Brito-Semedo defende outras narrativas sobre a cabo-verdianidade

PorSara Almeida,12 jan 2024 11:23

Vinte anos depois de concluir o seu doutoramento, o antropólogo Manuel Brito-Semedo volta aos escaparates com uma obra sobre a cabo-verdianidade, na qual critica a africanização e narrativa única sobre a identidade nacional.

O objectivo é assim, como refere o autor em entrevista ao Expresso das Ilhas sobre o conteúdo e propósito do livro, deixar para as novas gerações um ensaio que desafia a visão única vigente, forjada numa ideologia política, e apresentar as bases para uma narrativa alternativa que destaca a diversidade e dinamismo desta sociedade crioula.

“Trabalho com memória e iniciei essa jornada com a intenção de preencher uma lacuna de informações para a geração dos meus filhos. Agora, aos 70 anos, reflicto sobre minhas próprias memórias e as de Cabo Verde, numa perspectiva de um académico, embora com uma linguagem que quero acessível para todos, pensando na geração dos meus netos”, conta o autor.

Os temas da Memória e Identidade têm sido, na verdade, uma constante da investigação de Brito-Semedo desde os tempos do seu doutoramento, terminado em 2003, e cuja tese originou um livro publicado em 2006. Hoje, já reformado, a reflexão e debate sobre o processo de construção da Identidade continuam, e o seu olhar volta-se para a desmistificação crítica à redutora “reafricanização dos espíritos” e narrativa única sobre a identidade que tem prevalecido após a Independência.

Surgiu assim, 20 anos após o seu doutoramento, o livro “Cabo Verde: Ilhas Crioulas - Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade”, que é apresentado este mês [ver caixa] e que abre com a coladeira “Nôs raça”, de Manel d’Novas, não fosse o autor um melómano:

Papai bem dzêm qui raça qui nôs ê, ó pai.
Nôs raça ê preto má brónque burnid na vent, ó fidjo,
Um geraçôn di tuga co africano.

O excerto que mostra já ao que vamos. A visão do autor e a sua defesa da crioulidade. E o próprio título – Cabo Verde: Ilhas Crioulas – é significativo: assume que estas ilhas não são africanas (como por exemplo as de São Tomé), mas crioulas.

Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade

Tal como o título, também o subtítulo – Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade – resume a reflexão proposta neste livro que tem como enquadramento a janela temporal entre o século XV e o século XIX.

Assim, estabelecem-se dois momentos que Brito-Semedo considera como basilares na formação da identidade cabo-verdiana. O primeiro, que durou dois séculos, tem por ponto central a Cidade-Porto, ou seja a Cidade Velha.

“Esta cidade-porto foi extremamente importante. Foi o primeiro momento e é quando Cabo Verde se engrenou, de alguma forma, no mundo e na economia” global.

Cabo Verde entra na arquitectura mundial vigente e o mundo chega também a Cabo Verde, através, essencialmente, de navios com escravos.

Apesar da reconhecida importância deste momento, refuta-se a ideia recorrente de olhar o “berço da cabo-verdianidade” como a única origem nas questões identitárias.

Contraria a “ideia prevalecente de que a sociedade cabo-verdiana é monogénese, ou seja, tem uma origem única e há um homem único, que é o badio – no sentido de o homem badio ou o escravo vadio”, explica o autor.

Dois séculos depois, a falência de Cidade Velha vem mudar toda a dinâmica de construção da Identidade. E, posteriormente, no século XIX, Cabo Verde entra outra vez “nessa engrenagem da economia-mundo pelo barco a vapor”.

“Há uma preocupação de estabelecer ligações, sobretudo com o hemisfério sul. É a altura da independência da Argentina, ligação com o Brasil, etc., e ainda não há o canal de Suez. O Porto Grande é descoberto, e a partir de 1836 os ingleses têm esta visão”.

Surge então esse segundo momento – o Porto-cidade, ou seja, Mindelo – com a povoação de São Vicente. Os ingleses “viabilizam o Porto Grande, pelas qualidades do Porto e há essa ligação com o mundo. E isto traz gente, traz comunicação, traz toda a modernidade”.

Assim, defende Brito-Semedo, a cabo-verdianidade forma-se dentro de todo estes processos que decorrem entre o século XV e o século XIX.

Porém, em termos de investigação, há até hoje uma grande lacuna sobre o século XIX, um período extremamente rico e importante. “A própria História Geral de Cabo Verde vai até o século XVIII”, aponta e “é recorrente dar ênfase, sobretudo, aos dois primeiros séculos”.

Noite

Não é uma prática comum entre os académicos em Cabo Verde, mas neste livro enceta-se também uma espécie de intercâmbio assumido com a obra “Noite Escravocrata/Madrugada Camponesa” do historiador António Correia e Silva, a que Brito-Semedo chama de “causa próxima”.

Os dois primeiros séculos (XV-XVII), seriam pois, na concepção do historiador a Noite Escravocrata, ao qual se seguiu a denominada Madrugada Camponesa (XVII-XVIII)

Às duas fases metafóricas já propostas pelo historiador, Brito-Semedo acrescenta, assim, uma terceira, que é precisamente o momento do porto-Cidade (século XIX) que apelida de Manhã da Modernidade.

A metáfora é aceite, mas o antropólogo questiona a definição da sociedade de Cabo Verde como escravocrata, inclusive nos primeiro dois séculos do povoamento de Santiago.

Entra a revisão bibliográfica. António Carreira já havia afirmado que toda a sociedade cabo-verdiana, “a partir de 1460 até a abolição da escravatura em 1878, é uma sociedade escravocrata”. Correia e Silva vem, depois, restringir essa definição aos dois primeiros séculos, argumentando que esses 200 anos foram os de uma economia baseada na força do escravo.

No entanto, Brito Semedo, embora reconhecendo uma sociedade predominantemente formada por escravos, questiona essa afirmação, sublinhando que Cabo Verde não poderia ser adequadamente classificado como uma sociedade escravocrata devido à falta de uma economia capaz de suportar tal sistema.

“Levanto a dúvida sobre a viabilidade dessa economia, considerando factores como escala, produção, características e clima necessários para sustentar uma economia baseada no algodão [monocultura apresentada por Correia e Silva]. Questiono isso, da mesma forma que Humberto Cardoso tinha questionado, em “O Erro de Carreira’”, refere.

Reconhece-se que essa fase, assim como a subsequente, de uma sociedade camponesa, são momentos cruciais na formação da cabo-verdianidade. No entanto, é importante é olhar o que se seguiu. “Qual o efeito dessa sociedade escravocrata” na identidade, hoje? “O mais importante é o que vem depois”.

Manhã

Depois da já referida falência da Cidade Velha, há o povoamento das outras ilhas, feito sob outras características.

“Deixámos de receber o contingente que vinha da África e houve literalmente o abandono do Reino. A sociedade cabo-verdiana endogeneizou-se e continuou a evolução nesse sentido”, observa.

Ao mesmo tempo, no povoamento das ilhas agrícolas e montanhosas, como Santo Antão, São Nicolau e Brava, outras pessoas se juntaram à população originária de Santiago e do Fogo. Vêm pessoas, por exemplo da Madeira, e com o Porto Grande, chegam e partem pessoas de outras origens. “Há uma mistura”, uma miscigenação.

Começa a aparecer, pela primeira vez um operariado em Cabo Verde, “gente que vai das ilhas com as crises, falta de chuva, fome, que se juntam e a cidade [do Mindelo] nasce por causa do Porto”.

”Toda esta mistura é que completa essa arquitectura da cabo-verdianidade”, sublinha.

Triângulo

A identidade cabo-verdiana é, assim, como define o autor “dinâmica e compósita”. Ou seja, é sujeita às mudanças dos eventos e períodos históricos e, ao mesmo tempo, é uma síntese das múltiplas identidades, que resultam de uma mistura de influências culturais e sociais.

E é a diversidade e a complexidade desses elementos que constitui a riqueza e a singularidade da identidade cabo-verdiana, defende.

Olhando a Manhã da Modernidade (e entrando já pelo século XIX), Brito-Semedo faz, nesta conversa, uma analogia com o comércio triangular .“Inicialmente Portugal figurava como o vértice central”. A geração de Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares e José Lopes procurava a identidade cabo-verdiana “aspirando ser reconhecidos não apenas como cabo-verdianos de origem, mas também como cidadãos legítimos, almejando a igualdade” com a metrópole.

Num outro momento, emerge uma perspectiva diferente. Dentro do vasto império português, do Minho a Timor, os cabo-verdianos afirmam as suas particularidades, proclamando-se uma sociedade distinta, inspirados pela experiência do irmão mais velho, o Brasil, que conquistou a independência em 1821, e com o qual procuram ver as semelhanças.

“Se bem que o Brasil é que devia ser um Cabo Verde grande, e não nós um Brasilim, porque somos uma sociedade crioula, a primeira no mundo e completa, nesse sentido”, expõe.

Entretanto, a geração seguinte, pós-Segunda Guerra Mundial, é composta por pessoas que vão estudar na Europa e entre os quais surgem intelectuais “que vão pensar a sua realidade em função de todo o movimento” da africanidade, e adopta um discurso de reafricanização dos espíritos”.

O triângulo vai mudando assim o seu vértice principal. Ora, como refere Brito-Semedo, “a cabo-verdianidade é tudo isso.”

“Somos uma sociedade complexa e compósita”, reitera, e, embora em determinados momentos a ênfase tenha sido colocada sobre determinado aspecto, não se pode aniquilar as outras vertentes.

“A minha preocupação é ter havido, a seguir à Independência, uma iniciativa de reafricanizar os espíritos com a declaração de ‘nós escolhemos livremente o nosso destino de sermos africanos’. Enquanto uma sociedade crioula, temos a capacidade de acolher essa identidade. É uma dinâmica que pode evoluir. A minha inquietação está centrada no facto de a sociedade cabo-verdiana ter adoptado uma matriz ideologicamente determinada e orientada”, e que aniquila qualquer outra narrativa sobre a identidade, explica.

Tarde da crioulidade

O novo livro de Brito-Semedo estabelece pois as bases para uma ampla reflexão, desafiando a mais estudos sobre a evolução da identidade.

“O que pretendi foi apresentar uma alternativa de narrativa para discutirmos”, resume, reiterando a carência de trabalhos investigativos académicos que se debrucem sobre a Identidade a partir da segunda metade do século XX, e em particular, após a Independência.

“Não há reflexão sobre a nossa realidade, não há trabalho neste sentido. O que é que tem havido, até penetrando a academia, é uma ideologia que foi introduzida e esta é uma narrativa que é aceite em toda a sociedade. E isto é pernicioso”, declara ao Expresso das Ilhas.

Assim, continua, “proponho uma narrativa diferente para, sem ideologia, descomplexadamente, discutirmos a questão da identidade. Porque é pernicioso estar permanentemente a forçar” uma única narrativa.

Ademais, e na linha da argumentação de que a identidade nacional é compósita, lembra que “somos ilhas diferentes, com características e uma economia diferentes, povoadas em épocas diferentes, com pessoas diferentes”.

Essas questões foram determinantes nos elementos comuns, “para a emigração, para recebermos gente, para a instrução que se introduziu porque nós não tínhamos outros recursos” que produziram o cabo-verdiano.

Após a Independência, “deitamos isso fora, limpamos a chamada noite colonial, e propagamos a ideia de criar um “homem novo”.

“Isto é que me preocupa: um discurso único, esta visão do “novo”. Sou contra esta questão do único”.

Não há, como referido, uma identidade única, e, defende, “quando são as autoridades a manter isso e a eleger determinados símbolos do que é a identidade nacional, está errado.”

Por exemplo, a Cidade Velha é importante para a história de Cabo Verde e é importante para a humanidade por ter sido a primeira cidade europeia [em África]. Mas, é apresentada numa perspectiva africana. É o discurso do Governo e o porta-voz do Governo, que é o Ministro da Cultura, tem tido esse discurso. Quando se quer mostrar a cultura de Cabo Verde a um estrangeiro, leva-se à Cidade Velha e mostrar-se o batuque. Isto é um aspecto de cultura, não é a cultura cabo-verdiana. É como apresentar o pano de terra como o símbolo da cabo-verdianidade. Não é. É um aspecto, é de uma ilha e é do interior. É isso que é errado. Não pode haver o ‘único’”.

“Não existe “a” cultura. Não estou a defender que há a cultura superior e a cultura inferior. Mas o que tem sido valorizado é a cultura popular e a vertente africana”, refere.

Aliás, olhando as manifestações culturais torna-se evidente que muitas delas incorporam “o europeu e o africano tudo junto baralhado e misturado. Nós somos isso. E essa característica, essa singularidade de sermos uma sociedade crioula, que deve ser valorizada. Os demais, são aspectos que vão acontecendo”, advoga.

Assim, o antropólogo critica a limpeza que se fez aos elementos europeus da identidade cabo-verdiana, no processo de africanização, instado pelo partido único.

“Ou seja, nós estamos a pegar um aspecto e com pinça tiramos aquilo que nos interessa”, analisa, defendendo, mais uma vez, como característica mais valiosa de Cabo Verde, a sua crioulidade.

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Apresentação

Cabo Verde: Ilhas Crioulas – Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, editado pela Rosa de Porcelana, será apresentado na próxima sexta-feira, 12, no auditório da Garantia, empresa que patrocinou o livro e que cedeu o uso da pintura “Cidade Velha, Mundu Nobu” de Luís Levy Lima, pertencente ao seu espólio, para adornar a capa da obra.

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A apresentação estará a cargo de “dois colegas” académicos – Adilson Semedo, da Universidade de Cabo Verde, e Pedro Matos, da Universidade de Santiago –, que partilharão as suas leituras da obra.

Posteriormente, a 26 de Janeiro, a obra será lançada em Lisboa, numa sessão que em que Manuel Brito-Semedo pretende prestar reconhecimento à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, onde se doutorou em Antropologia.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,12 jan 2024 11:23

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  13 jan 2024 9:01

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