grandes apoios institucionais.
O seu livro estuda diversos géneros musicais cabo-verdianos e coloca a questão se há géneros maiores ou menores. Neste contexto, introduz dois conceitos: o de importância social e o de relevância social. Como se deve entender estes dois conceitos?
São dois conceitos essenciais idênticos que se confundem e se complementam. Basicamente, a relevância social de um género musical tem a ver com o maior ou menor grau da sua aceitação e partilha por uma determinada comunidade musical, em razão do contexto e do gosto. A morna, por exemplo, é o género musical mais transversal e com maior relevância social tanto nas ilhas como na diáspora. Todavia, há certas comunidades que atribuem maior relevância social a outros géneros musicais regionais do que à morna propriamente dita considerada o género identitário por excelência, por causa, precisamente, do seu vasto percurso. Já o conceito de importância social, tal como vem sendo utilizado, tem-se prestado a alguma discriminação de certos géneros musicais, porque precisamente permite a construção de uma hierarquia rígida e subjetiva baseada, bastas vezes, em preconceitos. Diferentemente, o conceito etnomusicológico de relevância social adequa-se melhor à realidade musical cabo-verdiana e é mais flexível. Ao defender o conceito de relevâncias social não quero, de forma alguma, rejeitar liminarmente o conceito de importância social, afirmando que ele não exista na música. Não há géneros musicais melhores e piores, há géneros com trajetórias e relevâncias sociais diferentes.
Está a querer meter na discussão um certo relativismo musical.
Sim, neste sentido sim. Ou seja, não há géneros musicais absolutos e acabados, constroem-se todos os dias. Pode-se gostar mais da morna, mas não me parece razoável afirmar, por exemplo, que a morna é o maior género musical cabo-verdianos e os outros não interessam. Os géneros musicais, independentemente da sua aceitação no seio das comunidades e da sua relevância social, devem ser tratados em pé de igualdade e de acordo com o princípio universal da diversidade musical.
Para terminar com Manel d’ Novas. Numa escala de 1 a 10 em que lugar colocaria Manel d’Novas enquanto compositor?
Como biógrafo de Manel d’Novas sou suspeito. Sem estabelecer uma hierarquia rígida que subestime os compositores de todas as gerações, coloco Manel d’Novas no topo da escala, sem quaisquer dúvidas
Formulando melhor: quem é para si o melhor compositor cabo-verdiano de todos os tempos?
Colocada assim a questão, diria que Manel d’Novas, dotado de uma extraordinária capacidade de observação da vida quotidiana social que transposta para a música, é o compositor mais completo e mais versátil de todos os compositores cabo-verdianos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1045 de 8 de Dezembro de 2021.