Dedicado ‘às gentes da Boca do Porto’, o livro sobre os livros abre com as palavras da poetisa brasileira Conceição Evaristo: “O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos/A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso./ O movimento vaivém nas águas-lembranças/dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto”. E este início não é inocente.
“Eu faço sempre isso”, explica Brito-Semedo ao Expresso das Ilhas. “Por exemplo, na capa do meu livro 3 de crónicas, Esquina do Tempo, eu tenho uma fotografia de costas, contornado precisamente a esquina da antiga biblioteca municipal. Não é por acaso que é a esquina, não é por acaso que é aquela esquina. Quando venho para o Falucho, explico que dobrei a esquina e apareci do outro lado como cronista marinheiro. Nada é por acaso”.
Depois de navegar, é preciso ler. Com o Falucho – o livro anterior – ancorado na baía, o marinheiro-cronista desembarca então no Porto Memória, novo projecto desenvolvido e publicado originalmente no jornal Expresso das Ilhas, de Novembro de 2018 a Junho de 2022, quando foi feito o anúncio oficial que era preciso promover o livro e estimular e criar o gosto pela leitura, com dinamização de Bibliotecas Escolares, criação de uma Rede de Bibliotecas Municipais e elaboração de Planos Municipais de Leitura e Plano Nacional de Leitura.
“Está a surgir um plano nacional de leitura, mas não há uma política, pelo menos expressa, do livro, mais do que de leitura, do livro”, afirma Brito-Semedo. “E o Estado, quando vem retomar, começa tibiamente”.
“Precisamos muito mais do que isso”, continua o autor. “Todo o custo do livro é a produção, com as gráficas, com a importação das tintas, com o papel. Depois temos um problema de distribuição, porque não há um sistema. O livro que é publicado em São Vicente não chega à Praia e vice-versa”.
“E outra coisa, não existe um plano nacional em termos dos municípios, onde há verbas estrondosas, fabulosas, para os festivais, mas não há para as bibliotecas. O próprio município da Praia não tem uma biblioteca. A última vez que a Praia teve uma biblioteca municipal foi antes da independência. O que existe na Praia é uma biblioteca nacional que faz de biblioteca municipal”, sublinha Brito-Semedo.
Num país em que o salário mínimo é de 13.000 escudos, um livro é luxo - Manuel Brito-Semedo, antropólogo e escritor
Porto Memória tem um total de 25 crónicas, que vão desde os escritores seiscentistas, a B. Léza, passando por Orlanda Amarílis, Arnaldo França, Teixeira de Sousa, Luiz Loff de Vasconcellos, Baltasar Lopes, ou que abordam temas como os 75 anos da folha literária Certeza, a reedição d’ “Os Clássicos” pela Biblioteca Nacional, até à produção cultural na Praia Maria do Séc. XIX.
“Passei de um tema essencialmente de memórias de menino, a contar as histórias dos anos 60, e entro por outra via, uma forma de chamar e prender a atenção das coisas que são nossas, uma forma muito mais voltada para a cultura”, esclarece o autor. “É tratar assuntos sérios de uma forma leve, procurando ter uma linguagem também muito leve e acessível, para criar o gosto e manter esse gosto em termos de leitura e das coisas de Cabo Verde”.
“Precisamos ter boas leituras, bons livros, não apenas em termos de conhecimento da nossa realidade, da nossa história, mas em termos de domínio da língua. O domínio da língua portuguesa, que faz muita falta. Temos que criar isso, começar da literatura mais próxima, a nossa, e ir abrindo o horizonte. Os próprios professores não leem, ou muitos poucos leem. Se os professores não leem, como é que pode incentivar os alunos a lerem? Temos muita gente que sabe ler, mas não é leitor funcional, porque não consegue organizar as ideias”, conclui Brito-Semedo.
A apresentação do livro “Porto Memória” estará a cargo da escritora Dina Salústio e terá lugar na sexta-feira, 19, às 18:30, no Auditório do Banco Interatlântico/Garantia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.