Vai ser homenageado pelo relevante contributo que deu e tem vindo a dar à música de Cabo Verde. Como se sente com mais esta distinção? Apanhou-lhe de surpresa?
Nem por isso. Achei natural. Podia ser homenageado na Praia ou em qualquer outro ponto do país. Tenho consciência que já dei o meu contributo... claro que fico contente. Qualquer um ficaria contente. Vou estar presente e desfrutar também um bocadinho do festival. Vou para receber esta homenagem durante o festival e vou participar na Noite de Guitarra que se realiza esta quarta-feira. Aproveito para passar alguns dias no Sal com pessoas amigas e com familiares.
Até porque já foi alvo de várias outras distinções.
Sim, já fui condecorado Presidente da República, Pedro Pires com a Ordem do Vulcão, pelo Primeiro-ministro, José Maria Neves, com a Medalha de Mérito Cultural, e fui alvo de homenagens nos Estados Unidos, na Holanda e em outros lugares.
São Nicolau?
Em São Nicolau não fui homenageado. Sou padrinho do Sodad Festival d’Morna.
O que não deixa de ser uma espécie de homenagem.
Sim, tive o privilégio de ter sido convidado para ser o padrinho desse festival, portanto é também uma homenagem.
Embora não tenha exercido a música como profissão tem um percurso musical impar na música cabo-verdiana. Podia referir-se aos grandes marcos da sua carreira?
Bom, eu nasci no seio de uma família de músicos. Creio que na ilha do Sal quem deu o maior contributo para a música é a minha família. Meu pai era guitarrista, tocava violão, cavaquinho e viola eléctrica. Mas creio que as pessoas do Sal têm consciência disso: o primeiro conjunto que tocou instrumentos eléctricos foi praticamente constituído pelos meus dois irmãos meus (Rito e Albertino), mais três músicos; Manuel Eugénia e Vindinha que são meus pais e também do Albertino, do Rito e do Alcides Brito que fez a música “Labanta Braço bô grita bô Liberdade” que toda a gente conhece. Eu também já compus muita música e desde minha tenra idade estive nas iniciativas de música no Sal: eu, Ildo Lobo, Jorge Lopes, meu irmão Alcides. Eu sempre fui um impulsionador e arrastava o pessoal que tocava comigo. Até à minha ida para Roménia, em 1975, praticamente era eu, Alcides e o Ildo que estávamos à frente daquelas iniciativas musicais, desde os anos 60 e 70 do século passado. Aos 15, 16 anos eu já mexia um bocadinho com a música na ilha do Sal.
Não mencionou a sua filha no rol de familiares que se dedicam à música.
Sim, estava a falar do meu tempo quando eu era rapaz. Claro, Zubikilla [Spencer], a minha filhota de quem gosto tanto, tem feito uma carreira bastante interessante. Começou há bem pouco tempo, mas está a galgar. Ela já fez um EP (Extended Play), eu ainda não fiz. Quer dizer, eu quero fazer, mas as pessoas que prometem ajuda nunca dão. Já tenho uma ou outra pessoa que já me deu uma ajuda, mas daquelas que esperava mais, nada chegou ainda. A minha filha fez um belíssimo trabalho e desejo que faça no futuro mais trabalhos e que tenha sorte na música, porque ela é uma promessa interessante.
A gravação de um disco seu a solo vai sendo sempre adiada. Por que razão? A sua filha também tinha anunciado já em 2017 a gravação do primeiro EP que só em finais de Julho deste ano foi apresentado. Qual a razão, é muito perfeccionismo da vossa parte?
Não, a Zubikilla fez o disco com o esforço dela, ninguém deu nenhuma ajuda. Fez as suas economias e gravou o trabalho. Dou muito mérito à Zubikilla, porque montou o seu projecto, levou-o até ao fim com seus próprios meios. Estou a ver que praticamente vai ser assim também comigo, embora já tenha duas instituições que me deram uma ajudazinha que está lá e estou à espera agora que as outras instituições que prometeram, mas que não deram ainda...bom, se não derem vou ter também que seguir o mesmo caminho que a minha filha fez para gravar o meu CD.
As homenagens são mais baratas que os patrocínios para gravar?
A homenagem é algo simbólico. Não há nenhum cheque. Uma homenagem é o reconhecimento do trabalho feito: não é caro, nem barato.
“Nha Terra Escalabrode” e “Torrão di Meu” são tidos como clássicos da música cabo-verdiana. Confirma?
Bom, a primeira música que eu gravei foi “Sodad, tem Pena d’Mim” que fez muito sucesso na altura, em 1987. Foi com essa música que as pessoas ficaram a conhecer Nhelas Spencer como compositor. Embora tenha sido uma música que diz depois de ter feito “Nha Terra Escababrode”, que foi em 1981, mas que não tinha lançado ainda. Foi depois que dei essa música a’Os Tubarões que foi gravada na voz de Ildo Lobo. Claro que Torrão di Meu e Nha Terra Escalabrode são duas mornas muito conhecidas. De facto, Nha Terra Escalabrode é a minha música mais conhecida, depois vem Torrão di Meu. Mas, como disse, comecei com Sodad tem Pena d’Mim, em 1987.
“Nha Terra Escalabrode” é para vários críticos a composição-maior de Nhelas Spencer. Alguém aventou a hipótese que esta composição podia bem ser o Hino de Cabo Verde. Concorda?
(Risos). Não cabe a mim fazer essa afirmação. Agora como ela é dedicada à minha terra, não deixa de ser um hino à minha terra. Mas nós já temos um hino. Agora, tirando o nosso hino nacional se fosse colocada a questão de escolher uma música como hino nacional Nha Terra Scalabrod está entre todas essas composições que você mencionou [“Doce Guerra”, “Nos Cabo Verde de Speransa” e “Biografia de um Criol”]. Podia ser, podia não ser, mas hino já temos.
Há um consenso que é um dos maiores compositores da nossa música. Como se sente com este superlativo hebraico atribuído à sua pessoa?
Eu tomo sempre estas coisas com naturalidade. Não me agita nada. Tenho consciência daquilo que eu faço e o resto não me preocupa. Agora consciência disso tenho. Já dei a minha parte e vou continuar a dar enquanto Deus me der a capacidade de criar.
Nhelas Spencer e Betú são tidos como os maiores músicos da sua geração.
Músico não, ele não é dos melhores músicos, mas é dos melhores compositores. Eu considero Betú um grande compositor. É ele, Manel d’Novas, B. Leza e Eugénio Tavares.
Sente-se como um continuador de Manel d’Novas?
Eu já tinha dado esta resposta ao César Monteiro. Eu não sou continuador de ninguém. Em termos de guitarra, sim. Aceito que fui influenciado pelo meu tio Taninho Évora, pelo Humbertona e pelos meus irmãos. Mas em termos de escola, não sou da escola de ninguém, de nenhum compositor. Até porque eu estive numa escola de música, fiz guitarra clássica durante três anos. Portanto, alguma coisa terá ficado, em termos de conhecimento que utilizei nas minhas músicas.
É um fino observador do nosso quotidiano e nisso estará em algum ponto de contacto com Manel d’Novas, não do ponto de vista meramente harmónico.
Sim, o Manel d’Novas era uma pessoa que observava muito. Nesse aspecto, sim. Eu já disse que ando mais de autocarro para ouvir as pessoas falar. Tudo isso me dá prazer e às vezes dá-me motivo para compor. Der facto, neste aspecto temos alguma coisa em comum.
Li que é um compositor com estilo próprio, mas que há composições suas que ao ouvi-las se confundem com alguns temas de Manel d’Novas.
Não acredito.
Como está a música cabo-verdiana?
A nossa música está de pé, está de saúde. Temos novos cantores, principalmente cantoras. Mais do que cantores. Ultimamente as mulheres estão mais à frente do que os homens. Temos boas cantoras como Assol Garcia, Nancy Vieira, Mayra Andrade, Élida Almeida, Sorraia Ramos, Gama e agora temos a geração da minha filha [Zubikilla Spencer] com uma outra proposta que não tem que ser necessariamente morna, coladeira e funaná. É uma música urbana a proposta dela. Temos também bons músicos, rapazinhos que estão empenhados e aprenderem muito na internet.
Ouve-se que se vai candidatar à presidência da Sociedade Cabo-verdiana de Música? Confirma?
Possivelmente serei um candidato. É verdade. Se me candidatar e for eleito serei o próximo presidente. Mas se ganhar uma outra lista, continuarei a dar o meu contributo para a Sociedade Cabo-verdiana de Música de que fui sócio fundador, assim como fui sócio fundador e vice-presidente da SOCA. Aliás, fui eu que fiz a proposta para que a sociedade se chamasse Sociedade Cabo-verdiana de Autores. Fico satisfeito de ter dado esse grande contributo para os direitos de autor e conexos em Cabo Verde. Estou nesta área desde 2005, talvez o único que desde então ainda continua na área. Portanto sou um veterano nesta área. Fico muito satisfeito porque nós nesta área estamos bem servidos. Não temos muitos anos de existência, mas estamos num bom caminho.
Qual é a sua motivação para se candidatar à presidência da SCM?
O mandato da actual direcção terminou e, portanto, vai haver novas eleições e eu considero que estou abalizado para dirigir a próxima direcção. Porque, como lhe disse, estou desde 2005 nestas lides. Portanto, quero continuar a participar para que a SCM continue a dar o seu contributo até com novas ideias que eu tenho e que se for eleito irei implementá-las.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1137 de 13 de Setembro de 2023.